Usina de Letras
Usina de Letras
166 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62070 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50477)

Humor (20015)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6162)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cartas-->do escritor Eduardo Maffei a seus amigos -- 27/07/2003 - 09:11 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CANTO FÚNEBRE PARA GUIOMAR

Eduardo Maffei*


Nosso mundo, desde 21:30 de 1º de Abril, ficou mais triste sem a gargalhada de MARIA GUIOMAR MOREIRA MAFFEI,** falecida aos 76 anos sem jamais haver perdido a pureza da infância, minha mulher e companheira durante 48 anos, que engendrou em suas entranhas nossos dois filhos, o engenheiro, doutor, professor Carlos Eduardo Moreira Maffei e o advogado doutor João Paulo Maffei, ambos de reconhecido mérito ético e profissional que devem esse mérito mais a ela que a mim, avó dos meus netos, sogra que soube transformar a nora, a psicóloga e advogada doutora Edna Felizardo Maffei em filha que não teve e que neste transe final procedeu como tal e madrinha de meus amigos. E está sendo escrita precisamente em 18 de abril quando está fazendo 48 anos de nosso encontro fortuito, ela em Belém, eu em São Paulo, numa rua de Fortaleza, no Ceará.
Meu duplo colega, médico e escritor como eu, Goethe, intelectual que destilava expressões precisas e de muito humanismo, definiu o amor como uma afinidade eletiva. Em química não são todos os corpos simples que se combinam na criação de novos compostos de propriedades diferentes dos que o compuseram; é necessário que cada qual tenha uma determinada estrutura atômica que lhe proporcione a qualidade de afinidade eletiva. Foi essa afinidade que nossas naturezas sentiram às 10 horas da manhã na rua Floriano Peixoto quando nos cruzamos e, desde esse momento, tivemos receio que fôssemos escondidos e separados por paralelos geográficos distantes. Por isto, em menos de três dias, para usufruir em vida a afinidade eletiva, resolvemos nos casar e o fizemos em 29 de agosto, quatro meses depois. Seus amigos disseram que para se casar com Maffei e dessa forma, só mesmo uma louca. E a ele seus circunstantes que casar com uma desconhecida era um loucura. Realmente aproveitamo-nos de uma deixa de Chesterton de que “o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão”, porque não a perdemos pois “a razão tem razões que a razão desconhece”, como já dissera Pascal, nosso casamento foi racional, já que o amor é um sentimento compassado pela afinidade eletiva, lei da Natureza que ignora contas correntes bancárias. Clarice Lispector também era rotulada de louca, e ela o sabia, porque trocava o dia pela noite quando ficava catando milho na máquina de escrever. Certa manhã, tresnoitada, terminados seus cigarros, foi compra-los numa padaria próxima e viu gente amontoada ante o balcão para comprar pão e leite, gente apressada pelas ruas, gente nas filas de ônibus, gente amontoada dentro dos ônibus e perguntou-se: “Então isso é que é normalidade?” Por outras palavras estava repetindo Chesterton, eu e Guiomar do impulso afetivo, quase que tendo por padrinho Bernard Shaw que dissera: “Loucos existem em todas as partes do mundo, até mesmo nos hospícios.”
O amor é o encontro de dois mundos diferentes num átimo de tempo e amar como eu, mediterranicamente – o Mediterrâneo é a pátria do amor e de seus deuses – amei Guiomar e ela a mim, cuja medida foi amar sem medida, foi a troca, entre nós, de grande parte dos nossos mundos. Assim, quem foi sepultado ao meio-dia de 2 de abril foi muito de mim. E ela permaneceu porque muito daquilo que me tornei, é ela. As palavras que lhe disse, já inconsciente, na madrugada de 25 de março quando fiz, sem perder o sangue frio que o exercício da verdadeira medicina sacerdotal me proporcionou, o infausto diagnóstico que, no seu estado, por certo não ouviu, foram: “E nós que nos supúnhamos eternos!” A mesma aura que tive quando a escolhera para minha mulher deu-me a certeza que a perdera a partir daquele instante.
Frederico Engels escreveu que Jesus Cristo pregara a única forma possível de socialismo nas condições materiais da época. Eu vivi esse mesmo socialismo num tempo que se tornou uma ciência e um dos sistemas mundiais. Mas ela viveu a doutrina de Cristo com a mesma pureza num tempo em que ela fora recriada por Marx. Só, portanto, na aparência, nossas opiniões divergiam; nosso denominador comum foi o humanismo. Foi comigo, sem que eu a forçasse, às passeatas do Partido, fez tarefas domésticas para meus companheiros com o mesmo despreendimento com que eu a acompanhava na procissão dos Círios, em Belém, onde, com certa freqüência, íamos, voando sobre os paralelos que temêramos nos separassem em abril de 1940, sem contudo ela abjurar de suas crenças e eu transigir quanto às minhas convicções. Nosso casamento foi amalgamado pela afinidade eletiva e não por crenças ou ideologias. Morreu saber e nem procurando sabê-lo quanto eu ou os meus filhos ganhavam; jamais teve ambição pelo dinheiro. O que mais apreciava, como autêntica mulher, era conversar sobre modas e perfumes. Tinha paixão pelo Nuit de Noel, de Caron. Mesmo em tempos de rafa não o deixei faltar. Na véspera de sua morte, quando recebeu a visita da saúde e tudo indicava que se recuperaria, pediu à Edna que lhe levasse no dia seguinte o Nuit de Noel para se perfumar. Foi sua última vontade. E com ele foi sepultada. Só viveu as paixões de alegria de falava Spinosa, médico como eu, sem se deixar apossar pela inveja, cobiça, ambição e ódio, “qualidades” de quem possui mau caráter. Cada vez que, por força das circunstâncias, tinha que preencher um cheque, perguntava-me como deveria fazê-lo. Morreu sem saber nada sobre a conta corrente bancária que tínhamos conjunta e ignorando como preencher um cheque. Mas teve desmedido amor pela vida. Quando melhorava a olhos vistos do insulto cerebral isquêmico, foi contaminada por uma infecção hospitalar que, com sói acontecer, revelou-se fatalmente resistente aos tratamentos. Mas, mesmo no seu sofrimento, o ignorou. Teve vontade e amor pela vida até o último instante. Para ela qualquer dor valia a vida.
Minhas palavras finais para ela, antes do fechamento do ataúde, foram repetindo as que Anatole France dissera, ao morrer, para sua mulher: “Jamais nos veremos.” Foi quando gostaria de crer na imortalidade da alma para dizer-lhe: “Até breve, Guiomar.” Mas desde que, naquela madrugada fatídica, saiu de casa, carregada, para ser transportada por ambulância, Lord Jeff, nosso cachorro e amigo, não mais arredou do patamar intermediário da escada. Continuou esperando pela volta de Guiomar, o que me tem feito lacrimar porque eu também gostaria de esperar pelo retorno físico dela.
Teve a felicidade de ver concretizados seus grandes sonhos. Para o que procedeu no dia-a-dia, como amiga e mãe. Só a nós dois e tão somente, sem os ridículos estímulos de uma adventícia que se pavoneia com o ridículo “eu é que estimulei”, meus dois filhos devem – e mais a ela que a mim – por haverem se diplomado por uma escola de ensino superior da categoria da Politécnica e de Direito do Largo de São Francisco, ambas da USP. Estimulou-os pelos exemplos de mãe. Eu que tive um pai assim, posso bem avaliar quem foi Guiomar como mãe. Recusava-se a viver como parasita de filhos; eles tinham suas famílias e era a elas que deveriam tudo. Fazer para seus filhos aquilo que havíamos feito para eles. Entretanto, o último dos seus sonhos – rezava todas as noites para que ele se concretizasse – não se realizou: o de ver um dos filhos, por concurso, titular da cadeira de Resistência dos Materiais, herdando muito daquilo que foi criado por um dos mais sérios professores universitários do pais, Telêmaco Von Langendonk. Planejávamos a grande festa da nossa vida em nossa casa que se tornou tradicional por elas, quando se transformava numa das esquinas de São Paulo, onde ela aguardava os companheiros para a boêmia lúdica que madrugava. E então naquelas horas a alegria dela era a alegria de todos e a alegria de todos era a alegria dela. E nossa casa se transformava num jardim de infância noturno onde os adultos brincavam com ela com a pureza das crianças. Quando íamos ao Rio, fazia sucesso nos bares do Cristal da Lapa até o Bofetada em Ipanema. E em todos portava-se com a mesma naturalidade de minha companheira, cercada de respeito. Existe na rua Farmo de Amoedo, em Ipanema, um bar no qual, por haver quase diariamente um rififi, é mais conhecido por esse apelido que pelo nome. Certo meio dia, achávamo-nos ali a tomar cerveja com manjuba frita em companhia de uns amigos boêmios quando, sem mais aquela, Guiomar soltou uma gargalhada dizendo: “Imagine se mamãe me visse aqui? Que escândalo!” Foi grande dama desde os ambientes mais simples até os mais sofisticados.
Queiram os fados que assista do Paraíso, onde por certo se encontra alegrando as crianças dali, os anjos, a festa que faremos em homenagem ao sucesso do nosso filho que é também seu sucesso. Há uma lenda bretã pela qual os espíritos dos mortos que ainda tinham certa missão a cumprir na terra, fiquem vagando pelos ares dos lugares em que viveram. O espírito de Guiomar continua, pois, pairando sobre a casa em que viveu e, pelo exemplo, modelou o caráter dos filhos e lhes preparou o sucesso. E queiram os fados que nossa festa de agosto ou setembro, lembrando o 48º aniversário de nosso casamento, quando seu espírito baixará entre nós para receber o prêmio do sucesso que preparou. E que seja uma consagração à memória de Guiomar, na qual, ela lamentará se vocês não se acharem presentes.
Como cristã deixou de freqüentar certas igrejas orientadas por certos padres onde, freqüentemente, ia confessar, assistir missa e comungar, em protesto contra a violação do templo por prédicas eivadas de mentiras e calúnias contra os comunistas e suas idéias, pois julgava-as ofensivas ao seu marido e companheiros que as professavam e possuíam caráter exemplar. Não professando minha ideologia, como cristã, professava a verdade e não o ódio. Quando aconteceram minhas prisões políticas portou-se com altivez, delicadeza e dignidade ante os tiras que vinham vasculhar minha casa à procura dos planos da Revolução Mundial que começaria, depois de assassina-las, por comer as criancinhas! Em abril de l964 um tira imbecil julgou-a, enquanto vasculhava a casa, suspeita porque era loura e, por certo, deveria ser russa. Mostrou-lhe sua carteira de identidade, mas isso o deixou ainda em dúvida porque afirmou, fazendo jus à sua imbecilidade, que nortista não poderia ser loira! Mais tarde esse fato lhe tirou gostosas gargalhadas. Mas o duro mesmo – eu já estava livre – foi ter de enfrentarmos a histeria odiosa de uma das minhas cunhadas. Procurou amigos influentes dos quais conhecia o caráter. E, talvez, por essa mesma qualidade, nada poderíamos fazer a nosso favor, pois que os “revolucionários” já, desde o primeiro momento, estavam fazendo sua panela. Na prisão eu soube pelo carcereiro que, por ordem de Adhemar de Barros, nós iríamos ser enviados a Cuba, União Soviética ou China. Quase voltei para a cela. Perguntei-lhe se Adhemar iria para Bagdad substituir o ladrão clássico! Logo ela soube o âmago do movimento vitorioso Procurada por um intermediário, refinado escroque, foi encaminhada à casa de um figurão “renovador” e entregou-lhe em mãos volumosa importância, o que nos quebrou financeiramente. Na noite seguinte fui solto sem nem sequer ser ouvido. Tenho o amargo orgulho de haver sido o primeiro, depois das multinacionais que o fizeram já no primeiro dia, o primeiro brasileiro que comprou um dos muitos corruptos que infelicitaram o Brasil por vinte anos. Já em casa, tive, numa das noites seguintes, de interromper a leitura, correndo para a sala onde se achava a televisão. Guiomar me chamava com insistência. É que, no vídeo, achava-se o comprado a quem entregara o dinheiro em mãos para soltar um homem preso só pelo crime de ter idéias. E que informava que fora nomeado delegado pelo governo revolucionário para erradicar de São Paulo a ... corrupção! E que, nem que isso lhe custasse a própria vida, haveria de extermina-la! Guiomar jamais gargalhou por causa desse fato; o nojo não faz gargalhar. Mas ele deu razão, mais uma vez, a Machado de Assis: “O cinismo é a sinceridade dos patifes.” Depois, por certas razões de proporções diferentes que violavam a autenticidade dos meus princípios, afastei-me de toda e qualquer atividade político-partidária. Nós éramos shakespeareanamente fiéis. “E, antes de mais nada, sê fiel a si mesmo.”
O fato de que só a notícia nos jornais haver provocado a frequência que, praticamente, lotou a igreja, demonstra que ela não viveu fisicamente em vão, porque viver é fazer amigos e deixar em cada um um pouco de si, criando um vasto círculo amical. Jamais, em toda sua vida, intrometeu-se em minhas amizades. Deixou-me escolher meus amigos e meus próprios inimigos. Pelo contrário incorporou-os como seus. Foi sempre amiga de todas as crianças sem distinção de classe ou de cor. Viveu para com eles, segundo os Evangelhos: “Capítulo 18. Mateus 1 – Quem é maior no reino dos céus? 2 – E Jesus chamando um menino, o pôs no meio deles. 3 – E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus.” Considerava-os como passarinhos da terra porque eu lhe dissera que os passarinhos eram as crianças do céu. E assim eu, meus filhos e a nora Edna nos comovemos ao constatar que as primeiras filas dos bancos da igreja achavam-se ocupadas pelos moleques da nossa rua, seus pais e tios. O contraste com o que representava o escol paulistano foi um reconhecimento às suas qualidades samaritanas. Ela criou o centro de gravidade de minha existência, e perde-la, foi perde-lo. Mantive-me durante muito tempo a procura de outro que as recordações me darão, para deixar a instabilidade e adquirir a estabilidade, mas num outro plano. Assim na hora que me vieram dar o cumprimento de solidariedade, ao final da missa, não reconheci muitos amigos. Foram meus filhos e minha nora Edna que comentaram o fato. Quem lhe pede perdão pelo fato não sou eu; é Guiomar. Ela era a minha face de finura e educação.
Quando em 29 de agosto de 1985, precisamente no dia em que comemorávamos 45 anos de felicidade conjugal, recebi o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo e a Medalha Anchieta, ante um auditório lotado que nossa dignidade construiu, encerrei a oração com as seguintes palavras: “No convite convocatório, Marcos Mendonça, Presidente da Câmara, e Walter Feldman, o vereador proponente, justificaram a presente a homenagem da cidade como tributo aos relevantes serviços prestados por mim à coletividade. Creio que para a cidade de São Paulo, o maior dos serviços que prestei, foi de trazer Guiomar, minha mulher, desde Belém do Pará, com quem precisamente, hoje, comemoro 45 anos de casamento. E, como no início desta oração, transferi, como parte do pagamento da dívida contraída com meus pais, esta homenagem, eu solicitaria que lh’a entregassem para depositar aos seus pés, como portadora, quando for para o Paraíso onde eles se acham, porque, eu mesmo, permanecer solto pela eternidade a ver se me encontro com Lúcifer e Prometeu para juntar-me a eles no coro contra os poderosos. E, talvez, no dia do Juízo Final, eu me encontre com Milton e Ésquilo e eles aproveitem esta oração que acabo de pronunciar.” Guiomar, a estas alturas, já se reuniu no Paraíso aos meus pais que lhe agradeceram a entrega da homenagem da qual foi portadora. Mas, mais que isso, vão se lamentar porque faltarão as orações que ela ia fazer, freqüentemente, à beira da sua sepultura no cemitério de Itu. Gostaria que a doutrina da metempsicose fosse positiva. Então ela renasceria como uma quaresmeira para enfeitar a primavera tumular até o dia que retorne ao mundo como mulher para alegrá-lo”.
Stecchetti, um poeta italiano, poetou: “Os mortos só começam a morrer quando os vivos começarem a se esquecer deles.” Não deixem que Guiomar morra; não a esqueçam. E, ao ler estas linhas, vivamos Hamlet, de Shakespeare: “Jamais vos esqueceremos.”
Emílio Moura, um poeta mineiro, versificou: “Eu fiquei só diante da vida / e todas as coisas me amedrontam.” Não me deixem só. Não quero ter medo. E se me amedrontasse, envergonharia a memória de Guiomar.

__________________________
*Eduardo Maffei, médico, jornalista, escritor, historiador, ativista do Partido Comunista no Brasil, na época da Ditadura Vargas e noutras épocas, publicou quatro romances, um dos quais, “Maria da Greve” foi lançado em Teresina, e mais um livro de ensaio-histórico sobre a luta contra o fascismo no Brasil. Faleceu em São Paulo, no começo de 199l.

_______________________________
** Maria Guiomar Moreira Maffei foi em vida a mulher do médico e escritor Eduardo Maffei. Companheira, datilógrafa, secretária e musicista. No viés em que se encontrava, sua morte antes da de seu esposo, em 1º de abril de 1998, resultou em grande perda para as letras e para a cultura brasileira.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui