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Contos-->Voto no Distrito -- 14/10/2005 - 16:30 (Ione Garcez Vieira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130693288541344100

Maine Vallery
O Voto no Distrito



Todos estavam reunidos, Pompeo limpou a garganta
com um gole de canha e, antes de iniciar o discurso
em apoio ao candidato Alencar Alves, começou o
tiroteio. As balas vinham de todos os lados, colocando a
nação indígena em disparada. Flores atirou-se ao chão,
sendo seguido pelos fiéis anões, mais pareciam rajadas
de metralhadoras.
Pânico geral, segundo relato do próprio
deputado.
– Vi a morte de perto. Me atirei ao chão com os
meus anões. Pensei que ia morrer. A polícia foi chamada.
Apareceu um fusquinha da BM, levantando poeira, com
um soldado solitário na direção. Foi colocado a correr.
Nem chegou a desembarcar da viatura.
O confronto só terminou quando os líderes das
duas facções foram alvejados em frente ao palanque,
sendo levados às pressas para o hospital da cidade
mais próxima.
– Passei a dar mais valor à vida – desabafou o
deputado. (Acontecido no interior do Rio Grande do Sul
e publicado pela imprensa local.)

– O senhor não acha que todo esse barulho agora
é por causa do voto distrital? A política deixou de ser
4
alguma coisa distante, a gente votando em gente que
nunca viu antes e nunca mais vai ver outra vez?
– Olha, até pode ser, faz sentido esse seu raciocínio
e, se é como está dizendo, a política vai ficar uma
coisa bonita da gente acompanhar. Está certo, agora não
tem mais aquela de votar em que a gente nunca viu antes
e que nunca mais vai ver outra vez... Ela vai entrar nas
veias da gente e vamos ter de controlar os nossos assuntos
políticos como a gente cuida da saúde da gente. Estou
começando a gostar mesmo, só tem uma coisa, vamos
desarmar a turma, senão fica perigoso demais... Ou não?
– Fica, fica mesmo. Mas, vamos entrar nessa?
– Gostei. até domingo, lá no Partido. Vamos ver
de perto como fica essa jogada toda.
– É, e vamos começar a discutir o nome dos
candidatos, a gente da casa, gente que a gente encontra
todo o dia...
– À saúde, né.
Na reunião do Partido, apareceram o prefeito (um
sujeito retórico, fingido, ardiloso, que busca o poder a
qualquer preço e seu chefe de Gabinete, que maneja o
poder como poucos e que de forma hábil fabrica crises e
tece intrigas; o advogado mais inteligente e mais esclarecido
do lugar, um liberal; um operário, quieto, desconfiado,
e até uma professora, que embora tenha sentido o
ambiente um pouco hostil, não se deu por achada, sentou
à vontade, pois queria ouvir, saber das novas regras. Foi
assim que os dois amigos, que acertaram entrar no
assunto, encontraram o ambiente...
5
– Isso está começando bem, não acha?
– Se acho. Fica atento.
– É só o que estou fazendo...
– Não podemos nos entusiasmar demais com
essas notícias que estão chegando por aí, temos que lembrar
e ser agradecidos ao deputado Flores, afinal ele está
sempre presente por aqui e neste ano mesmo mandou
muitas verbas para nós, disse o prefeito, com ares doutorais.
Aqui está o meu chefe de Gabinete para confirmar o
que estou dizendo, não é Alencar?
– Mas sem dúvida Prefeito, eu até trouxe alguns
dados, não quero que ninguém tenha dúvida disso. E se
alguém quiser saber tudo, estão aqui, à disposição.
– Não é preciso, disse a professora Mara, para
surpresa de todos, pois achavam que ela estava até constrangida
no ambiente.
– A senhora não precisa ser agressiva, seu jeito
não nos tranqüiliza, nós queremos hoje aqui é buscar o
melhor para o nosso futuro político, disse o prefeito, que
acrescentou: todos terão espaço. Quando eu falei só queria
mesmo era dar crédito a quem tem por merecer, como
o nosso atual deputado, o Ricardo Flores.
– É, disse apressado o chefe de Gabinete: não fica
bem, embora estejamos no Partido, em reunião fechada,
começarmos com desconfianças e mal-entendidos.
– Os senhores foram mais precipitados do que
eu, talvez porque, de fato mesmo, guardem outras intenções
que não são, absolutamente, boas para o nosso
futuro político.
– Eu gostaria de conversar com a professora,
depois deste encontro, quero esclarecer alguns detalhes...
6
– Não é necessário que seja depois, prefeito.
Afinal, estamos entre companheiros de causa, ou
não é assim?
– A professora Mara está certa, interrompeu o
advogado. E vamos deixar bem claro, desde logo, que
precisamos ter como candidato do nosso Distrito um
homem daqui, que não serei eu porque não é isso o que
eu vim fazer aqui. O que o prefeito diz disso?
– Eu não digo nada, estou me sentindo pouco à
vontade com essa discussão...
– É, disse o chefe de Gabinete, vamos encerrar a
reunião, pois pelo jeito não entenderam nada.
– Ninguém entendeu nada errado, o prefeito é que
gosta de fazer as coisas erradas, ao jeito dele, arrematou o
operário, que saindo do seu silêncio, ficou em pé, cheio
de entusiasmo.
– Hi, pelo jeito tem complô aqui: veja o entusiasmo
do Juarez, prefeito, disse o chefe de Gabinete, que
acrescentou: por que vocês, de repente, resolveram tão
decididamente entrar na política?
– Porque as regras mudaram, fique sabendo,
senhor prefeito, e seu ilustre chefe de Gabinete. Agora a
gente vota em gente que a gente conhece e que volta a
encontrar e discutir planos para o futuro, o nosso futuro,
também depois da eleição, disse o Fonseca, olhando para
o seu amigo Rogério e confirmando o discurso que
haviam combinado.
– Meus amigos, conheço a nova Lei, e o que
o Fonseca disse está absolutamente certo. As regras
mudaram ou só o prefeito e seu chefe de Gabinete não
sabem disso?
7
A reunião do Partido terminou com essa última
intervenção. E como a Lei, a vida no Partido também
mudou. O prefeito e seu chefe de Gabinete saíram apressados
e nervosos. Sentiram a força dos novos ventos e
pensaram – é preciso repensar o futuro.
Será que teriam futuro, os dois?
O assunto foi do Partido para a praça principal, já
no dia seguinte. O jornal A Cidade trazia uma manchete
de chamar atenção: O GOVERNO MUNICIPAL PERDE
FORÇA NO PARTIDO e revelava em detalhes toda a
reunião. Claro que todos queriam saber mais e volta e
meia chegava um trazendo mais uma novidade. O conceito
do prefeito foi por terra, pois o que lhe garantia
poder era exatamente o respaldo do Partido, que era
muito forte, afinal, o próprio presidente da República era
correligionário. Foi no meio dessa confusão que o chefe
de Gabinete chegou ao grupo, trazendo de encomenda
uma notícia: o prefeito falou com o deputado Flores e ele
achou ótima a idéia que o candidato desta vez seja daqui
mesmo, até porque não vai mais concorrer, mas acha que
pode e, até deve, coordenar esse processo. O prefeito já
tomou as providências e está convocando todos os filiados
para discutirem o assunto.
– Fonseca, não estou gostando dessa manobra!
– Nem eu...
– Então amigo, vamos tratar de reunir os amigos
e aglutinar as forças. O homem não pode ser mais ligeiro
do que nós...
– Dá um pulo na casa da professora Mara e pede
par ela reunir o maior número possível de correligionários
e, por favor, vamos nos organizar. Pede pra ela secre-
8
tariar a reunião porque desta vez – como diz o ditado –
não vão nos pegar de calça na mão.
– Está certo. Também acho que devíamos procurar
o Juarez, achei ele muito corajoso e determinado na
reunião do Partido.
– Perfeito e vê com ele quem mais pode ser chamado,
vamos mostrar força, o seu Alonso vai ver que ser
prefeito não é tudo, é preciso ter força política e respaldo
dos correligionários.
– Rogério, estás te revelando.
– Isso que eu ainda nem comecei, vou com sede
nessa briga.
A reunião começou um pouco tarde porque a
cada início da discussão, um novo grupo chegava e era
preciso dizer a cada um o que havia acontecido e o que os
líderes do novo grupo agora buscavam. A professora
Mara, a mais entusiasmada, trouxe para a reunião algumas
mulheres e tratou, desde logo, de deixar claro que o
grupo feminino, de ora em diante, teria uma presença
marcante no Partido e nas disputas eleitorais, o que deixou
alguns bem surpresos. Estavam com ela algumas
mulheres conhecidas da sociedade, como a esposa de
Rogério e de Fonseca e várias professoras e também a
médica Orfila, a única representante feminina do corpo
médico da cidade.
– E qual de vocês será a candidata? Perguntou
um anônimo.
– Não sabemos ainda, mas podem ter a certeza de
que daqui sairá uma candidata, não sabemos se pra estas
eleições ou pras próximas, isso vamos resolver conver-
9
sando, sem conchavos, como costuma ser feito, respondeu
a professora Mara, rindo muito no meio da risada das
outras mulheres.
A reunião do grupo era alegre como a do grupo
das professoras, todos mostravam no rosto uma renovação,
uma esperança:
– Bem, acho que agora podemos iniciar o nosso
debate e ver quais são as nossas propostas, as novas propostas,
disse Fonseca, já meio falando como candidato.
– O Fonseca está certo, não podemos nos cansar
com protelações, com discussões que não levam a nada,
vamos tratar logo do que serve, argumentou o Rogério,
que chamou para a mesa a professora Mara e o operário
Juarez, os dois representantes de duas classes bem
expressivas. Acho que devemos fazer a eleição do nosso
grupo – claramente dissidente da ala que lidera o Prefeito
Municipal – por aclamação e, assim sendo, proponho que
o Fonseca seja escolhido o novo candidato para a eleição
majoritária e a professora Mara a nossa candidata à eleição
proporcional.
Fortes aplausos, de mais de cem pessoas se fizeram
ouvir e, tanto Fonseca, como Mara, mostraram surpresa
com aquilo, pois que não era, nem de longe, o
desejo imediato de ambos. Rogério, de fato, estava
fazendo o que prometera, sua estratégia estava perfeita.
Fonseca até que entendeu, mas a professora Mara não
sabia disso e porque não sabia, falou:
– Estou surpresa com essa decisão, que imaginei
seria mais discutida, mais elaborada, se é que
me entendem.
– Surpresa ou não, és a nossa candidata, não vistes
os aplausos? – É preciso exercer a democracia e aca-
10
tar a decisão da maioria, disse Rogério, apressando-se
para evitar qualquer retrocesso na estratégia que havia
formulado na sua cabeça, já que pensava agora com
muito carinho na sua ida para a Prefeitura.
Novos aplausos se fizeram ouvir e Mara resolveu
discursar, abrindo assim o novo momento do Partido
do Governo:
“Não era esse o meu propósito, não era essa a
minha intenção. Com ninguém troquei idéia antes sobre
esse assunto e a surpresa que sinto é testemunha da
minha sinceridade. Mas não sou pessoa de recuar como
não recuei ante a pressão exercida pelo prefeito na última
reunião do Partido, quando ficou surpreso de me ver ali.
Vivemos novos tempos, com certeza. E esse momento,
que se traduz na candidatura do Fonseca e na minha, é
uma prova disso. Ou alguma mulher nesta cidade foi
antes candidata a alguma coisa?
E diante desse fato, que transparece mudança,
devemos lutar soberbamente, até alcançarmos todas as
mudanças que temos falado e temos buscado. Me ajudem
nesse trabalho e, podem ter certeza, todos terão vencido.
Muito obrigado.”
Aplausos, aplausos e aplausos foram ouvidos e
no meio deles a voz do chefe de Gabinete:
– Democracia significa transparência, significa
participação de todos e por que – se essa é a proposta dos
senhores – o prefeito municipal, autoridade maior do Partido
na cidade, uma vez que foi eleito pelo povo, não foi
convidado, não foi sequer comunicado desse encontro?
– Porque ele desmoralizou a nossa sigla e constrangeu
os seus correligionários, respondeu Juarez, que
olhando para Fonseca, pediu que falasse:
11
“Não pretendo constranger o nosso companheiro,
assessor do prefeito municipal, como tantas vezes o
nosso prefeito fez conosco. A resposta à sua pergunta ele
mesmo que dê. E, agora, conclamo nossos companheiros
a cantar o Hino Nacional, em homenagem
maior à nossa cidadania e aos novos tempos que estão
chegando por aqui.
Todos de pé, com o rosto erguido, cantaram o
hino. O único a baixar a cabeça, foi o Alencar, que de tão
humilhado pela força daquela maioria parecia menor, até
no seu tamanho.
– Não posso acreditar no que estou ouvindo,
disse aos gritos o prefeito, mas a mulher dele, Olga,
interrompeu:
– Não te faz de surdo outra vez. Quando não te
convém, como sempre, esbravejas e queres a situação
diferente. Enfrenta a realidade, homem, está na hora de
seres mais humilde e te lembrares do momento quando te
fizeram candidato. Correspondestes? Me diz, me diz,
estamos aqui em casa, com o Alencar, chega de gritaria,
fala mais baixo e age mais alto porque de outra forma não
tens mais futuro nessa merda de política.
O homem baixou a cabeça, triste. A mulher sabia
o que estava dizendo. O olhar de susto do Alencar confirmou
tudo isso.
– Se é assim, não quero mais saber de política...
– Pois eu quero, disse a Olga, pois se tu não fizestes
o que tinhas que fazer, eu faço. Se tu não te animas a
enfrentar essa gente, eu enfrento.
12
– Não dona Olga, não faça isso, o doutor Alonso
sabe o que faz.
– Sabe nada Alencar, nem ele e nem tu. Ou existe
algo que eu não saiba? Se for assim, por favor, me digam,
que é pra eu não fazer papel de boba como vocês parecem
que estão fazendo.
– Não, não é bem assim, Olga, disse Alonso,
agora mais refeito da reação da mulher. Vamos conversar,
é interessante a tua reação, mas acho que não precisa
tudo isso. Tu até parece a professora Mara. O que deu
nessas mulheres Alencar?
– Eu não sei doutor, mas elas assustam...
A Olga foi pra cozinha fazer um café, precisava
se refazer, o desabafo foi grande, estava na hora de acontecer
e enquanto estava pela cozinha ruminando o efeito
do que dissera, ouviu o Alencar dizer para o seu marido:
– Por favor, Prefeito, aonde que estamos, imagine
se o pessoal lá fora fica sabendo dos gritos e desaforos
que o senhor foi obrigado a ouvir da sua mulher? –
Aí sim está tudo terminado. Olhe, se isso acontecer,
não conte mais comigo, não sou homem pra ser mandado
por mulher.
– Também não é assim, Alencar. A Olga é
uma mulher sensível, ela percebe as coisas. Na verdade
eu estava meio desanimado, deixando as coisas
muito à deriva.
– Bem, agora estou gostando. E quando eu digo
que não recebo ordens de mulher também é um pouco de
exagero, a gente tem que se acostumar aos novos tempos.
Falando nisso, acho que o nome que tem que ser lançado
13
pela nossa ala é o de dona Olga, já pensou ela enfrentando
a professora Mara, com todo o nosso respaldo?
Hein, prefeito, que tal?
– Não dá, não. Uma que a Olga não está preparada
pra isso, outra que o candidato sou eu, entendeu?
– Bem, eu não sabia desse seu acerto com o Flores.
Se é assim, fico fora, porque também fui traído, não
sabia disso e me sinto bastante mal.
– Que é isso Alencar, depois da Olga vem tu pra
me atrapalhar?
– Olha, e pelo jeito já atrapalhei demais. Até
outro dia.
– Vem cá, Alencar. Não pode ser assim...
– Eu também acho, mas quem quis isso foi
o senhor.
E já na calçada, gritou:
– Dona Olga tem razão, dona Olga tem razão...
– Do que você está falando, Alencar? Perguntou a
secretária do Partido, a dona Suzana, que vinha passando
naquele instante.
– Do jeito do seu Alonso fazer política, eu
cansei, estou fora.
– Não me diga, isso vai dar o que falar...
– Se vai... E se quiser pode contar pra todo o
mundo, estou fora do grupo do Alonso. Sou livre atirador,
agora. Quero ver quem me alcança.
– E com essa boca... disse baixinho a Suzana, ao
que ele replicou: o que você falou?
14
– Nada não, Alencar. Estou pensando como você
vai fazer falta para o Alonso.
– Alonso, eu ouvi bem o que eu ouvi.
– E o que é que tu ouvistes?
– Ué, o Alencar vai embora, ou melhor, foi
embora?
– Pois é o que tu estás dizendo.
– E então não te faz de desentendido. O que foi
que houve?
– Um pouco tua, que abristes todo aquele verbo
aqui, me desmoralizando. Outro pouco porque não deve
ter gostado de eu dizer que sou candidato e por isso rejeitei
a idéia que ele deu de te fazer candidata. Ou tu não
ouvistes isso?
– Ouvi, ouvi tudo, e acho mesmo que tu estás perdido,
porque estás muito cheio, tu e o tal de deputado
Flores, que – se queres meu palpite – ou não se reelege
porque é um trapaceiro ou porque vai te abandonar também,
que ele não é bobo. Quando souber que o Partido se
bandeou pro lado do Fonseca, tu estás fora, meu querido.
E, olha, já estou torcendo pela Mara, afinal, as mulheres
merecem mais respeito, inclusive dentro de suas casas...
– Por essas e outras que eu ouvi hoje é que resolvi
ir à Capital falar com o deputado Flores. Tu também não
é fácil, Olga, depois de todo esse conforto e prestígio que
te dei. Todo mundo te respeita e tu nem leva em consideração
o trabalho que eu tive pra te botar de primeiradama,
quero dizer primeira-dama mesmo, porque todo o
mundo baixa a cabeça pra ti, ou baixava, porque depois
que o Alencar se foi já não sei, com a língua que ele
tem... E aquele caráter! Estou começando a me preocu-
15
par... De fato. E depois não é, tu tens uma boca... Aquele
estória de dizer o que tu dissestes de mim... Vou rápido
pra capital e vou no carro oficial. Quero respeito. RESPEITO,
tu ouvistes?
– Ouvi, sim senhor. E não precisa gritar. Tu precisa
é de eleitores novos, porque os velhos, meu marido,
já eram...
– Olha, deu por hoje. Te telefono quando chegar e
vê se descobre o que anda acontecendo aqui, preciso traçar
uma nova estratégia...
– Só se eu for a candidata...
– Não acredito no que eu ouvi!
– Pois pode ir acreditando. Ou me fazes candidata
e reabilito teu nome e teu prestígio, ou a Mara ganha
outra aliada. Escolhe.
– Chantagem?
– Mas não é o que tu fazes sempre? Aprendi
contigo.
– Meu Deus do Céu, o Alencar tem razão, vocês
tão é dando medo... Depois conversamos, hoje NÃO DÁ.
– No grito é que não dá, já te disse.
– Taaaá... bem.
O prefeito chegou à capital esbaforido, por dentro
estava que era um vulcão, nada o acalmava. O motorista,
percebendo o que estava acontecendo, pois já tinha sido
conversado pelo Alencar, ficou mudo, era só ouvidos.
– Mas deputado Flores, pelo AMOR DE DEUS,
isso é o fim...
16
– Eu bem que te avisei. Política é assim, Alonso.
Mas vamos repensar, pode ser que exista uma
saída pra ti.
– Como pra mim? Não é pra nós?
– Que pra nós. O problema é teu, meu rapaz. As
minhas bases, fora do teu curral estão tranqüilas, o que é
que tu queres que eu faça?
– Nada, nada. Já entendi tudo. Eu já vou.
– Como já vai?
– Nosso acordo termina aqui. Por ter sido fiel a
ti, estou no estou. Pra mim chega. Tenho um ano de
mandato e vou provar pra ti como é importante ser fiel,
seu filho da...
– O que é isso, Alonso?
– É o que tu ouvistes e vê se não me aparece lá
tão cedo. E começa a te benzer, porque no Partido vou
contar toda a verdade, a verdade que andas escondendo
por aí. Teu curral não vai ficar tão tranqüilo assim. Te
prometo.
– Meu Deus do Céu, Alonso. Tem calma, homem.
– Calma é pra gente trambiqueira como tu. E se
estou com a fama que estou é por ter estado até agora no
teu curral. Ouvistes bem? Começa a te benzer, já te avisei,
ou não me chamo Alonso, Alonso Afonso Ceará.
– Terezinha, liga pra o presidente, preciso preveni-
lo da loucura desse homem, senão vai tudo por
água abaixo...
– Sim senhor.
– O presidente está em uma reunião, mandou seu
secretário falar com o senhor.
17
– Não falo com ninguém que não seja o
presidente.
– E o que eu digo? Será que não é mais prudente
falar com ele, deputado.
– Não, não é. Dá uma desculpa qualquer. Preciso
esfriar minha cabeça.
– É o melhor que o senhor pode fazer, na
minha opinião.
– Está certa, você. Amanhã eu trato desse
assunto. Devem chegar outras notícias.
Logo pela manhã um telefonema surpreendeu o
deputado Flores:
– Alo deputado, é o Alencar.
– Mas como vai? Teu telefonema chega em uma
hora muito boa, o que está acontecendo com o Alonso?
– O senhor nem imagina... Isso aqui virou um caldeirão,
ele não lhe contou?
– Não teve tempo. Ficou irritado comigo e foi
embora soltando fumaça.
– Mas ele está assim... Precisamos conversar,
deputado.
– E quando queres vir? Mando hoje uma passagem
pra ti.
– Pode ser na quinta-feira?
– Não podes vir antes? Esse assunto está me
tirando o sono.
(Era tudo o que Alencar queria ouvir).
18
– Se é assim, vou amanhã mesmo. O senhor
manda...
– Que bom Alencar, que bom que posso contar
com tua compreensão. Mas olha, não fala nada pra o
Alonso, está certo?
– Claro, deputado. Fique tranqüilo.
Alencar pulava de faceiro, a sorte estava do seu
lado. E foi com esse ânimo que saiu pra rua, precisava de
mais elementos, precisava da desforra, precisava ser candidato
de qualquer jeito...
– Alencar, vem cá.
– O que é que tens pra contar pro amigo?
– A maior que poderias ouvir, vão pedir a exclusão
do Alonso do Partido.
– Mas, por que?
– O pessoal do Fonseca descobriu irregularidades
na Prefeitura e o jornal vai publicar tudo na edição de
quarta-feira.
– Mas, o que é?
– Lembra da compra daqueles lotes de ter- ra?
Vem chumbo grosso aí. Tu não estás metido
naquilo, Alencar?
– Deus me livre, só me faltava essa, o Alonso me
comprometer com as suas falcatruas.
– Mas o que tu sabes?
– O que eu sei não posso dizer ainda, primeiro
quero ver o que diz o jornal.
19
Alencar gelou. Será que tudo ia agora águas
abaixo? Precisava pensar, é hora de pensar, resolveu
adiar a viagem um pouquinho... Precisava saber mais.
– O que tens Alencar? Estás preocupado?
– Absolutamente, só estou pensando nas safadezas
do Alonso...
– Então fala, homem. Amanhã pode ser tarde.
– Não, não é...
A manchete do jornal dizia: ALONSO COMPROMETE
O PARTIDO
A notícia trazia em detalhes as irregularidades
havidas na transação do lotes de terra e dizia, inclusive,
que tudo tinha sido feito com o conhecimento do deputado
Flores e do chefe de Gabinete.
– Alo, Alencar. É do jornal A Cidade, o senhor
pode nos conceder uma entrevista? Precisamos lhe ouvir
sobre as denúncias feitas pelo Fonseca.
– Olha, hoje eu não posso, dá pra ser na
quinta-feira?
– Mas o senhor desmente as denúncias?
– É difícil chegar a essa afirmativa, claro que
como chefe de Gabinete sei de muita coisa, mas estar
comprometido também não.
– E o deputado?
– É melhor falar com ele.
– Mas, você conhece a verdade, por que adia
a sua versão?
20
– Me dêem um tempo, é só isso.
– Isso faz parte de algum jogo político?
– Absolutamente. Hoje não quero falar mais,
está certo?
– Bem, então vamos nos restringir a publicar
nosso diálogo.
– E por que vão publicar?
– Porque o senhor não quis falar mais, a verdade
não pode esperar.
– Não posso fazer nada...
– Alo deputado, aqui é do jornal A Cidade, o
senhor conhece as denúncias que estão fazendo contra o
seu Partido?
– Não, não tenho conhecimento. Do que se trata?
– Bem, o prefeito enfrenta uma crise interna no
Partido e revidou com alguns ataques a diversos dos seus
membros o que, naturalmente, suscitou reações, que pensamos
terá reflexos, inclusive, em Brasília.
– Mas, do que se trata?
– Há irregularidades comprovadas na construção
dos lotes urbanizados, construídos na zona Sul. O chefe
de Gabinete se nega a falar, e já se fala também no seu
envolvimento no episódio.
– Mas o que tenho eu a ver com isso?
– É o que nós queremos saber, o que o senhor
nos diz?
– Bem, sem conhecer as denúncias em detalhes
nada posso fazer e muito menos dizer. Os senhores
podem fazer a gentileza de mandar por fax as denúncias
21
que estão no jornal? Até porque preciso tomar medidas
jurídicas, se for o caso.
– E políticas, não é deputado?
– Políticas ainda não sei, vocês podem mandar
o fax e depois poderei atender o pedido de entrevista,
está certo?
– Qual é o seu número de fax?
– Podem discar o 247-1122.
– Está bem.
– Terezinha, Terezinha, liga urgente para
o Alencar.
– Pois não, deputado.
– Alo, alo Alencar?
– Sou eu mesmo, deputado, o que houve?
– Como o que houve? Eu é que pergunto, por que
não viestes e que nó é esse que vocês armaram aí e ainda
por cima me colocaram no rolo?
– Um mom...m...ento, deputado, eu não coloquei
ninguém no rolo. O senhor deve lembrar que sou apenas
um funcionário do prefeito. Nada fiz que não fosse sob
as suas ordens.
– Mas, afinal, o que foi feito?
– Ué, então o senhor não sabe? E o acerto feito
com o dono das terras e a diferença entre o valor das terras
e o pagamento real?
– Mas, o que é isso?
22
– Isso é o que o senhor está ouvindo e, segundo
me disse o prefeito na ocasião, o dinheiro era para financiar
a sua campanha.
– Alencar, vem pra cá, preciso conversar contigo
à portas fechadas.
– Mas quando, deputado?
– Agora.
– Mas, Alencar, o que vem a ser isso?
– Deputado, o caso não é brincadeira, o senhor
está comprometido porque o Alonso disse para o seu
Adir, o que vendeu as terras. E tem mais gente que sabe,
o pessoal da tesouraria, por exemplo...
– Mas o que se faz? Você é um homem com tino
político, me ajuda a resolver essa questão.
– Bem, até posso tentar, a gente sempre pode e o
senhor sabe que eu carreguei o Alonso nas costas... Mas
não vou resolver situação de ninguém se não tiver o respaldo
para isso, inclusive político.
– Se é o que eu entendi, tu queres uma compensação,
ou melhor, uma situação mais confortável
no Partido?
– É.
– E qual é?
– Quero ser o candidato majoritário.
– Como?
– Foi o que o senhor ouviu.
– E eu?
– Fale com o presidente, parta para algo
mais alto.
23
– Mas com toda essa confusão, como vou
pedir algo?
– É simples: eu testemunho a seu favor, inclusive
dizendo para o presidente e todo o Partido que absolutamente
o senhor não levou nada daquilo e, muito mais,
não sabia de nada.
– E as provas?
– Eu roubei o recibo que estava na tesouraria,
assinado pelo Alonso e que é um bom documento a
seu favor. Esse original está comigo. Não acredito que
existam cópias!
– Não acredito que fizestes tudo isso pensando
nesse teu projeto!
– E não foi assim que o senhor subiu? O senhor é
um bom professor!
– Alencar, Alencar, te quero pra amigo e não pra
inimigo, vamos partir para a nossa aliança, aperta a
minha mão e vamos traçar os nossos planos.
– Ah, deputado, mas eu preciso de um documento,
vamos escrever o que vai ser acertado?
– Dou mão à palmatória, és mesmo um
bom aluno...
Em primeiro lugar, devemos combinar as declarações
a serem feitas, temos que ler pela mesma cartilha e,
antes de mais nada, falar com o presidente, o senhor, é
claro, vai expor o problema, dizer do seu constrangimento,
dizer do meu apoio e que em retribuição pela
minha fidelidade e também pelo meu talento vai abrir
mão da sua candidatura em favor do meu nome e que –
24
por tudo isso – gostaria de ter o respaldo político dele e
contar com algo mais expressivo na administração federal.
Que tal?
– Acho que está bem pensado, tomara que tudo
dê certo, mas acho que a briga está só começando...
– Bem, em segundo lugar, precisamos arrumar
um escorregão para o Fonseca e o Rogério, sem falar na
Mara. Precisamos arregimentar as mulheres e, por falar
nisso, deixe eu lhe prevenir, a Olga está em atrito com o
Alonso, ela quer ser candidata à prefeita, que rolo, hein?
– Com certeza, com certeza, mas político bom
vive disso, não achas?
– É por isso que estou querendo entrar para
a política...
– Terezinha, vê se consegues marcar uma audiência
com o presidente, o mais urgente possível. E liga
para o secretário da Educação, preciso falar com ele, é
urgente também.
– Alo secretário, como vai?
– Olha Flores, está tudo tão confuso... As professoras
resolveram ser candidatas e aí tu podes imaginar as
pressões que estou recebendo.
– Pois é a respeito disso que quero te falar,
sem querer te incomodar mais do que já estás te
incomodando.
– O que vais fazer? Quem vai no fogo é para se
queimar... Diz, Flores, qual é o teu problema?
– Olha, algo até bem delicado, pois se trata de
uma companheira de Partido, mas que agora é dissidente
25
e ela é tua funcionária, e ainda por cima candidata minoritária
lá na minha região.
– Isso é o que eu chamo de confusão, o que eu
posso fazer por ti?
– Transferir a moça, não há outro meio.
– Já pensastes Flores em todas as implicações pra
ti, pra o governador e pra o presidente dessa tua idéia?
Sim, amigo, porque todo o problema começa pequeno e
vira grande. E se com isso criamos situações difíceis pra
eles? Como é que nós ficamos?
– Bem, isso é verdade, e eu, pessoalmente,
vou precisar muito do respaldo deles, Do respaldo e
de favores.
– Do que estás falando?
– Nada muito sério, depois te conto pessoalmente.
Mas, se tiveres uma idéia do que se possa
fazer para impedir o crescimento dessa candidatura,
te agradeço.
– Com certeza, Flores, vou pensar no caso.
E como ficou o projeto de lei que o governador
mandou, preciso ver aquilo aprovado, a minha Secretaria
tem que andar...
– Estou tocando com todo o cuidado, prometo
toda a minha atenção e empenho.
– Ótimo, a propósito, como é mesmo o nome da
professora?
– Mara, Mara...
– Alencar, como é o sobrenome da Mara?
– Rodrigues. É, Mara Rodrigues.
26
– Está bem, te dou notícias...
– O secretário não é flor, Alencar. Deixou bem
claro que quer ver o projeto aprovado e aí me dá uma
mão, não é filho da p...?
– Ora, deputado, o senhor queria o quê?
Nada demovia o Fonseca e o Rogério de que
havia alguma coisa muito grande por trás das compras
dos lotes e por isso encarregaram o Juarez de conversar
com os moradores da Vila e foram eles, pessoalmente,
falar com o Adir, o que tinha vendido as terras.
– Boa tarde. Ô de casa, queremos falar com
o Adir.
– Ele não está, senhores, mas o que desejam? Perguntou
a mulher dele.
– Bem, não era exatamente com a senhora, mas
talvez possa nos ajudar, disse o Rogério.
– E o que é?
– É sobre a venda das terras, a senhora sabe o
preço que o seu marido vendeu aquele lote para a
Prefeitura?
– O valor eu lembro bem, o escrivão até comentou
que achou bem barata e eu até reclamei do Adir,
foi 400 mil.
– Nós lhe agradecemos a informação e diga ao
Adir que outro dia viremos tomar um chimarrão com ele
e muito obrigado pela gentileza. A senhora foi realmente
muito atenciosa.
– Não é nada, eu é que fiquei encantada em receber
a visita dos senhores. Afinal, não é todo dia que a
gente recebe em casa gente tão importante...
27
– Não é bem assim... E, mais uma vez,
muito obrigado, disse o Fonseca, tentando levantar
mais um voto.
– Meu Deus, homem, não te disse? Isso é um
escândalo!
– Estamos com a bomba na mão! Agora é só
saber aonde atirar!
– Que Deus te ilumine, Rogério, és de fato um
estrategista.
– Não canta vitória antes do tempo porque eles
também estão se mexendo. Não sei, é preciso cuidado,
porque cada vez mais, de agora em diante, eles vão tentar
esconder o que houve. Bico calado, e não fica fazendo
esse sorriso porque o Alencar descobre, aquilo
é uma víbora.
– Tens razão.
– Vamos procurar o Alencar?
– Pois vamos, é uma boa idéia.
– Senhora, o Alencar está?
– Não, o Alencar foi chamado na capital, o deputado
mandou chamá-lo urgente.
– E a senhora sabe por que?
– Ah, parece que é a questão do loteamento, com
todas essas denúncias, sabe como é. Os senhores não
querem um café?
– Não senhora, queríamos apenas conversar com
o Alencar sobre algumas questões do Partido.
– Está bem, quando ele chegar, eu digo.
28
– Não é preciso porque a reunião é hoje à noite,
não vai dar tempo...
– Eu não te disse que estamos com sorte?
– Sorte é apelido, matamos dois coelhos de uma
cajadada, vamos tentar um terceiro tiro?
– Vamos tomar um café com a Suzana?
– Boa idéia.
– Meu Deus, o que será que traz vocês aqui? Por
essa eu não esperava!
– Ah Suzana, não te faz de boba! Com toda essa
confusão tu queres o quê?
– Calma Rogério. Por que vocês não entram?
Fica mais discreto, não acham?
– Se estás nos convidando, com todo o prazer.
– O homem está perdido, ninguém mais quer
saber das suas estórias, o deputado nem atende mais suas
chamadas, sabe como é, fim de mandato e com um escândalo,
terminou a moleza, e eu já vou conversar com a
Mara, quero meu lugar ao sol.
– Então nos ajuda que o teu lugar está garantido!
– Pois contem comigo! A propósito, vocês sabem
que o recibo do pagamento das terras desapareceu
da tesouraria?
– Mas isso é outro escândalo e comprova a primeira
denúncia.
– Mas eu aconselho vocês a ficarem quietos porque
isso é coisa do Alencar. Esperem que ele venha, sabe
como é, raposa de noite busca as galinhas...
29
– O que tu queres dizer com isso?
– Que ele está na capital com o deputado. Esperem
pra ver o que ele vai fazer, está claro que ele vem
com um plano.
– Suzana, claro que seu lugar está garantido, e o
primeiro é de conselheira.
– Agora vão embora, a vizinha aqui é comadre do
Alencar e a mulher é um perigo...
– Me telefona, disse o Rogério.
– Pode estar certo.
Alonso Afonso Ceará não dormiu a noite toda.
Também pudera... Procurou o recibo da compra das terras
e não encontrou. O que ele podia fazer – se perguntava -,
quando Olga, percebendo que ele estava acordado lhe
disse: Mas homem, o que é que tu tanto te vira nessa
cama e não deixa ninguém dormir?
– Faz muito tempo que não participas das minhas
insônias, esta, especialmente, eu tenho que
“curar’ sozinho?
– E por que esta?
– Tu anda querendo saber demais...
– E tu anda quieto demais, não estou gostando
disso, qualquer dia te dá um enfarte e aí quem fica viúva
sou eu, não é?
– Tu deves estar muito preocupada com a minha
morte... Só se é pra ocupar o meu lugar...
– Mas Alonso, tu estás louco, depois de tanta luta
juntos eu vou desejar uma coisa dessas pra ti?
30
– Do jeito que tu andas falando eu até cheguei
a pensar...
– Deixa de ser bobo, homem. Pode contar com a
velha Olga, que eu não sou de me entregar. Me diz o que
está te preocupando, que eu logo dou um jeito.
– Ah, Olga, isso me chega em muito boa hora.
Bem, nem podia ser diferente, a gente sempre se deu tão
bem, sempre foi tão amigo...
– Pois é, me admiro de tu teres pensado diferente!
– Então vamos conversar: o bandido do deputado
Flores não me deu o menor respaldo, o Alencar está
jogando contra mim, o Partido fez um levante e eu estou
sem “chapéu”... Pode?
– Pode. Eles são bandidos, tu sabes. Mas agora
me conta do que é que tu tens medo? Há alguma
coisa errada?
– Errado, errado, não há. Coisas da política, Olga.
É que eu comprei aquelas terras do Adir e saiu um
dinheiro por fora, que era para a campanha do Flores. Em
troca ele daria respaldo à minha candidatura. O Alencar
sabe disso, o bandido. Agora sumiu o recibo, que comprova
que há uma diferença, claro.
– Mas então vocês fizeram dois recibos?
– Fizemos.
– Pra quê? Me diz.
– Sei lá, o Flores pediu, eu fiquei com uma cópia,
tudo burrice.
– E tu já falou com o Adir?
– Olha, eu tentei, mas não encontrei ele. Também
não adianta, e pior: o Fonseca e o Rogério falaram com a
31
mulher dele e perguntaram por quanto o Adir tinha vendido
as terras e não é que a mulher falou?
– E como tu soubestes?
– A vizinha, que é comadre deles, me contou.
– E o Alencar, Alonso, aquele filho da p... que tu
deu uma mão e botou ele na vitrine, onde anda?
– Tá lá na capital, com o Flores, armando
contra mim.
– Mas por que tu não falastes antes homem? Tu
não pode agüentar tudo isso sozinho. Vou levantar e fazer
um chá pra nós, tem que haver uma saída...
– Mas que armação!
– O que houve?
– Uma mãe denunciou a professora Mara na
Delegacia de Ensino.
– Alegando o quê?
– Diz a mãe que a Mara tentou agredir a criança
porque provocou ela por causa da política.
– Mas isso não pode ser verdade, quem é essa criança,
de quem é filho?
– O pai dela é parente longe do deputado Flores,
que até arrumou um emprego pra ele na Secretaria
da Agricultura.
– Então tu tens razão, é armação!
– Liga pra o jornal.
– Alo, é do jornal? O jornalista Eustáquio está?
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– Quem vai falar?
– O Rogério Armandi.
– Olá Rogério, que novidade trazes pra nós?
– Acho que dá uma boa matéria. Te confesso que
estou interessado nela... É a respeito de uma denúncia
que fizeram contra a professora Mara e acho que é uma
bela armação.
– Mas de que se trata?
– Denunciaram ela na Delegacia de Ensino,
dizendo que ela agrediu um aluno, o que eu – sinceramente
– não acredito. É só ver a história da Mara como
professora, como cidadã, enfim... E pior: o dito aluno é
filho de um apadrinhado do deputado Flores, que está
envolvido até o pescoço nessa história da compra dos
lotes. E mais: o Alencar foi chamado urgente lá na capital,
não voltou ainda.
– E como vocês souberam disso?
– Às vezes a gente precisa ser repórter e, como
vocês, não revelamos a fonte.
– Está certo, esperto Rogério. Vou acreditar
no que me dizes e vou checar essa estória, ou história,
como queres.
– Então pergunta pra dona Sara, a comadre do
Adir, o que ela ouviu. Começa por aí, está bem?
– E que mais?
– Vai devagar, preciso deixar que descubras coisas
que eu não sei, quero ler o teu jornal.
– Mas tu não dá mesmo... Vou lá.
– Como a senhora não sabe?
33
– O que foi Sara?
– Nada, não. É o pessoal do jornal querendo uma
informação.
– Que informação?
– Não te interessa...
– Ah é? Vou então eu conversar com eles e dizer
toda a confusão que armastes.
– Eu não armei nada.
– Oi moço, vem cá.
– Quem é o senhor?
– O marido da Sara. Se ela não quer falar, falo
eu, tá bem?
– E o que o senhor sabe?
– Tudo...
– Estou aqui pra isso.
– O Alonso fez uma tremenda sujeira na compra
daquelas terras e a gente sabe porque é vizinho do Adir e
ele nos contou num dia em que a gente estava tomando
umas cervejinhas. Mas olha: não bota o meu nome na
história que eu perco o companheiro e porque, na verdade,
ele não tem nada com isso. Pagaram um valor e
combinaram de declarar outro, o dinheiro – a diferença
eu quero dizer – era pra campanha do deputado Flores.
Só que o Partido se rebelou contra eles e o Rogério e o
Fonseca, mais a professora Mara e o Juarez, resolveram
partir pra outra. O Alencar, que tem cópia
desse recibo – que o Adir não sabe até hoje porque pediu
– está fazendo chantagem porque quer ser candidato também.
E agora me contaram que denunciaram a pobre da
34
professora, pois não é que o guri é filho de um apadrinhado
do deputado?
– Meu Deus, como é que o senhor sabe tudo isso?
– De ouvir, meu filho. Lá na barbearia a gente
sabe de tudo. Só que não dá palpite. Só ouve, e
como ouve...
– Obrigado seu... Como é o seu nome?
– Fonsequinha, mas nada a ver com o candidato,
embora tenha sido candidato contra o Alonso.
É, e eu perdi...
– O senhor é uma boa fonte. Obrigado, não vou
esquecer seu nome.
– ESTAQUIOOOO
– O que é homem?
– O maior furo no meio da maior confusão. Senta
aí, vou te contar...
– Olha, começa logo a escrever tudo isso e amanhã
vamos atrás do deputado porque o secretário da Educação
está nessa, quer apostar?
– Sem dúvida.
– Mas olha, precisamos de um documento para
colocar tudo isso. Não podemos “tocar de ouvido”. Vai
no registro de imóveis, tira uma certidão, vamos publicar
uma cópia e chamar os vereadores pra briga. Afinal, o
que eles andam fazendo?
– Está certo.
– Deputado Flores?
35
– Sim.
– Meu caro deputado, não sei se sou inoportuno,
mas estou preocupado.
– O que houve Altamiro?
– O pessoal do jornal esteve aqui e pediu uma
certidão da escritura daquelas terras que o Alonso comprou
do Adir, isso está me cheirando mal.
– E você deu a certidão?
– Claro deputado, não posso negar, de outra
forma quem fica mal sou eu.
– Bem... Fizestes bem em me avisar. Obrigado.
– De nada, deputado, e olhe, conte com o
meu voto.
– Já é um consolo Altamiro, no meio de toda
essa confusão.
– Que confusão
– A certidão que o senhor deu vai lhe esclarecer
isso.
– Não me diga... Agora fiquei mais preocupado
ainda...
– Absolutamente, acho que a sua pergunta é
uma insolência.
– Mas deputado, como diz o ditado: perguntar
não ofende.
– Mas me ofendeu...
– Pois então desculpe, mas leia o jornal de
hoje, leia.
36
ARMAÇÃO ELEITOREIRA COLOCA FLORES
E ALONSO NO BANCO DOS RÉUS, dizia a manchete
do jornal, que publicou duas páginas completas
com toda a história, fotos do menino, cópia da escritura,
declaração de vereadores e opinião de diversos segmentos
da população, todos condenando o episódio, que deixaram
Flores e Alonso muito mal...
– Mas não presidente, lhe asseguro que não há
engano, o senhor sabe como são essas questões eleitorais.
– Pois lhe digo que tenha cuidado, porque se eu
souber que houve comprometimento do Partido fique o
senhor sabendo que eu gestionarei sua saída da nossa
agremiação. Não é possível que eu esteja aqui tentando
modificar esse quadro de descalabro que encontrei e
companheiros meus comprometam, com suas atitudes
interesseiras, todo o meu trabalho e de inúmeros companheiros
no Brasil todo. Por outro lado, se isso não for verdade,
conte comigo. Saberei lhe fazer justiça.
– Está certo, presidente. Obrigado.
– Olhe, deputado, pela reação do nosso companheiro
Flores esteja certo que ele está envolvido
nessa história e que a versão desse jornal tem muito
de verdadeira.
– Se for essa a sua opinião, talvez seja melhor eu
ir até lá e conversar, em seu nome, com a ala dissidente,
inclusive colocando sua posição e dizer que o Flores já
ouviu a sua sentença. Nesta época, presidente, qualquer
descuido pode ser fatal e é como o senhor disse: não pode
uma atitude dessas colocar todo o seu trabalho e de companheiros
de todo o Brasil a perder. Temos que agir. E
37
agir com firmeza. E me diga uma coisa: o voto distrital,
afinal, vai passar ou não vai passar?
– Olhe deputado, eu até que gostaria, tenho feito
força pra isso, embora tenham me acusado de favorecer
as forças políticas que me apoiam, porque o senhor sabe,
com o voto distrital uma campanha eleitoral sai bem mais
barata. Há concentração, os candidatos não precisam correr
de um lado para outro, etcétera. Por outro lado, sou
obrigado a reconhecer que grandes talentos perdem a sua
chance porque ficam dependendo de meia dúzia de conterrâneos
que, muitas vezes – ou a maioria das vezes –
não dá valor pra eles. Santo de casa não faz milagre e o
senhor sabe o quanto o Brasil precisa, tanto de talento
como de milagres... Acho que não passa. E até por isso
peça para o Fonseca e o Rogério se acalmarem, ainda não
é desta vez que vamos endireitar tudo, mas se o que
denunciaram é verdadeiros, já fizeram muito. Convide
eles para virem conversar comigo, se a versão do jornal
for verdadeira. Preciso de gente assim aqui do meu lado.
Ah, e identifique, por favor quem é esse advogado de lá,
muito inteligente, me parece que o nome dele é Carlos.
– Está certo, presidente. Irei até lá. Quando chegar,
lhe faço o relatório das providências... E se houver
necessidade mais urgente entro em contato por telefone.
– Está certo Vitório. E bom trabalho.
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39
II CAPÍTULO
O Vitório desembarcou com o pé direito: o jornal,
que tinha feito uma pesquisa, já dava resposta às questões
que precisava responder ao presidente. De fato a cidade
estava transformada num caldeirão, mas era preciso colocar
ordem naquilo... De chegada, no hotel, um recado lhe
esperava, era do deputado Flores que, pelo jeito, mostrava-
se extremamente preocupado, especialmente com a
missão de Vitório. Também dois jornalistas pediam entrevista
e a mulher do prefeito dizia, em outro recado, que
precisava falar com ele urgente.
– Meu Deus – pensou – o que fazer primeira? Vou
dar atenção às mulheres, é uma questão de cortesia:
– Dona Olga, é o Vitório. Acabei de chegar, como
soube da minha vinda?
– Ah, senador, cidade pequena é assim e uma pessoa
tão importante como o senhor não chega assim no
escuro. Todo o mundo sabe, acho que o Alencar foi quem
deu a notícia, o senhor sabe, aquele sempre sabe de tudo!
Mas preciso falar urgente com o senhor, estou extremamente
preocupada com o Alonso, a saúde dele não está
boa, isso tudo rebentou com o homem e o que estou querendo
é que ele lhe conte a verdade antes que outros lhe
digam coisas erradas. O senhor pode vir aqui agora?
– Dona Olga, antes eu devo fazer algumas ligações,
são outras pessoas pedindo para serem ouvidas, a
senhora sabe como é.
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– Mas é por isso, senador. O senhor me desculpe
por insistir, mas o senhor não deve falar com ninguém
antes de ouvir o Alonso, é importante o que ele vai lhe
contar, pode estar certo!
– Dona Olga, todos acham importante o que têm
pra dizer numa hora dessas. Veja, o deputado Flores também
quer falar comigo urgente e há o jornal aqui me
esperando, também querendo saber o que houve. Preciso
me organizar primeiro. Vamos com calma.
– Senador, não há como ter calma, senador. O que
o Alonso vai lhe dizer eu digo agora: o dinheiro foi pra
campanha do Flores e o Alonso pode contar tudo. Além
disso, olhe, ele não está bem...
– O que a senhora me diz, dona Olga, é
muito grave. A senhora me desculpe, mas vou repetir:
é muito grave...
– Grave ou não grave é o que é, ou o senhor veio
aqui para esconder as patifarias do Flores? Se nem eu
escondo os erros do meu marido? Que política é essa, que
missão é essa que o senhor veio fazer aqui?
– Está certo, dona Olga. A senhora venceu pela
veemência com que se expressou. Vou agora pra aí.
– Não, não posso conversar com os senhores
agora, prometo uma entrevista para depois, quando estiver
tudo mais esclarecido.
– O senhor viu a nossa pesquisa?
– Com certeza.
– E o que achou?
41
– Que devo ter muito cuidado!
– Não se preocupe, senador – isto é, conosco não
precisa ter cuidado.
– Senhores, nunca tive cuidado com a imprensa,
sei da seriedade com que trabalham e conheço a importância
da informação. Mas sei, também, que precisamos
agir com firmeza na busca da verdade. Portanto, não
posso ser leviano falando agora. Mas logo que tiver
condições avisarei os senhores, não vou esquecer.
Eu prometo.
– Está certo, senador. E agradecemos a sua compreensão...
Mas, por favor, somente uma informação, o
senhor veio em missão do presidente da República?
– Vim, senhores. O presidente está muito preocupado,
mas peço para o sucesso do nosso trabalho e do
nosso pacto, que essa informação seja guardada pelos
senhores para divulgação na hora oportuna. Posso contar
com os senhores ou devo estabelecer limites na nossa
convivência?
– Absolutamente, senador. Conte conosco assim
como esperamos contar com o senhor.
– Entre senador, é um prazer enorme revê-lo aqui.
– E como estão as coisas, Alonso?
– Preocupam, senador. Mas vamos conversar.
– Aonde podemos conversar, reservadamente?
– No meu escritório.
42
– Então vamos, vamos colocar os pontos nos is?
– Com certeza. Olga, Olga, manda servir dois uísques
pra nós, com alguns salgadinhos. O senador deve
estar cansado.
– Um pouco, Alonso, mas sobretudo preocupado.
– Então também estou.
– Olha, Alonso, isso é muito sério, não sei
como o Tribunal de Contas vai encarar isso. Pode dar
cadeia, sabia?
– Agora sei. Quando acordei em fazer não sabia,
lhe confesso. Mas, o que fazer?
– Primeiro, preciso de uma declaração sua, por
escrito e, depois vou conversar com o presidente. Não
sei o que ele vai dizer, mas posso assegurar que não vai
gostar nada.
– Mas será que não vou contar com a compreensão
e o apoio dos companheiros?
– Se for assim, acho difícil. O presidente foi
muito claro pra mim, acha que está se esforçando para
corrigir as coisas e não pode comprometer seu governo
com coisas dessa natureza. Mas vamos ver o que eu
posso fazer. Faça a declaração, por favor.
– Está bem... Vou escrever de próprio punho, que
é para ficar entre nós esse assunto, até que as coisas
fiquem melhor esclarecidas.
– Alonso, Alonso, tu estás bem?
– Ahnnn...
43
– Por favor, Alonso, o que está acontecendo?
Dona Olga, dona Olga, venha cá, rápido.
– Meu Deus, senador. Vou chamar a doutora
Orfila, urgente.
– Alonso, deita aqui e te acalma, por favor.
– A doutora Orfila já vem. Alonso, fala comigo.
– Ele está inconsciente, dona Olga. Traga gelo,
por favor e vou tentar um boca a boa enquanto não vier
ajuda. Peça uma ambulância, rápido, e não se preocupe
em esconder isso porque a vida dele é mais importante.
– Está certo, senador.
– Ah, doutora, por favor, aqui. Estou preocupada.
O senador está lá com ele, também está preocupado.
– O senador está aí?
– Está.
– Ai meu Deus, vamos lá, rápido. E a ambulância,
pediu?
– Já.
– Sim, senador.
– E então, doutora?
– Não há mais nada a fazer, infelizmente.
– O que a senhora está me dizendo?
– Que ele está morto, senador. A emoção deve ter
sido muito forte.
– Pelo amor de Deus, é só um mártir que faltava...
– O que disse?
44
– Nada. Cuide de dona Olga que eu vou tomar
outras providências.
– Presidente, aconteceu o pior.
– Como, Vitório? Por favor, diga alguma coisa...
– Alonso morreu.
– Morreu?
– É o que lhe digo, foi agora, estou meio perdido.
Foi depois de ter confessado toda a confusão, não está
fácil isso aqui. O senhor pode mandar urgente alguém
para me auxiliar, principalmente um assessor de imprensa,
que é para eu me despreocupar com a imprensa e
a comunicação com as pessoas?
– Fica tranqüilo, Vitório. Agora mesmo vou falar
com o governador, terás toda a assistência. Me dá notícias,
fiquei preocupado...
– Eu também estou, mas fique tranqüilo, saímos
dessa. Estou preocupado, isso sim, é com esse mártir. O
senhor sabe que em política nada melhor que um mártir.
– É, a história diz isso. Vamos ver como podemos
fazer isso. Dá notícias, amigo Vitório. Olhe, não queria
estar na sua pele!
– Nem eu!
– Dona Olga, fique calma. A honra do seu marido
será resgatada. Eu falei com o presidente, a senhora terá o
nosso respaldo.
45
– Olhe, senador, estou muito confusa, mas acredito
que o amor de Deus há de estar comigo. Que
bom que o senhor está aqui. Isso é uma graça. Me ajude,
por favor!
– Conte comigo, não vou embora sem ver tudo
resolvido, e bem resolvido.
– A imprensa quer falar com o senhor.
– Ah, Deus amado. Agora não!
– Mas o senhor sabe como eles são. Assim como
eu tenho força, o senhor também vai ter força para resolver
tudo. Me ajude, por favor. A honra do Alonso pra
mim é tudo!
– A senhora é mais forte do que eu imaginava,
tenho até vergonha do meu medo e das minhas fraquezas.
Tratarei disso, fique calma.
– Doutora Orfila, que momento nós dois estamos
vivendo e que circunstâncias!
– A vida é assim mesmo, senador Vitório: temos
tudo na mão, a segurança, a vida, a certeza, e – de repente
– Deus nos tira. Tirou de mim a capacidade de salvar e
tirou do senhor a capacidade de vencer um impasse político,
que eu sei, muito difícil. As circunstâncias, senador!
O senhor já ouviu falar das circunstâncias, senador? Ou a
vida lhe foi tão generosa que esqueceu de perguntar por
que as coisas lhe acontecem?
46
– Estou, neste momento, me perguntando sobre
isso. É interessante que a senhora fale nisso! Vamos
conversar?
– Quando?
– Bem, daqui um pouco as coisas estarão encaminhadas.
Vamos jantar? Espero que seja um jantar tranqüilo,
que nos reserve momentos de muita sabedoria.
– É uma boa idéia. Não tenho, hoje, mais forças.
Preciso me perguntar um monte de coisas. Acho que o
senhor será uma boa companhia.
– Farei o possível, Orfila... Admirei a sua competência
e seu esforço. Não vou esquecer o seu comportamento
e acho que pode contar com este amigo. Então
é melhor a gente reforçar esse vínculo, conversando
sobre a vida.
– Estou começando a entender porque o senhor
é senador!
– Não diga bobagens. Nem eu sei!
– Não me diga!
– Digo sim. Mas isso é conversa que demanda
muito tempo e agora não temos muito. Precisamos assistir
aquela gente. A senhora curando corpos e almas e eu
tratando da política, que é a arte – segundo Platão, se não
me engano – da convivência. Que Deus nos ajude!
– Bem, como médica, recomendo a nós dois, um
bom jantar e uma dose razoável de vinho... Depois vamos
tratar dos acontecimentos e deixar pra amanhã ou depois
o que a vida nos reservou desse episódio.
47
– Aprovado. Vamos lá.
– Antes, senador, fale com o Fonseca e o Rogério
pra que eles tomem conta disso aqui. Vai ser um pandemônio,
o senhor pode acreditar!
A nossa conversa estava tão boa que até esqueci
desses detalhes. Sabes, me transportei, mas é preciso ter a
realidade. É vero, Orfila. Vou falar com eles. E vê aonde
vamos jantar, reserva um lugar tranqüilo, estou cansado
de agitação. Ou aqui não tem um lugar assim?
– O senhor não vai acreditar, mas aqui só é
tranqüilo no motel, ali todo o mundo se esconde e ninguém
perturba!
– Te animas a ir ali comigo?
– (Rindo) Se é para ter tranqüilidade faço qualquer
coisa!
– Não podias ter idéia melhor...
– Senador, se descobrirem nós dois aqui, nesta
noite, vai ser uma tragédia ainda maior!
– E por que pensar em tragédia maior do que
já houve?
– O senhor tem razão.
– Não sou senhor de nada, embora senador
provoque esse trocadilho. Esquece, eu nasci em 44
e a senhora?
48
– Esquece a senhora! Eu nasci em 47. Vamos
falar sobre a nossas vidas e esquecer um pouco as tragédias
alheias?
– Com certeza! Mas, antes, vamos programar
nossos compromissos: a que horas precisamos retomar o
controle da situação?
– Bem, agora são 11 horas, antes das quatro,
cinco da manhã não vão dar falta dos nossos serviços.
– Então, que Deus nos dê uma noite de encontros.
– Amém, senador. Não, Vitório. Teu nome é
divino, que bom te conhecer?
– E teu nome? Or? Não sei o que é... Fila? Ah,
meu Deus, será que tem tanta gente assim te querendo?
– Até pode, mas eu busco a vitória. Não sei se o
Vitório, disse rindo e quebrando o protocolo de vez.
Vamos ao vinho? Ele consagra o espírito e dá luz à vida.
– É a médica que diz?
– Não, é a mulher. Nós temos útero, conhecemos
o mundo, e muitas vezes – ou quase sempre – sem saber
que é assim.
– Você me surpreende cada vez mais!
– Não fique tão impressionado, não vale a pena.
Somente pergunte à tua alma o que ela quer, os fetiches
da vida às vezes nos fazem sangrar, resista a eles Vitório,
o teu não consagra isso?
– Aonde aprendeu essa anatomia da alma?
– Na vida, Vitório.
49
– Fale sobre ela, estou interessado!
– Se me prometeres que saberei tanto da tua como
te contarei da minha.
– Esteja certa...
– Vitório, Vitório, já são sete horas, por fa- vor
acorda!
– Ai, meu Deus, que susto! O que há, onde estou?
– Está num motel comigo, a doutora Orfila, o
Alonso está morto, são sete horas e o ilustre senador tem
uma encrenca dos diabos pela frente. Dá pra entender? E,
se for sensato – como imagino – não vai arrumar mais
encrenca agora. Vamos dar o fora daqui, um de cada vez,
lá adiante da vida nos falamos. Está bem?
– Como está bem? Não é bem assim!
– Pronto: todos os homens são iguais, quando se
sentem ““comidos”então viram bicho e acham que algo
está errado. Deixe de ser criança! O senhor tem uma
enorme responsabilidade, já se divertiu bastante, não foi?
Pois então raciocine e trate de assumir os acontecimentos!
Tchau.
– Orfila, pelo menos o teu telefone!
– Ora, senador, tem um defunto nos esperando e
uma burra confusão política na cidade. Será que o senhor
pode ser mais ágil?
– Não acredito no que estás dizendo, o senador e
a Orfila? Ah, Alencar, como tu és maldoso, homem!
50
– Maldade é não enxergar o que Deus quer mostrar!
E que presente! O deputado Flores vai adorar: um
mártir e um concubinato. Existe história melhor para uma
vingança? E ela vem...
– Que Deus me livre da tua boca!
– Até parece, Suzana, que a tua língua não corta
dos dois lados! Pra cima de mim?
– Olha, vou te dizer uma coisa: não te mete
comigo porque o meu Santo é muito forte e não é de ti
que ele vai ter medo!
– Santo não se mete nas patifarias das pessoas.
Ou tu esqueces de contabilizar o errado que fizestes na
Prefeitura? Pois eu não, me lembro de tudo.
– Lembrar por lembrar eu também lembro. E não
só lembro como tenho prova, Alencar.
– De que tu estás falando, Suzana?
– Daquela conversa que tivestes com o Flores,
nas costas do Alonso, e que eu gravei...
– Tu gravastes?
– Pois gravei... Mas o Santo não se mete na patifaria
das pessoas...
– Oh, Suzana, meu amor, eu tava brincando contigo.
A gente podia ir pro motel, feito o senador e a doutora
Orfila, que tal?
51
– Vai te catá, vagabundo. Tu pensas que comprar
uma mulher é como comprar tantos políticos como fizestes
por aí?
– ...Eu não tô dizendo que essas mulheres
dão medo...
– Choro e choro sem remorso pela vida de
Alonso! Não digam os seus inimigos e meus também que
o túmulo salva qualquer pecado. Não estou dizendo isso.
Da vida que ele levou Deus sabe, da vida e da amizade e
compreensão e desafios que nos presenteou nós sabemos.
Não será – nunca – um morte que vai me dizer – ou fazer
revisar – os conceitos que tenho das pessoas e falar bem
alto aqui quais são seus méritos. Não tenho vergonha de
dizer que dizer que discordei de Alonso, como não tenho
vergonha de dizer que foi um homem bom e que, por ser
assim, nos fez políticos e participantes. Que sua alma
suba ao Céu e que dele tenha toda a luz que merece!
– Meu Deus, a professora Mara lembrou tudo o
que aprendeu na escola, fala com sabedoria, comentou
alguém no meio do povo...
– Estou aqui falando em nome do presidente, para
dizer aos senhores e – mais que isso – testemunhar nosso
apreço pelo trabalho do prefeito Alonso. Deixou grandeza,
porque quando se viu no meio das torpezas da política
foi honesto consigo, com sua família, com seu
Partido; deixou um trabalho de reconstrução, como a professora
Mara falou. Não podemos nesta hora sagrada sermos
vendettos do seu espírito, só podemos e, sobretudo,
só podemos pedir à Deus redenção e luz para o seu espí-
52
rito e, em nome dele, que a política nesse lugar seja de
agora em diante algo melhor e maior.
– Meu nome é Olga e sou mulher de Alonso e me
apresento para os que aqui estão e porventura não me
conheçam. Dignifica seu espírito as palavras da professora
Mara e do ilustre senador Vitório. Aos inimigos de
Alonso – que eu sei bem quem são – mando esse recado:
vocês tem pela frente a minha dor, a minha tragédia, mas
também terão que experimentar a minha força! De agora
em diante sou por direito e vontade a herdeira política de
Alonso e vou mostrar para os cretinos que o traíram que
terão que me enfrentar. A vida dele não tem volta, mas a
justiça tem! E chorando, mas com muita força e decisão,
disse: senador, diga ao presidente que esta terra tem
dono, somos os filhos daqui, seus donos e ninguém
irá nos demover dessa luta. Se ele estiver conosco,
tudo bem. Se estiver com os traidores sofrerá a dor
dos que traíram.
– Dona Olga... que coisa comovente, a sua força.
Que destino...
– Dona Olga, a senhora tem o nosso apoio...
– Dona Olga, que justiça, as mulheres daqui saberão
responder à sua força...
– Dona Olga, que maravilha, somos irmãs...
– Dona Olga, a senhora domou muita gente hoje e
ensinou os que não acreditavam nisso. Vá em frente.
Estamos com a senhora...
– Dona Olga...
53
– Ah, Mara, que as palavras as tuas, não
vou esquecer...
– Eu é que não vou esquecer a sua força, a sua
coragem nesta hora. Deu uma força pra gente e uma
lição, meu Deus!
– Aqui, dona Olga, posso lhe ajudar?
– O senhor já ajudou muito, senador. Só não sei
se atrapalhou. Amanhã é que vou saber, de qualquer
maneira, obrigada por estar aqui. Agora vá e diga para o
presidente o recado que mandei e chega de voltas, perdi
meu marido e com ele um pouco da minha vida. O que
tenho que fazer é recuperar algumas dessas coisas, e não
venha o senhor me dizer que política é assim... era assim!
Avise para o presidente.
Um pouco constrangido diante da sinceridade de
dona Olga, respondeu: com certeza. A senhora precisa de
alguma coisa?
– Só de calma e muita saúde, porque lá do céu o
Alonso vai dizer o que eu tenho que fazer. Me esperem...
– Credo cruz, as mulheres viraram o mundo do
avesso, tu não vistes?
– Se vi! E também estou fazendo credo cruz. Que
a Virgem Maria tenha lástima de nós.
– Mas tu rezas pra ela, homem?
– Olha, até nem sei.
54
– Pois então não adianta. Quem não acreditou
até agora, agora não tem mais tempo. A coisa virou,
tu não vistes?
– Meu Deus, vou até a igreja colocar uma vela
pra Santa, pode ser que ainda haja tempo...
– Pra tua alma, Alencar, nem com vela...
– Senhoras e senhores: um tempo novo, resultado
da luta e da desdita foi aqui traçado. Estamos a caminho
de outras verdades e de outros tempos e nosso Partido
precisa receber com carinho esses novos ventos. Vamos
sentar e conversar?
– A mesa tem que ser redonda, gritou dona Olga.
– Dona Olga, a senhora nos ensinou que a mesa
tem que ser redonda... Faça os convites e vamos traçar o
nosso rumo...
– Olhe, doutor, sou bastante vivida pra saber que
essa coisa de vaidade não leva à nada. Então não me
venha com essas estórias. Quero participar, já disse que
isso sim, e isso eu disse no túmulo do meu marido. Portanto,
não me perguntem mais sobre a minha decisão,
mas também não me peçam para comandar as coisas porque
o senhor sabe que eu não tenho condições para isso.
– Está bem dona Olga, eu entendo. Perdoe o meu
entusiasmo!
– O senhor está perdoado, mas vamos tratar do
que aqui hoje?
– Precisamos retomar o comando, a vida política
deste País está virando um caos e acho que demos um
55
belo exemplo de daqui pode nascer algo bastante forte e,
sobretudo, verdadeiro. Vamos ver o que podemos fazer?
– Vamos – respondeu dona Olga -, que propôs:
que tal a Mara como articuladora desse processo?
– Dona Olga, a senhora tem o nosso respeito,
podemos considerar a sua sugestão e colocar em votação.
– Olhem, só quero uma coisa de vocês: livrem
esta terra do Alencar e do Flores e depois vamos conversar...
Aí sim, temos muito o que fazer, que tal?
– É por aí que vamos começar...
– Eu tenho prova contra os dois, o meu trabalho
será esse. Vocês deixam?
– Mas é claro, dona Olga.
– Então amanhã quero mostrar os documentos
que eu tenho para o doutor Carlos, que – aliás – sempre
respeitei como homem idôneo e de uma inteligência privilegiada.
Se o Alonso tivesse me ouvido...
– Obrigado dona Olga. A que horas poderei ir
na sua casa?
– Levanto cedo, doutor. A hora que o senhor chegar
estarei à sua espera.
– Então, até amanhã... A reunião está encerrada,
até porque é amanhã que começa, verdadeiramente, o
nosso novo dia, disse Rogério. Boa noite.
– Não acredito no que estou vendo! Meu Deus do
céu, o que é isso?
56
– Isso é o que o senhor está vendo, fizeram essa
enorme fraude – a idéia e o ensinamento foi do Flores –
com a ajuda do Alencar, é claro.
– Mas e o seu marido...
– Eu não estou querendo dizer que ele não entrou
nessa. Claro que entrou e por isso acabou como acabou.
Mas ele foi julgado (e como foi), por que os outros não
vão ser? Quer dizer, vão continuar fazendo as safadezas e
cada vez mais?
– Não é isso, dona Olga. Não esquente seus nervos!
Sabe que somos amigos e estou aqui para ajudar.
Estou preocupado é com o que a senhora me mostrou. É
que isso muda toda a história: na verdade, seu marido não
foi eleito! A Justiça pode pedir – entre outras coisas – que
a senhora devolva o dinheiro que o seu marido recebeu
sem ser prefeito. Vale a pena a gente contar para os
outros o que está aqui?
– Ah, mas não me diga uma coisa dessas, pelo
amor de Deus!
– Pois é o que estou lhe dizendo, a senhora
resolve e eu vou fazer o que a senhora quiser.
– Ah, doutor, agora me atrapalhei... Essa estória
de dinheiro sempre confunde a gente e outra: por que eu
tenho que pagar o pato pelo Alonso?
– É o que estou pensando... Embora ache, como
admirador da Justiça, que a verdade deve prevalecer.
– Mas que Justiça, doutor? Que Justiça? O meu
marido está morto e quem me devolve ele, me diga.
57
– Olhe, é melhor a gente esquecer isso. Lhe aconselho
a não falar pra ninguém, é melhor assim...
– Mas o pessoal do Partido vai querer saber
dos documentos que fiquei de lhe entregar, o que
vamos dizer?
– Que roubaram, não é uma saída boa?
– Sim, mas se quiserem saber do que realmente se
tratava, o que vou dizer?
– Que a senhora não sabia o conteúdo, que apenas
tinha guardado um pacote que o Alonso tinha lhe dado,
dizendo conter um segredo muito grande e que podia lhe
ser útil. Que na ocasião ele tinha falado qualquer coisa
sobre Flores. Fica bem, não?
– Fica doutor, fica. É melhor mesmo!
– É melhor dona Olga, é melhor.
Dona Olga ficou um pouco desorientada com o
que ouviu e resolveu tomar um chimarrão com a vizinha,
pois não conseguia ficar só. E agora – pensava – o que
fazer? E eu que pensava que contando aquilo dava a volta
por cima e salvava o nome do Alonso... Mas, e agora?
Não, não vou pensar mais... Vou tomar um chimarrão,
quero ver se as idéias ajudam.
– Oh, dona Olga, que visita boa. Chegou na
hora do chimarrão, só estou estranhando a hora, é tão
cedo, não é?
– Nem sei, já me acostumei em levantar cedo, que
nem noto...
58
– Mas a senhora me parece nervosa, alguma coisa
lhe preocupa ou é só saudade, dona Olga?
– (Tentando disfarçar) Não, é só saudade,
só saudade...
– É, mas a senhora está tão branca...
– Ah, meu Deus, agora é que a senhora vai me
deixar nervosa...
– Não, não fique nervosa.
– Pois estou...
– Dona Olga, dona Olga... Meu Deus, socorro,
socorro...
– O que foi?
– O que foi?
– Chama um médico, urgente.
– Chama uma ambulância, agora, urgente...
– Não dá mais tempo pra nada, vocês não vão
acreditar: dona Olga também está morta!
– Mas, afinal, o que está havendo, o que está
fazendo essa gente morrer?
– Olha, quem pode saber alguma coisa é o nosso
ilustre advogado, foi o último que esteve com ela e
na reunião do Partido dona Olga anunciou que ia revelar
um segredo do Alonso para liquidar com o Flores
e o Alencar.
– E o que foi que ela contou?
59
– Só falando com ele.
– Rogério, mas por favor, por que vamos contar
tudo isso agora, por que vamos mexer nisso tudo? Será
que vale a pena?
– Claro que vale! O nosso lema é a decência, e
vamos começar por casa.
– Está bem, chama a imprensa, eu vou revelar o
segredo de dona Olga.
Eustáquio, o jornalista do jornal A Cidade,
estava boquiaberto com o que ouviu... Apesar da sua
experiência, não podia deixar de ficar surpreso. Pois não
é que eles da imprensa também tinham sido enganados.
Foi na cara deles a fraude. Acabou por ficar com um
pouco de vergonha, afinal – raciocinou – sua competência
não era como achava que era.
– Aí está senhores, a verdade dos fatos: uma
fraude eleitoral, sacramentada pelo deputado Flores e
com a benevolência do senhor Alencar. Agora vou telefonar
ao senador Vitório para que dê conhecimento ao presidente.
Imagino que o senador vá imediatamente ao
Tribunal Superior Eleitoral dar conhecimento dos fatos e
pedir instruções, embora o nosso juiz de Direito, com
quem já falei, tenha entrado em contato com o Tribunal
de Justiça Eleitoral e o Tribunal de Contas.
– E quem foi que concorreu com o Alencar?
– O Fonsequinha.
60
– O Barbeiro?
– É.
– Bem que eu pensei naquela ocasião que falei
com ele: Preciso guardar esse nome. Por isso ele sabia
tanto... Vai ver sabia disso também, mas deve ter ficado
com medo.
– Medo, mas medo de quê?
– É o que vou tratar de saber...
– Fonsequinha, então você é, na verdade, o nosso
prefeito. Sabia disso?
– Sempre desconfiei.
– E por que nunca falou? Teve medo?
– Tive um pouquinho de medo, sim. Tu sabes,
quem faz isso, faz pior...
– E agora, o que o senhor acha que vai acontecer?
– Eustáquio, ainda não quero falar para a
imprensa. Preciso antes conhecer a decisão do Tribunal
Superior Eleitoral – acho que é um caso inédito, não é? –
e também do Tribunal de Contas. Olha, não quero pagar a
conta de ninguém... que tu acha?
– O senhor continua irônico e bem informado. Eu
espero, mas quero uma entrevista exclusiva em nome da
nossa antiga amizade.
– Está bem, Eustáquio, fique tranqüilo.
61
– Mas Vitório, isso não é possível! Não é
possível!
– É, presidente. Mas é o que aconteceu. E foi no
nosso Partido. Isso é extremamente perigoso para todos
nós, temos que tomar medidas enérgicas. Se o senhor
concordar, vou pedir ao presidente do Partido que solicite
ao Tribunal Eleitoral a cassação do deputado Flores e o
registro do Alencar da direção municipal. Não dá para
meias medidas, o senhor não acha?
– Deixa eu pensar um pouco, não te afobes?
– Presidente, com todo o respeito – o senhor está
longe do eleitorado, o senhor está longe das ruas. Um
precedente desse tipo destróe com todos nós.
– Vitório, embora não tenha gostado do que dissestes,
prezo a tua capacidade política. Vamos tomar providências,
sim. Vou ligar agora para o ministro e sugerir
as medidas que pedistes. E fica atento. Qualquer coisa,
liga. Ficas com o direito de me interromper em qualquer
circunstância, ok?
– Agora sim, presidente, lhe vejo nas ruas. Que
seja um bom combate!
– E vai ser...
A barbearia do Fonsequinha virou sala de reunião
dos partidos, das rádios e dos jornais. Tudo acontecia
ali, e ele – faceiro como nunca – estava no centro
das atenções.
62
– Ei, Fonsequinha, já pensou se a gente tiver que
pagar os vencimentos atrasados?
– Olhe, não acredito nisso, eu não trabalhei. Nem
sequer atrapalhei aquele lote de safados que tomou conta
da Prefeitura. Sim, porque se eu tivesse querido, tinha
feito um bom barulho.
– Ah, Fonsequinha, deixa de engrossar, tu só fala
grosso agora que descobriram tudo.
– Ainda bem que descobriram, porque eles iam
aprontar outras. Por falar nisso, aonde andam o deputado
Flores e o Alencar? Bem que as rádios e os jornais
podiam fazer esse serviço pra gente...
– Sumiram, Fonsequinha.
– Como você sabe Eustáquio?
– Ou o senhor acha que eu não estou atrás deles?
– Quem vai gostar disso é o Vicente Lopes.
– Por que?
– Ué, ele é o suplente do Flores.
– Ah, é. Vamos entrevistar ele. Aonde é que a
gente pode encontrá-lo, hein Fonsequinha?
– Telefona para o Banco Central, eles dão
notícias.
– Mas que veneno é esse, Fonsequinha?
– Não é veneno, não. Ele é funcionário aposentado
do Banco Central, não sei onde está morando agora.
– Hein, o senador já ligou?
63
– Vocês esqueceram que somos adversários?
Claro que ele agora vai aparecer esparramando
toda aquela diplomacia, até porque o presidente deve
estar preocupado.
– O País todo já está falando desse rolo, que
não sobre para o presidente porque a reeleição vai
para o espaço!
– Não se preocupem que ele é bastante esperto
para dar a volta por cima!
– E o que vais fazer, Fonsequinha? Vais concorrer
de novo que é pra ter o gosto de administrar a tua cidade?
De verdade, é claro.
– Não, mas vou apresentar um nome para o
meu lugar...
– E quem é?
– E tem graça eu dizer pra vocês, agora?
– Entramos no terceiro ato, é Fonsequinha?
– Bem que tu tens razão, isto aqui está que é
um teatro!
– Sim, fala.
– Eustáquio, saiu uma Nota Oficial da presidência
da República e do presidente do Tribunal Eleitoral.
– E aí, meu?
– Ora, que tudo será devidamente esclarecido
para o bem da ordem pública, etc. etc..
– Estão tentando apagar o incêndio?
– Com certeza.
64
– E a oposição?
– Está reunida, acho que quer tirar “leite das
pedras” já em outras suspeitas, também em outras cidades.
Estão sensacionalizando.
– Pra variar, não é?
– Nisso a gente tem de ter cuidado, eles sempre
vão além da conta... isto é, dos fatos.
– Bem, de qualquer maneira, têm agora a Prefeitura
na mão, só que eu acho que não têm o Fonsequinha
na mão, afinal – sem trocadilhos – deixaram ele na mão.
– Ele está com esse espírito, é?
– Foi o que senti.
– Bem, fica atento e entrevista ele sobre isso.
– Com certeza.
No enterro de dona Olga teve um número recorde
de mulheres. Os homens sumiram.
– Mara, tu não estás achando estranho isso?
– Estou, fica quieta. Na verdade, não gostaram
do gesto dela revelando o segredo do Alonso. Tu
sabes como é...
– Mas era só o que faltava, colocarem as coisas
desse modo. Tu não achas?
– Claro que acho. Na verdade são todos uns idiotas,
mas não sou que vou dizer, ainda mais agora.
– É verdade.
65
– Tu não vais falar?
– Não convém, não convém...
– Minha amiga, tu não és fácil. Por isso és a
minha candidata.
– E tu, minha secretária. Gostastes?
– Claro que sim...
– Vitório, o presidente do Tribunal pediu uma
reunião e vai pedir a posse imediata do Fonsequinha e a
cassação do deputado Flores. O que tu achas?
– Acho que as coisas ficam bem assim, mas tem
de ser urgente!
– Vão se reunir daqui a pouco. Fica atento!
– Está bem, presidente.
– Olha, me comunica a reação do Senado e liga
para o Rogério, quero saber da situação local.
– Está bem, presidente. Devo lhe avisar que a
oposição está pretendendo armar um circo, mas pedi uma
reunião da bancada para controlar isso.
– O que já devias ter feito.
– O senhor tem razão, desculpe.
FRAUDE ELEITORAL REVELA FRAGILIDADE
DO SISTEMA, essa a manchete do jornal A
Cidade, que trouxe na sua edição detalhes dos fatos e
uma entrevista exclusiva com o deputado Flores, sem
66
entretanto, revelar o lugar do seu esconderijo. Informa
o jornal que o deputado contesta a versão de dona Olga
e pede que o Tribunal seja isento no seu julgamento,
mas não consegue ser muito convincente na sua defesa.
E pergunta:
– Por que o senhor se escondeu?
– Ah, meu filho, os inimigos nunca mandam flores.
De longe posso observar melhor os acontecimentos e
examinar os fatos com clareza para uma melhor defesa.
– O senhor já nomeou advogado?
– Não será necessário, eu mesmo farei a minha
defesa no Tribunal. De outra forma, deixo a vida pública,
estou um pouco enjoado disso tudo.
– Mas o senhor é a vítima?
– E como não? Por que eu tenho que arcar com as
irresponsabilidades do finado Alonso e de um grupo de
correligionários que armaram isso?
– Mas dizem que o senhor foi o mentor intelectual
disso, é verdade?
– É mentira, fica mais fácil dizer que sou eu.
– E quando o senhor vai falar ao jornal, queremos
publicar sua defesa em primeira mão?
– Farei isso, vocês sempre me prestigiaram.
Eu telefono.
– O presidente não gostou do resultado da reunião,
o Tribunal está dividido – disse o senador à bancada
-, e já começa a ficar preocupado. Acha que perdemos
tempo e, também, que devemos ter mais cuidado com as
67
escolhas que fizermos. Temos descuidado da ética e isso
ele não suporta, vocês sabem...
– Pois então que ele não dê guarida a certos tipos
que andam pelo Partido.
– Ah, meus amigos, vamos acalmar os nervos,
esta não é a hora pra isso. Vocês já imaginaram isso
nas manchetes dos jornais? Pois eu já! É tudo o que a
oposição quer.
– É, mas que não atire pedra, então.
– Está bem, está bem.
– E a que horas sai a decisão do Tribunal?
– Não sabemos. De qualquer maneira o presidente
mostra-se preocupado e os militares olham de
longe – por enquanto – para tudo isso.
– Era só o que faltava, os militares de novo...
– Facilita pra tu vê!
– Meus amigos, os tempos são outros, o
mundo mudou, essa revolução nas comunicações deixa
os fatos à descoberto. Fica difícil, ou mais difícil, manter
as safadezas.
– Até aí tu estás certo. Mas como podemos resolver
essa questão aí? E se houve outras fraudes?
– Não vai falta esperto para inventar outras histórias,
é por isso a preocupação do presidente da República
e do presidente do Tribunal. Não querem deixar a
coisa degringolar.
– Nem enrolar... sem trocadilhos.
68
– Cuidado com o veneno, cuidado!
A rádio da cidade anunciou em edição extraordinária:
“Atenção: o Tribunal decidiu marcar novas eleições
pois segundo declarações do seu presidente, querem
o processo todo passado a limpo. O deputado Flores a
processo e Alencar fica, desde já, inelegível por cinco
anos. O Tribunal – dizia o editorial da rádio – revelou-se
extremamente competente quando detalhou a fraude e
alertou que não sofrerá pressões e nem incorrerá em
erro em outros casos que, por conveniência, vierem a
ser anunciados.”
O alvoroço na barbearia do Fonsequinha
foi geral:
– Bem, nesse caso, vamos à luta: quem será o
candidato do nosso Partido?
– Só tem um nome, no meu ponto de vista: a professora
Mara Rodrigues.
– Ah, essa não. Agora deu a moda das mulheres.
– Não é moda não, ele tem tudo pra ganhar a eleição
disparado. Faz parte da ala renovadora do Partido,
além de termos nela a presença da oposição do Partido,
aqueles correligionários que se revoltaram contra essa
série de absurdos. Quer melhor?
– Bem, se é assim, vamos de Mara.
– Vamos saber o que o presidente acha?
– Vai perguntar para o Vitório, claro.
69
– Realmente o Vitório sabe porque esteve aqui e
acompanhou boa parte dos acontecimentos.
– Veio até consultar aqui.
– Como assim?
– Pergunta pra ele pela médica Orfila.
– Mas que estória é essa?
– Não e estória, é história, caro colega.
– Novamente, coisas assim. Vamos nos deter
no processo político e o caso de cada um é de cada um,
disse Rogério.
– Que tal sugerirmos ao presidente uma conversa
com a professora Mara?
– Acho uma boa idéia, mas vamos, primeiro, falar
com o presidente, ok?
– Está bem.
No Palácio esse era o assunto do momento:
– Já tive notícias pelo Vitório dessa moça. Se
vocês concordarem, ela é mesmo a nossa candidata.
– E a situação do deputado Flores, presidente?
– É delicada, ele é que terá que dar suas explicações.
De qualquer maneira, devemos esperar a decisão do
Tribunal para decidirmos pelo Partido.
– Presidente, não será bom mandarmos chamar a
professora para que conheça melhor a estrutura nacional
do Partido e tire uma foto com o senhor para que fique
70
bem claro durante a campanha que ela conta com seu
apoio, sobretudo pela honradez e coragem com que se
houve no episódio?
– É uma ótima idéia. Quem fará isso?
– Certamente o Vitório, presidente.
– Não, quero o senador Alexandre nessa
nova etapa.
– Mas, por que?
– Tenho os meus motivos, é melhor para
todos nós.
O jornal A Cidade anunciou na sua manchete:
MARA RODRIGUES É A CANDIDATA DO PRESIDENTE
e informou no seu noticiário a decisão do Tribunal,
a escolha do senador Alexandre para coordenar as
decisões políticas e a frustração do Fonsequinha que,
apesar disso, revelou que o nome que ele iria lançar –
como prometera – era o da professora Mara. E encerrou
seu noticiário, perguntando: unanimidade?
Sim, respondeu a população na primeira pesquisa.
E o povo argumentou com diversas razões:
– Mara é professora, vai governar como ensina.
(Claro que essas respostas eram dos mais
entusiasmados.)
– Foi ela a primeira a ter coragem de enfrentar o
Alonso e arrombar a porta para a gente ver a sujeira!
71
– Ela fala muito bem, lembram do discurso no
enterro do Alonso?
– Ela foi injuriada pelo deputado Flores, um
safado de quem ainda precisamos nos livrar. E muitos
outros argumentos.
QUEM SE ANIMA A SER CANDIDATO CONTRA
MARA? perguntou o jornal na semana seguinte à
transcrição da pesquisa, o que movimentou bastante a
barbearia do Fonsequinha:
– Olhem, eu acho que o Alencar devia arriscar.
Não era ele que tinha a chave do cofre.
– Pára de falar nisso porque além de inelegível
ele pode parar na cadeia.
– Por mim, é onde ele devia estar há mais tempo.
– Não fica assim, Fonsequinha. Esquece, perdeste
a eleição mas viraste notícia nacional, foi melhor que a
encomenda. Deves usar isso para melhorar os teus negócios,
quem sabe fazer outra coisa, melhorar a barbearia,
coisas assim.
– Não estou falando de negócios e muito menos
de levar vantagens ou tu esqueces o que eu passei?
– Pois vou levar teu nome à vice. Assim consagramos
o Direito, o que achas Fonsequinha?
– Eu até que gostaria. Admiro muito a professora,
ela seria a minha candidata, a que eu iria anunciar quando
tomasse posse.
72
– Então vou agora dar jeito nisso, vou ligar para
os companheiros. Vamos fazer de nossa cidade um exemplo
de democracia.
– E sob a batuta de uma mulher!
– E daí? Te achas melhor que ela, por que? Olha
que eu abro o bico!
– Não foi isso que eu quis dizer...
– É bom ficar humilde e colaborar, está
bem claro?
– Está!
MARA E FONSEQUINHA CONSAGRAM
VITÓRIA DA DEMOCRACIA, estampou o jornal
depois dos acertos finais e deu a data da eleição: 3 de
dezembro com mandato até o fim dos mandatos municipais.
A legenda da foto da professora Mara com o presidente
dizia: A voz da coragem chegou ao Palácio e o
presidente consagra a professora como candidata ideal.
– Teremos – com certeza – tempos novos
por aqui.
– É, eu me rendo!
– Ninguém pode mais com essas mulheres!
– E olha que elas estão apenas começando...
– Já vens com o teu entusiasmo desmedido.
– Eu já te mandei ficar quieto, não foi. Senão eu
falo e tu sabes que eu sei de muita coisa.
73
– Que é isso?
– O que ouvistes. Chega de machismo de
fachada, que só atrapalha as coisas. A Mara tem valor
como qualquer outra pessoa, o próprio presidente, que é
um homem esclarecido, soube ver isso. Só tu, com esse
olhar perturbado é que quer saber mais?
– Está bem, está bem...
– E se não está vai ficar. Esta cidade merece ser
moderna e civilizada.
– É assim que se fala – gritou o Fonsequinha na
porta da barbearia -, assustando todo o mundo, e acabou
aplaudido depois do discurso em que referendando o
nome de Mara, pediu novos tempos.
Repórteres de todo o País foram assistir a posse
de Mara, não só por querer conhecer a figura da nova
prefeita, que conseguiu algo inédito, não só porque reverteu
todo o quadro político coma sua coragem e
determinação, como porque obteve unanimidade, fato
único até agora.
Mas a consagração maior veio com a versão televisiva
destes acontecimentos, que teve como título:
Quem tem medo de mulher?
– De Voto Distrital virou Voto Universal, gritou
um gaiato que – tempos depois assistia a novela em um
bar da cidade.
74
Foi quando a prefeita Mara Rodrigues chegou
no local:
– E estamos de olho no mundo, moço. Não
duvide, não duvide...
– E eu sou louco de duvidar?
(Ob:este conto e dedicado à mulheres extraordinárias)
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