Estamos dando continuidade a publicação destes pequenos artigos que visam mostrar um pouco da escrita poética feminina no cenário nacional e mundial.
Pretendemos, tão somente, falar da emoção de nossas descobertas literárias ao nos depararmos com a vasta produção feminina na construção de uma identidade poética.
É antes de tudo, uma gota de perfume que permitirá ao leitor curioso, buscar essências a partir da publicação destes textos.
Ana Cristina César
Ana Cristina César nasceu no Rio de Janeiro, em 1952. Viveu entre Niterói, Copacabana e os jardins do velho Bennet.
Era poeta, tradutora e ensaísta. Alguns autores a consideram como representante da geração da poesia dita marginal. Ao meu ver, Ana Cristina César está além de definições ou rótulos. Era uma escritora intersticial. Não encontramos em sua escrita influências marcantes de outros autores, movimentos ou escolas literárias. Há um estilo Ana Cristina César de escrever. O seu discurso, quase sempre na primeira pessoa do singular, revela-nos sobretudo, um diálogo consigo mesma frente a sua visão e interação com vários mundos. Um mergulho interior amplificado em letras e cores destinados aos olhos de quem sente e percebe a palavra, para além dela própria. Ana Cristina valoriza a inquietude tão inerente, a quem busca na palavra esta tradução e verbalização do ser. Sobre ela, escreveu Cristina Mutarelli "Sua linguagem resiste a ondas e fórmulas fáceis. Ana queria a palavra depurada, decantava as coisas e, sabia, como Manuel Bandeira que extrair o sublime do cotidiano não é tarefa das mais fáceis”.
Residiu em Londres por algum tempo. Quando da sua volta ao Brasil, escreveu para jornais e revistas alternativos. Participou ainda da Antologia 26 Poetas Hoje, de Heloísa Buarque. Era formada em Literatura com Mestrado em Comunicação. Através da Funarte publicou pesquisas sobre literatura e cinema. Seus primeiros livros “Cenas de Abril” e “Correspondência Completa” foram editados através de publicações independentes.
Retorna ainda à Inglaterra, para fazer uma pós-graduação em tradução literária em Essex. Sua tese foi uma tradução do conto “Bliss”, da escritora Katherine Mansfield. É quando publica Luvas de Pelica. Em sua volta para o Brasil trabalhou em jornalismo e televisão. Escreveu “A Teus Pés” em 1982, através da Editora Brasiliense
Seus últimos versos refletem bem a angústia que vivia : "Estou muito compenetrada de meu pânico/ lá dentro tomando medidas preventivas”.
Ana Cristina César suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983. Tinha 31 anos.
Obras:
Cenas de Abril (1979); Correspondência Completa (1979); Literatura não É Documento (1980); Luvas de Pelica (1980); A teus Pés (1982); Inéditos e Dispersos (1982); Escritos da Inglaterra (1988); Escritos no Rio (1993); Correspondência Incompleta (1999).
Poemas de Ana Cristina César:
A Ponto de Partir
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.
Um Beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
Que deslize
Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouco negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.
Fama e Fortuna
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de néon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
Ulysses
E ele e os outros me vêem.
Quem escolheu este rosto para mim?
Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.
Segredos cansados de sua tirania
tiranos que desejam ser destronados
Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.
o mesmo quarto e a mesma hora
toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,
Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Conchas humanas.
Toda Mulher
a coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher
toda mulher
dos quinze aos dezoito
Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito
Coleciona histórias de amor.
Sete Chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo