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Contos-->Eternos Vínculos Provisórios -- 18/10/2005 - 18:20 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A decisão fora de fácil tomada. Alexandre nem precisou ponderar muito para decidir-se por ir caminhando até sua casa. A noite começava a cair morna, límpida, e o tráfego exagerado de veículos nervosos, disputando centímetros nas ruas abarrotadas, mostrava-lhe que chegaria em casa mais rápido a pé que tomando um táxi. Na verdade, ele sentia um certo prazer quando não tinha opção melhor para voltar para casa que caminhando. Era um momento de solidão, de devaneio. Naquele dia, em especial, deixava o escritório mais cedo que normalmente, pouco após as seis da tarde, o que o garantia chegar em casa, mesmo com a longa caminhada por vir, ainda antes do horário habitual.

A caminhada não tomaria mais de uma hora, e não haveriam subidas nem trechos ermos ou de alguma forma perigosos, enfim, um passeio agradável.

O sol alaranjado dava um charme diferente àquele crepúsculo, tornando o passeio mais prazeiroso do que em vezes anteriores.

Alexandre tomou a rua do escritório e andou sem pressa, pouco observador, bem distraído. Considerava-se um pedestre educado e atento, dada a prática quase-mais-que-esporádica, ao medo incutido pelos pais desde criança e à lembrança do Tio Tato, de quem não se lembrava da pessoa, mas da trágica história do atropelamento fatal por um ônibus em um passado não identificado. Nunca atravessava fora da faixa de pedestres nem deixava de olhar para ambos os lados, mesmo em ruas de mão-única.

Quinze ou vinte minutos depois de começar a jornada, mais distraído e relaxado que de costume, ele foi sacudido por um estrondo, um barulho surdo e forte vindo de poucos metros ao seu lado, causando-lhe pavor imediato. Sem sequer ver do que se tratava, sentiu algo muito ruim, inexplicavelmente ruim.
Ainda tentando assimilar o primeiro efeito do estrondo, notou um objeto deslizando em sua frente, chamando-lhe a atenção e atraindo-lhe o olhar. Rapidamente o objeto se mostrou um corpo, um corpo de homem, azul, basicamente azul por conta das roupas, parecendo flácido, com os membros a moverem-se de forma confusa, causando sensação horripilante em Alexandre. Nunca vira nada assim, e sua reação surpreenderia a ele mesmo quando lembrasse daquele momento.
Correu os poucos metros que o separavam do corpo, e pareceu o único dos muitos que estavam por ali a mobilizar-se para socorrer o coitado. Ajoelhou-se, e a lucidez chegou a ele, fazendo-o tomar o cuidado de apenas observar o corpo e procurar entender o que se passava. Observou bem o corpo estirado, notou o braço virado em posição que denunciava uma fratura, e percebeu tratar-se de um homem, talvez dez ou quinze anos mais velho que ele, já no que se considera a meia-idade, vestido por uma calça azul e camisa pólo também azul. Aparentemente tratava-se de uma pessoa de bom nível social, talvez alguém como ele, que saíra do escritório e caminhava com rumo certo, provavelmente para casa.
Todo o susto se dissipara, Alexandre sentia-se sereno, com certo controle sobre si e seus nervos, analisando o quadro e percebendo diversos transeuntes curiosos, reticentes em participarem do enredo que se desenhava, apenas observando. Ouvia ainda alguns berros mal-endereçados pedindo por socorro e telefonemas para o “Resgate”, polícia, ambulância, enfim, pedindo socorro a quem pudesse ouvir, e vir.

Alexandre sabia que quanto menos mexesse no corpo, melhor. Procurou por sangue e quase não viu nenhum, a não ser por um dos cotovelos, o do braço que não estava aflitivamente virado, que apresentava sinais de esfolamento e mostrava a tal carne-viva, mas sem sangrar demais.
Alguém aproximou-se de forma mais perturbada que os demais, abrindo espaço na pequena multidão e explicando que tratava-se de acidente, que o sujeito “surgira do nada”. Com certeza esse era o motorista-protagonista, um rapaz de pouco menos de trinta anos, lívido e aparvalhado, que não parava de falar as mesmas coisas com palavras diferentes, sem escolher nem definir interlocutores.
Alexandre sentiu repulsa imediata pelo sujeito e virou-se para expulsá-lo de lá, mas a vítima balbuciou algo e chamou sua atenção.

- Ele está vivo! Ele está vivo! Está falando! Amigo, tá me ouvindo? Você tá bem?
- Ai, desculpa moço! Desculpa! Ai, que que aconteceu?
- Calma amigo! Calma! Você sofreu um acidente. Não tente se mexer.
- Me leva daqui! Pra casa!
- Não mexe, moço! Não mexe! A ambulância tá chegando. Vai dar tudo certo!
- Eu não vi o seu carro! Aiiiiiih!
- Não fala nada! Calma!
- Foi o meu carro! Você tá bem?
- Deixa ele, cara. Depois você fala com ele. Pessoal, abram a roda! Deixem ele respirar! Cadê o resgate, droga?!
- Meu pé, meu pé.
- O que tem o seu pé?
- Olha o meu pé, o pé!
- Estou vendo o seu pé, tá tudo bem com ele. Fica calmo, você jajá tá no hospital e tudo vai ficar bem. Você vai ficar novo.
- Meu pé está frio! E o meu peito dói!
- Ele bateu o peito no vidro do carro. Eu pude sentir isso!
- Tá tudo bem, amigão! Como é o seu nome?
- Jandir, meu nome é Jandir! Meu pé está frio.

A essa altura, Alexandre sentia-se à vontade liderando a situação. As pessoas ao redor atendiam seus comandos, e alguém chegou a tomá-lo por médico pelo que pode perceber no zum-zum-zum entre os presentes. Sabia que nada poderia fazer a não ser confortar um pouco o sujeito e evitar que algum desavisado mais afoito mexesse no corpo inerte. Algum iluminado colocara uma malha de lã sob a cabeça de Jandir e isso pareceu bem adequado, compondo melhor a cena e adequando-a à espera do prometido resgate.
Alexandre buscava imaginar o que poderia fazer naquele momento que fizesse alguma diferença positiva para a vítima. Já não sentia raiva do motorista, que lamentava para todos o ocorrido e mostrava-se solicito e ansioso por assumir que era ele mesmo quem dirigia o carro, apresentando também sua versão do acidente, que depois viria a ser corroborada por testemunhas da cena.

- Jandir, respire com calma, me diga se sente alguma dor.
- Você é médico?
- Sou. – mentiu Alexandre sem pensar o porquê.
- Dói muito.
- Aonde? Aonde dói, Jandir?
- O peito, e o pé. O peito dói.
- O pé está bem. Fique calmo. O peito vai ficar bom, não parece ser nada sério, só o susto.
- Chama a Laura, a Laura. Lauraaaaaaa!
- Quem é Laura? Sua mulher.
- A Laura, tragam a Laura. Avisem ela. É minha mulher, a Laura.
- Vamos avisar a Laura, qual o telefone dela?
- Liga pra ela. A Laura tá em casa.
- Vamos chamá-la, fique calmo. O braço dói?
- Dói. Tem espinho no braço. Tira o espeto do meu braço, droga.
- Jandir, vou cuidar do seu braço. Vai ficar tudo bem. Jajá você tá novo. Confie em mim.
- Obrigado, doutor!
- Fica calmo!
- O Dudu não pode saber. Não conte pró Dudu.
- Não vou contar, pode acreditar. Ninguém vai contar.
- Meu filho.
- O Dudu é seu filho?
- É. Dudu, meu filho.
- Pode ficar tranquilo, ninguém vai falar pra ele.
- Ele trabalha no Citibank. É importante lá.
- Que bom. Não mexa aí.
- Ainda vai ser presidente de banco. Tô com frio!
- Uma malha, um casaco, por favor. Alguém arruma uma malha logo, porra!

Algumas peças de roupa caíram rápido sobre o corpo e nos braços de Alexandre. Algumas malhas, uns pulôveres, e algumas peças não facilmente identificáveis, que logo foram colocadas sem critério algum sobre o corpo de Jandir. Alexandre olhou para ver se notava a presença de uma ambulância por entre os carros que pareciam não se mover e notou muitas cabeças voltadas para ele, para a cena que protagonizava com o acidentado. Eram pessoas que perguntavam o que ocorrera, ofereciam ajuda e não eram poucos os que pareciam fazer o sinal da cruz ao verem a cena. Doeu-lhe na alma ver o tal que dirigia o carro atropelador sem a camisa, mostrando o físico esquálido e o rosto apavorado. Provavelmente atirara a camisa que vestia em meio às roupas que aqueciam Jandir. Alexandre quis chorar, as lágrimas chegaram-lhe aos olhos, mas recolheu-as antes que denunciassem seu despreparo e desespero para a vítima.

- Que orgulho, hein!? Parabéns pelo Dudu.
- Não deixem o Dudu saber. Ele vai se aborrecer. Ele é muito fraco para essas coisas.
- Você tem mais filhos?
- Não, só o Dudu, minha vida. Minha vida, o Dudu e a Laura. Cadê a Laura?
- Ela vai nos encontrar no hospital.
- Você falou com ela?
- O pessoal aqui falou, ela vai pra lá.
- Obrigado Doutor! Obrigado! Estou cansado, muito cansado. Com sono, estou com sono.
- Não, não durma. Você não pode dormir. A Laura está chegando.
- Laura! Laura!
- Ela já vai chegar, não durma. Eu não vou saber quem ela é se você dormir. Segura aí, Jandirzão.
- A Laura vem pra cá?
- Falaram que ela está chegando. Estava por perto e já deve chegar.
- Ah, Laura.

Jandir começara a tossir demais, uma tosse fraca mas insistente que jogou na camisa de Alexandre pequenos perdigotos de sangue. Seus olhos pareciam fracos perante a vontade de fecharem, mas insistiam em permanecerem abertos, fitando Alexandre sem desviarem um segundo sequer.

- Jandirzão, o que você faz da vida?
- Jandir Mármores. Eu sou o Jandir, da Jandir Mármores.
- Que legal! Devo ter sido seu cliente, quem sabe?
- Temos de tudo em mármore, trazemos coisas da Itália também.
- Puxa, que bacana.
- Cadê a Laura?
- Jajá tá aí. Calma. Olha, pra que time você torce?
- São Paulo. Sãopaulino, roxo.
- Então você tá rindo a toa! É tricolor, goleou o meu Santos semana passada.
- O Santos é freguês antigo. Se não fosse o Pelé...

A inclusão do futebol no dialogo fez Alexandre sentir uma ponta de ânimo, e arrancou alguns risos da pequena multidão ao redor.
As pessoas deram passagem para um rapaz que apresentava-se como médico, que foi logo dirigindo-se a Alexandre.
- O colega quer alguma ajuda?
- Você é médico?
- Sou residente. Quer alguma ajuda?
- Quero sim, a porcaria do resgate não chega. Ele está com frio e sono.
- Você é médico?
- Não sou, não. Estou ajudando e animando ele. O nome é Jandir.

Jandir olhava fixamente para Alexandre, e parecia não perceber o dialogo que corria.

- Seu Jandir, o senhor está me ouvindo? Seu Jandir, eu sou médico, fala comigo!
- Médico? Quanto médico! Cadê a Laura? Aqui é hospital? Lauraaa!
- Seu Jandir, a gente já vai pro hospital. Tá ouvindo a sirene. Estamos indo pro hospital em poucos minutos. Fique calmo e preste atenção em mim.
- Cadê o doutor?
- Sou eu, pode falar.
- Não você, o doutor que estava aqui.
- Estou aqui, Jandirzão. O doutor aqui, meu colega, vai te ajudar. Ele é especialista. Fale com ele.
- Chame a Laura, por favor.
- A ambulância, graças a Deus!

Com duas rodas sobre a calçada, o veículo do “resgate” chegara, e dele saíram três médicos, ou paramédicos, espalhando sensação geral de alivio.

- Afastem-se todos. Espaço! Espaço! O que aconteceu?

Alguém deu um breve relato para o pessoal do “restate”, que rapidamente assumiu a situação e em minutos já transportavam o acidentado, completamente imobilizado sobre uma prancha de madeira, para dentro do veículo. Alexandre mal teve tempo e oportunidade de relatar sobre o frio e o sono para a equipe responsável, que colheu informações também com o médico-residente.
Jandir cruzou olhar com Alexandre antes de entrar no carro e lançou-lhe um improvável sorriso, trêmulo e amarelado, mas suficiente para arrepiar os pelos do braço de Alexandre.

- Quem está com ele?
- Eu, eu vou com ele. – disse Alexandre dirigindo-se à porta de entrada da ambulância.
- Você é parente?
- Não, mas eu ...
- É médico?
- Não, não sou médico, mas eu que ...
- Só parente ou médico.

Alexandre sentiu vontade de pular no pescoço do sujeito uniformizado que parecia indiferente à situação extrema que se passava, mas conteve-se e pode ver o rapaz, o médico-residente, apresentar-se e embarcar junto com Jandir ao hospital.

Ainda com metade do carro sobre a calçada, a ambulância seguiu por mais uns metros, dobrou a esquina e em dois minutos nem mais se fazia ouvir a sirene por ali. Alexandre ficou em pé, mudo, arfante, por mais dois ou três minutos sem pensar em nada, recuperando-se tardiamente do baque gerado por toda a situação. Alguns deram-lhe tapas nas costas, outros apenas comentaram sobre o acidente, e em pouco tempo a pequena multidão dispersou-se e nem sequer entre os que por ali trabalhavam, em bares, banca de jornal e afins, podia-se ouvir sobre o acidente.
Alexandre retomou o rumo de casa, andou por mais uns quarenta minutos até chegar, e durante esse tempo telefonou pelo celular para os amigos que conseguiu encontrar, além de ligar para Cláudia, sua esposa, e contar a todos sobre o ocorrido.
A caminhada ajudou-lhe a se livrar do peso gerado pelo evento, e chegou em casa quase recuperado do trauma.

Após tentar levar a noite normalmente, tomou o telefone e ligou para dois hospitais que sabia serem próximos ao local do acidente.

Dudu e Laura foram facilmente identificados por Alexandre. Ambos abraçados, recebendo uma fila de pessoas com calorosos abraços e palavras de conforto. Alexandre limitou-se a ficar numa poltrona, chorando copiosamente, sem falar com ninguém. Ele nunca soube explicar, nem ao menos entender, o motivo de não ter sequer dado os pêsames para Dudu e Laura. Até hoje ele pensa que nunca saberia explicar aqueles eternos vínculos provisórios estabelecidos com Jandir naquele fim de tarde de um e fim de vida do outro.
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