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Contos-->Funeral na noite de Natal -- 18/12/2005 - 17:58 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Passei a noite de Natal de 1969 em plena Serra do Songo, no distrito de Tete, em Moçambique, na companhia de um tio da minha futura esposa, defronte a uma crepitante fogueira onde pusemos a cozer bacalhau, batatas, ovos e couve branca. Há cerca de seis meses que permanecíamos numa âmpla tenda de campanha, acerca de 2 kms do ponto fulcral onde iria erguer-se a barragem hidroeléctrica de Cabora-Bassa, algo que na época era considerado um dos maiores empreendimentos do mundo

Estávamos num sítio privilegiado, uma larga clareira, cercada de árvores de pequeno porte, mas muito densas, onde habitavam milhares de macacos, cujos guinchos ecoavam ao longo das escarpas que contornavam aquele sítio e forneciam um esplêndido abrigo contra as intempéries de toda a sorte que nos apoquentavam, ora fortes ventos e chuvadas capitosas, ora calor de fazer estalar a pele.

Consoante a noite mais se fazia noite, então, estava um esplendoroso luar e as estrelas tremulavam frenéticas na longínqua abóboda celeste. Os odores da floresta impeliam as narinas para o enlevo e a memória levou-me a alma para o imaginado seio do meu tão distante lar, em Portugal.

Comemos a improvisada refeição natalícia num ápice, num daqueles actos de comer por comer, brindamos aos nossos com vinho tinto do Dão, e o Ferreira, enquanto eu cuidei de amainar a fogueira até à brasa, acomodou-se na tenda, enfiando-se no saco-cama, cujo fecho de correr fez delizar até às pontas dos cabelos.

No meio de toda aquela enorme solidão que se abria para o céu, meti a carabina e a lanterna ao ombro, e dispus-me a caminhar sem destino preciso. Ao acaso, tomei a picada que descia íngreme em direcção ao leito do Zambeze. À minha passagem, os mochos, espantados pelo inoportuno, esvoaçavam para galhos mais altos. Via-lhes nitidamente os grandes olhos, como se ardessem, a espiar-me.

De repente, vindo de entre as ramagens, surgiu-me ao caminho um vulto, com um pedaço de madeira em chama, ao alto, num dos braços. Afaguei de imediato a arma, mas de imediato também o indivíduo identificou-se:

- Ei patrão, Bocassa dar luz pa patrão...

Era um autócne, que eu conhecia e com quem estava bem relacionado por vir frequentemente ao acampamento vender galinhas, anhos e cabritos ao pessoal da Zamco. Também me apercebi que, a poucos metros donde eu estava, havia luzes e vozerio. Segui o Bocassa por um carreiro lateral que saía da picada. Alguns passos adiante comecei a ouvir o som de um arrastado batuque misturado com uma estranha cantilena e indaguei:

- Há festa de Natal para aqui?...

- Oh... Nã patrão. É reza a morto. Morreu mulhé de chefe, patrão. Estão a enterrar...

De facto, uns cem metros adiante, junto de uns enormes pedregulhos onde se abriam diversas cavernas pequenas, estava uma meia-centena de homens, mulheres, algumas grávidas, e crianças, entre archotes, lengalengando à volta de um cadáver estendido sobre uma esteira de ramos depositada no solo. Bocassa informou-me:

- Vai ali paquele buraco na pedra, patrão. Nós vamos tapar cum terra e pedra.

- É aqui o vosso cemitério?

- Cemítro?... Que é cemítro, patrão?...

- Bom-bom, deixa lá, não é nada...

Logo que alguns dos homens tomaram a esteira e começaram a levar a mulher morta para dentro de uma das cavernas, pedi a Bocassa que me guiasse e iluminasse para voltar de novo à picada, decidido a regressar ao acampamento.

Diacho, que absurda coincidência registava eu entre as memórias da minha vida. Na noite de Natal, inopinamente, assisti a um funeral... Que incrível presépio se me deparou numa noite em que aquela benquista gente sequer sabia o que era o Natal.


António Torre da Guia
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