Nos Estados Unidos, costuma-se (ou se costumava) perguntar: o que vc estava fazendo quando recebeu a notícia da morte do Presidente Kennedy?
Pergunto agora: o que você estava fazendo nos dias 31 de março e primeiro de abril de 1964?
Eu estava em casa. Paralizada com as notícias que me chegavam pelo rádio - como se fosse uma partida de futebol, descrevia-se a confusão na rua Maria Antónia, na Faculdade de Filosofia, onde eu estudava; estudantes do Mackenzie, do outro lado da rua, já estavam ensaiando a batalha de garrafas de vidro (algumas eram as Molotov) que acabaram decolando contra os estudantes da USP. Um colega nosso, do Chile, levou tanta cassetada que perdeu os poucos dentes que tinha na suas gengivas expostas sempre que ria. Nunca mais soube dele. Espero que tenha voltado para o Chile. Mas com a morte do Allende, espero que ele tenha ido para um outro país. Quem sabe onde estará aquele rapaz franzino, cheio de ideais, bem humorado, sem dinheiro, com fome, que nos ajudava a comer as fritas e a beber a cerveja. Os rapazes não gostavam dele, justamente porque ele era o xodó das moças. Ninguém sabia o que ele estudava. Acho que ele não estudava coisa nenhuma, mas se encostava na turma da USP para algum aconchego intelectual e outro menos tal-qual.
A mudança de regime político aconteceu no dia 31 de março ou no dia primeiro de abril?
Depende do lado da rua Maria Antónia que se frequentava. Para os que andavam pelas calçadas da USP, o golpe foi uma farsa - portanto, uma piada de primeiro de abril. Para a turma do Mackenzie (para quem nao sabe, a Universidade Mackenzie é particular, fundada por um grupo de americanos, creio que alguns pastores ou reverendos - a escola tornou-se símbolo da classe alta, pois estudar lá saía muito caro) - pois para a turma do Mackenzie, a Revolução (letra maiúscula, olhe lá!) deu-se seriamente no dia 31 de março. Foi uma Revolução que salvou o Brasil do comunismo ou do socialismo - já que se não distinguia uma coisa da outra. Mas os dois
-ismos representavam um perigo que deveria ser cortado pela raiz. Antes que se espraiasse, o que resultaria numa expansão pelo sul do Atlàntico, atingindo a África ocidental, daí então levando o mundo ao buraco total. - Tudo isto foi explicado ad nauseam pelos valorosos atiradores de pedras e paralelepípedos, do alto da muralha mackenzista, nos estudantes da Maria Antónia.
Eu estava em casa. Não só porque morava muito longe da Maria Antónia, como também meus pais me proibiram de voltar para a Faculdade enquanto as coisas nao se acalmassem. - Ficamos sem aulas, encontrar os professores eram desafios constantes. Gente que ficou muito importante depois esqueceu tudo aquilo. Gente que desapareceu no anonimato nao quer se lembrar de mais nada. Gente que nunca voltou à superfície da vida devem estar flutuando entre as calçadas, o jardinzinho onde estava aquela biblioteca infantil, perto do barzinho onde o Chico Buarque de Holanda tocou uma vez seu violão... deve estar descendo e subindo a Rua General Jardim, procurando seus colegas. Que ninguém sabe onde estão - se é que estão.
Os espíritos não encontrarão mais nada daquilo que foi. O barzinho da esquina, aquele café delicioso - as moças querendo pagar um café para aquele professor lindíssimo, de olhos claros, risonho, um pão naquele guarda-pó branco, com seu nome bordado em linha azul-marinho: Fernando Henrique Cardoso.
A roda da vida dá suas voltas .... alguém já ouviu declaração mais original do que esta? Não? É porque não sabem que nada como um dia atrás do outro . ....
