JOANINHA
A mais de 400km a oeste de Cuiabá, o Rio Guaporé serpenteia por matas e campos, lambe Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade. Mais adiante, marca a fronteira do Brasil com a Bolívia, retorna ao território brasileiro e continua seu destino, até desaguar no Madeira. O Guaporé é importante, volumoso em águas e repleto de vida. A peixaria que abriga é farta e sustento certo o ano todo para o ribeirinho que das águas retira o seu alimento. Tem palmito-da-boca-vermelha, tucunaré, matrinchã, piauçú, trairão, papa-terra, pintado, dourado, pacu... um despropósito de peixes. Todavia, suas águas escuras abrigam também a jacaresama, a piranha, a arraia e o poraquê.
Naquele ano o clima endoidara. O Guaporé estava anêmico; baixara muito aquele mundão d’água imponente e assustador. As margens recuaram, descobrindo o areal que orlava as águas vagarosas. Ainda não chovera nada que prestasse, mas os peixes subiam para a desova buscando as nascentes. Impulsionados pela exigência da natureza que os fazia cegos a tudo, atropelando-se confusos, nadavam contra a corrente minguada até amontoarem-se nas bocas dos afluentes e igarapés secos. Impedidos de subirem, fervilhavam desesperados, debatendo-se em agonia.
Donana sentia-se aliviada. Acertara com o padre os detalhes para o casamento de Joaninha na igreja de “Vila Bela”, uma das mais antigas do Brasil. Única mulher dos seis filhos que tivera, já aos quinze anos a meiga Joaninha estava grávida de Dilson. Dois inocentes cuja criação teria que completar, pensava Donana, os olhos lacrimosos de apreensões e esperanças. Um a um, os filhos criados com sacrifícios sumiram no mundo, à procura de vida melhor. O marido morrera no eito, picado por uma bico-de-jaca. A filha era a última esperança de companhia e apoio na velhice, e dos netos que desejava. Que desejava para a velhice que lhe pesava; a velhice que vem mais cedo para o pobre, que tem o corpo sovado pela vida. Despreocupados, os meninos iam adiante, ao lado do rio, felizes, brincando como crianças que ainda eram.
Espadanando água, alegres para a vida, Joaninha e Gilson procuram na rasura das águas refrescarem-se do calor da tarde. Felizes, pulam, põem-se a dançar, sorriem, cantam... e morrem como sonhavam viver --abraçados-- ao receberem a brutal descarga elétrica de um poraquê ferido. Do mais íntimo da alma, templo que abriga centelha divina, Donana exalou sufocado soluço... rompera-se o último fiapo de suas esperanças. Pelos olhos a esvair a vida, caiu de joelhos, levou as mãos ao rosto, curvou-se e descansou a cabeça na areia, buscando enterrar-se no chão enfim molhado. Invadida pela sombra da morte, deixou-se morrer... apenas existiu e nunca mais se viu seus olhos brilharem. Os fiéis que caminhavam em procissão ao lado do rio ficaram parados, sentindo a brutalidade da morte assombrá-los também. O padre ajoelhou-se para rezar:
--In nomine Patris...
Ninguém sabe explicar se foi a dor de Donana, as rezas dos crentes, um fenômeno da natureza... Logo após a morte de Joaninha, o dia se fez noite. Nuvens escuras cobriram todo o céu, o vento escapou desabalado e desaguou um mundéu de chuva do Amazonas às cabeceiras do Guaporé, enchendo a calha do rio em poucas horas. E apareceu uma espécie nova de peixe no rio, que o índígena chamou “jacundá” e o pirangueiro boliviano “maria-güenza”... Mas o povo de fé batizou “joaninha”!
|