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Contos-->"O POLONÊS E O MANDIOCAL" -- 26/09/2005 - 12:28 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este episódio de "A Menina da chácara" é dedicado ao meu querido amigo CORRADO CUCCORO, Professor de Grego e Latim do Liceu Paolo Sarpi, de Bergamo, Itália e colaborador da Universidade de Brescia. Minha amizade é eterna.


O POLONÊS E O MANDIOCAL



O terreno vinha sendo preparado há algum tempo. Primeiro, as árvores foram cortadas e os troncos levados para a serraria da Fundação. Só restou um enorme tronco de jequitibá, cujo interior fora totalmente consumido pelas brocas. Depois dos serrotes foi à vez das foices entrarem em ação. O mato foi cortado e queimado. Menina e Zico, mal podiam se agüentar de curiosidade. Era muito bom pisar no chão recém-queimado. A terra ficava fofinha, boa de brincar. Quando siá Doninha permitiu que eles fossem ver o terreno, foi uma alegria só. Os dois viram grandes tocas de tatus canastra, cujos ocupantes já não moravam ali. Menina gostava de pensar que os tatus cavavam túneis gigantescos para, através deles, chegar ao Japão e destelhar as casa dos japoneses. Desde que Dom Mozart contara para os filhos que o Japão e a China eram países que ficavam do outro lado do mundo, sob os pés dos ocidentais, a garota vivia imaginando como seria aquele mundo. Agora diante do buraco do tatu, cujo fundo ela não conseguia ver, a fantasia a fez pensar em voz alta:
_Bem que eu queria ver a hora em que o tatu canastra chega no Japão...
_Por que, moço? – perguntou entre surpreso e curioso, Zico.

_ Ora! Pra ver a cara deles...

_ De quem? Do tatu ou do japonês?

Acho que dos dois. No Japão não tem tatu, eu acho. Ou será que tatu é japonês? Vai ver que é por isto que ele cava buracos, pra poder voltar pra casa dele.

_ O papai não falou nada de tatu no Japão – lembrou Zico.

_ Se lá não tem tatu, eu queria ver o japonês quando ele vir o tatu entrando pelo telhado da casa dele. O japonês vai sair correndo quando olhar a cara de rato, do tatu canastra...

_ Tatu tem cara de rato? Onde você viu?

_ Tem sim! Até o bigode de rato ele tem. Tatu é um rato grande com um casco de sanfona nas costas.

Zico ficava de queixo caído diante da sabedoria de Menina. Mas, por outro lado, às vezes, ele também duvidava de tanto conhecimento e, quando isto ocorria, a pergunta surgia na ponta da língua.

_ Onde você viu o tatu canastra? Quem disse que ele fura a casa do japonês? Você já viu um japonês?

Dúvidas ao que dizia era coisa que Menina não admitia. Dando asas a imaginação, a garota respondia tudo, nada ficava sem resposta.

_ Você é pequeno, Zico! Gente pequena não sabe de nada. Eu já vi tatu canastra, sim. Foi lá na casa do “seu” João, o caçador. E ninguém nunca viu um japonês, por que eles moram em baixo do chão. Mas eles existem, o papai falou que vai trazer uma revista que tem fotografia de gente japonesa.

Zico ouviu a explicação da irmã e continuou protestando:

_ Moço! Você também é pequeno como eu. A gente nem foi à escola ainda.

_ Tá bom, Zico! Eu sou pequena, mas você é menor do que eu.

A garota resolveu dar por encerrada a questão e voltou sua atenção para outro lado do terreno. Avistou uma carcaça de porco espinho, que só foi reconhecida por causa dos espinhos em volta da ossada. Ela e Zico olharam os restos da ossada e penalizados se entreolharam em silêncio. Um pouco adiante avistou várias Flores do Fogo. Siá Doninha dizia que aquela era a “flor do diabo”, só porque nascia das cinzas. O vermelho das flores era vibrante, lembrava brasas. Menina olhou-as receosa. Se a flor era do diabo, melhor seria manter distância. Vai que o capeta estivesse por ali, invisível, olhando quem se aproximava da flor. Era melhor se afastar logo. Com medo, ela fez sinal de silêncio para o irmão, depois apontou as flores e sussurrou no ouvido dele:

_ Zico! Vamos sair daqui! O capeta deve estar olhando as flores dele, não diz nada não, ele pode escutar...

O garoto sacudiu a cabeça em sinal de obediência e silenciosamente se afastaram das flores. O terreno parecia não ter fim. Os pequenos continuaram andando até o momento em que Zico avistou algo e chamou a atenção da irmã:

- Olha! Lá no canto, uma baleia! Vamos ver de perto?
Menina virou-se pra direção apontada. Viu um enorme tronco preto e cinza, que jazia nos limites do terreno, próximo da cerca. Curiosos, correram até lá. Ao chegarem perto, diminuíram o passo e Menina disse:
- É só um tronco queimado. Parece mesmo a baleia dos desenhos do papai. Vamos dar a volta pra ver o que tem atrás dele?
Os garotos contornaram o tronco. Descobriram que no interior dele ainda havia fogo. Zico preocupou-se:
- Moço, a gente não pode ficar aqui. Está vendo? Ainda tá queimando.
A garota olhou por onde o fogo já havia passado. Parecia um túnel. Concluiu que aquele era o jequitibá que fora desprezado pelos lenhadores por causa das brocas. Agora o fogo estava se encarregando de comer o mal que fatalmente ia matar a pobre árvore.
- _ Sabe, Zico? Esta árvore é aquela que os cortadores disseram que não prestava. Ela ia morrer de qualquer jeito. Quando o fogo acabar, aí dentro vai ficar um buraco grande. Vai ser bom de brincar!
_ Coitada! Mas mesmo com o fogo aí dentro, ela parece uma baleia.
_ É mesmo. Só que agora a gente tem que voltar. Nós estamos perto da casa do polonês.
Ao ouvir o nome “polonês”, Zico ficou apreensivo e concordou de imediato com a irmã.
_ Tá bom! Vamos voltar! Mas a gente não achou nada de bom pra levar pra casa - lamentou Zico.
_ É claro que não! Ninguém pode aproveitar nada de um lugar onde o fogo passou. Só ficam cinzas – e olhando para o campo à sua frente, acrescentou - e aquelas flores ali.
Respondeu receosa, tentando desviar os olhos.
_ Moço! Você também tem medo do polonês? O que ele faz com a gente? – quis saber o garoto.
_ Todo mundo tem medo dele. Até o tio Antônio, eu acho.
_ Mas o que ele faz com as pessoas? - Insistiu Zico.
_ Não sei. A vovó disse que ele veio da guerra. Contou que lá onde ele morava, as pessoas comiam cachorro. Comiam ratos também. A vovó disse que eles comiam essas coisas pra não morrerem de fome.
_ Que nojento! Comer cachorro? Ninguém come cachorro...

_ É nojento sim, mas ele comeu só na guerra. Agora ele come coisas que todo mundo pode comer. A vovó dá um monte de coisas lá da horta pra ele. Quando ela manda matar porco, eu já vi quando ela pediu pra “seu” João caçador, levar carne e toucinho para o polonês.

_ A vovó conhece ele? Mas o que ele faz? Você não respondeu moço!
_ Eu não sei! Acho que é porque ninguém entende o que ele fala. Quando a gente não entende o que uma pessoa diz, a gente tem medo...

_ Então você tem medo do seu “Nhoansim”? – quis saber Zico. Nhoansim, o leiteiro, era fanho e eles não compreendiam o que o homem dizia.

_ Não! O “seu” Nhoansim fala a nossa língua. Só que ele fala pelo nariz. Mas a vovó e o tio Antonio sabem o que ele diz.

As crianças foram conversando pelo campo coberto de cinzas. Pouco depois avistavam o casarão da chácara. O polonês deixara de ser o assunto. Preferiam falar do mutirão que devia acontecer brevemente. Só estavam esperando as mudas de mandioca. Muitos colegas de Dom Mozart viriam ajudá-lo. Os compadres e conhecidos de Siá Doninha, também viriam. Os adultos tinham muitos compadres. Seria uma grande festa.
As cepas chegaram e o mutirão foi marcado para o fim de semana. Os preparativos, por si, já eram uma festa. Engradados de cerveja e guaraná chegaram e foram armazenados na despensa, que, por sinal, estava cheio de coisas que seriam consumidas na ocasião.

Na madrugada do sábado chegaram os compadres. Eles se encarregaram do abate de porcos e cabritos. Quando Menina e Zico acordaram, a casa já estava cheia. Era muita gente pra se ocupar do plantio.
A mesa de três tábuas, da sala de jantar, fora colocada na varanda e um jirau de tabocas tinha sido armado ao lado da mesa. Sobre o jirau, panelas enormes, cheias de comidas. Havia quase de tudo: farofa, carne frita, abóbora cozida, feijão tropeiro, mandioca cozida. Enormes bules de chá, café e leite. Menina olhava tudo admirada, pois não conhecia aqueles objetos. Siá Doninha havia colocado cestas de palha cheias de bolo de arroz, bolos de milho, biscoitos de puba e de polvilho, garrafas de manteiga de leite, era uma fartura. As pessoas se serviam depois iam pra lida.
Diante de tudo aquilo, e vendo tanta gente estranha, Menina e o irmão ficaram parados. O jeito era pedir ajuda pra Maria. Eles a encontraram na cozinha, as voltas com temperos e um bando de comadres, todas ocupadas com alguma coisa. A moça estava de costas para a entrada, mas Menina aproximou-se e puxou-a pela saia.

_ Maria! Vem servir o nosso café.

_ Num possu, Minina! Tô muito ocupada. As coisa do café tá tudo lá di fora, no jirau. Pega sua caneca e a do Zico e vai tomá o chá doceis.

_ Mas eu também não posso. Nem o Zico. Tudo lá fora é de gigante. É muito pesado. Você é que tem de servir.

Uma das comadres ofereceu-se pra servir os pequenos. Eles recusaram.

_ Não! “Brigado”. A Maria é que sabe do que a gente gosta – retrucou Menina.

A moça viu-se obrigada a interromper o que fazia. Limpou as mãos e foi até à varanda onde serviu os garotos. Os dois se fartaram de bolo de arroz e biscoitos de polvilho. Enquanto ela servia, era observada, com carinho pelos dois. Menina quis saber de quem eram as enormes panelas e bules. Calma Maria explicou:

_ O pai doceis pidiu imprestado lá no refeitoru da Fundação. Amenhã ditardi vai tê di adevorvê tudinho.

_Esses pratos de alumínio também? - perguntou Zico, apontando a pilha de mais cinqüenta pratos sobre a mesa de tábuas.

_ Tamém os pratu, os galfu, as cuié, us copo. Tudo qui oceis tá veno diferenti é du refeitoru.

_ Como foi que eu não vi quando trouxeram isto tudo aqui pra casa? Onde é que eu tava?

_ Ocê tava durmino, Minina. Sió Ricardo chegô bein dimenhanzinha cum camião chei dessas coisa. Agora ceis vai brincá! Vô tê de ajudá as muierada na cunzinha. As irmã doceis tá tudo brincano lá no terreiro, perto du forno. Ceis vai pra lá, mais vê si num briga cum ninguém.

Maria conhecia as crianças muito bem. Sabia que o convívio entre os quatro, nem sempre era possível. Sempre havia briga ou discussão. Os pequenos saíram em direção do local indicado por Maria. Siá Doninha, Josefa e uma vizinha estavam junto ao forno de barro, cuidando dos assados. O cheiro bom dos temperos estava por toda parte. Menina e Zico se aproximaram e pediram a bênção pra avó e pra mãe. Os dois nem ouviram o “Deus abençoe” das duas, pois já haviam avistado as irmãs que brincavam com mais três garotas, à sombra das laranjeiras. Elas brincavam de casinha de bonecas. A recepção a eles não foi nada acolhedora. Liviva foi logo advertindo que não podiam tocar em coisa alguma ou mesmo dar opinião. Menina não gostou dos modos da irmã e reagiu:

_Por que não podemos brincar com vocês? Eu não fiz nada, ainda...

_ É! Mas vai fazer! A gente já sabe como você é. Respondeu Latide.

Menina não se abateu e prosseguiu.

_ Como é que eu sou? Vocês é que são bobas. Pensam que essas bruxas de pano e de sabugo de milho, são de verdade. Se vocês não me deixarem brincar, eu vou fazer umas coisas com esses brinquedos idiotas.

_ Tá vendo como você é? Já tá querendo fazer bagunça. Pode ir embora daqui - ordenou Liviva.

Menina olhou pra irmã e depois olhou para os brinquedos arrumados como numa casa de verdade. Em seguida puxou Zico pela mão falou ao ouvido dele:

_ Moço! Vamos chutar areia nos brinquedos delas. Depois a gente sai correndo daqui.

O garoto concordou fazendo um gesto afirmativo com a cabeça. Por alguns minutos eles ficaram parados olhando a brincadeira delas. Para menina, ali estava reunida a maior coleção de bonecas feiosas que alguém podia ter. Havia bonecas de pano, bonecas de louça, só com o corpo de pano e o resto de louça. Bonecas de sabugo de milho, vestidas de chita. Bonecas de madeira. Algumas estavam deitadas em camas de madeira, que o tio La fuente fizera. Outras sentadas em cadeirinhas de balanço. Algumas bonecas eram feitas pelas próprias garotas. Menina se perguntava como as irmãs podiam achar graça em brincar com coisas tão feias. Suas irmãs eram mesmo muito bobas. Como seria bom se as irmãs a deixassem modificar as caras das bonecas...

Mas agora ela não ofereceria sua ajuda, as irmãs não mereciam. Era hora de agir. Uma vez que ela e Zico não eram bem-vindos, tudo o que devia fazer era estragar a brincadeira das garotas.

Latide e Liviva ficaram atentas quando a viram cochichando no ouvido de Zico. Menina, porém, era rápida e num movimento que parecia ensaiado, ela e o irmão chutaram a areia que as garotas haviam varrido e deixado de lado. A areia cobriu todos os brinquedos e também as meninas que estavam sentadas no chão. Os gritos de protestos e raiva, vieram em coro. Uma das meninas visitantes começou a chorar porque entrara areia em seus olhos. Josefa aproximou-se para socorrer a garota e castigar os culpados, mas eles já estavam longe. Em desabalada carreira foram em direção da lida, onde os homens plantavam as cepas da mandioca.

Os homens trabalhavam ao pares. Um cavava o sulco na terra, o outro vinha a seguir, colocava a cepa na cova e cobria com terra. Pareciam seguir uma fita métrica invisível. De qualquer ângulo que se olhasse, estavam todas em linha reta.

Menina e Zico ficaram parados por algum tempo, vendo o trabalho dos homens. Faltava ainda muita coisa, o terreno era grande. Menina avistou o tio Antônio no meio dos trabalhadores. O rapaz usava uma roupa velha e um chapéu de palha com as abas roídas. Nos ombros, levava um embornal com as cepas pra serem plantadas e no pescoço tinha um cantil com água. O tio estava engraçado. Os olhos cinza-azulados do rapaz brilharam num sorriso, quando ela e o irmão se aproximaram. Sem parar o trabalho, ele quis saber o que os garotos estavam fazendo ali, sob aquele sol. Menina, que não escondia nada respondeu:

_ Nós estamos correndo da Latide e da mamãe.

_ Eu sabia, sua danadinha! Você está sempre aprontando das suas. E o pior é que arrasta seu irmão com você, não é?

_ Foi a Latide quem começou tudo. A gente só queria brincar com elas. Mas aí ela não deixou. Então nós jogamos areia nos brinquedos delas.

_ Por que você é atentada assim, hein Lagartinha?

_ Eu já disse! Foi ela quem começou tudo.

Respondeu, olhando o tio que tirava os pedaços da planta do embornal e plantava-os rápido no chão. Achando tudo aquilo muito engraçado e vendo a aparência do rapaz, que era sempre arrumada, perguntou:

_ Tio, o senhor vai ganhar dinheiro pra ficar assim vestido de espantalho?

O garoto que o ajudava parou o trabalho e começou a rir. Antônio, vaidoso como ele só, ficou encabulado e vermelho. Mas logo recuperou a pose e respondeu:

_ Esta é uma roupa de trabalhador, sua malandrinha. Você está vendo alguém aqui com roupa melhor do que esta?

Zico respondeu no lugar dela:

_ É que a gente nunca viu o senhor com roupa de espantalho. Até o chapéu dele o senhor pegou.

O dois rapazes caíram na gargalhada, mas em seguida, Antônio aconselhou-os a voltarem para o casarão. As crianças se recusaram. Ofereceram-se pra ajudar no plantio. O tio explicou que aquela não era tarefa para criança. Que elas deviam procurar uma sombra pra se abrigarem. Menina olhou em volta e não viu nenhuma sombra. Mas viu lá ao longe, o tronco do jequitibá tombado. Animada, falou com o tio:

_ Tio, o senhor tá vendo aquela baleia caída lá perto da cerca?

_ Que baleia você está vendo aqui nesse cerrado?

_ Aquela lá! A que ninguém quis levar pra serraria. Foi o Zico quem falou que é uma baleia. Parece mesmo, não é?

Antônio e o ajudante acharam que as crianças tinham razão. A imensa tora era muito parecida com uma baleia encalhada.

_ Então, tio? A gente pode ir lá? O senhor fica olhando daqui, tá?

_ Está bem, podem ir. Mas tenham cuidado ao pisarem por esse terreno. Tem muitos buracos perigosos. Os tatus cavam túneis por toda parte. Eles podem ceder com o peso de vocês.

_ A gente toma cuidado, tio! O senhor deixa a gente levar o seu cantil? A gente pode ficar com sede. Lá não tem água.

O rapaz tirou o cantil do pescoço e o entregou à sobrinha. Quando os dois deram alguns passos em direção ao tronco, o tio gritou:

_ Vocês dois! Não vão esquecer o meu cantil por aí. E tenham cuidado pra não se aproximar da casa do polonês.

A última advertência provocou um frêmito nas costas de Menina. Ao chegarem ao tronco, viram que o fogo, além do túnel, fizera dois buracos na parte de cima do mesmo. Os meninos entraram pelo túnel e ficaram admirados com a largura do jequitibá. Menina e o irmão andaram alguns metros pelo interior do tronco. Zico foi muito além dela. Ele se divertia metendo a cabeça pelos buracos da parte superior. Ela observava a brincadeira do irmão, cujo rosto cor de romã, foi ficando cada vez mais escurecido pelo carvão. Olhando pra própria roupa, percebeu que estava toda suja. Se sua mãe a visse iria brigar por isto também, preocupada, chamou o irmão pra sair dali. Quando saíram à luz do sol, pareciam dois carvoeiros, estavam irreconhecíveis. Zico gargalhava por causa da aparência da irmã.

_ Moço, você parece um cachorro branco e preto. Tá muito engraçado.

Menina olhou pra ele e falou:

- Você também! Você parece o saci. Tá todo preto.

Ao ouvir isso, ele parou de rir. Olhou pra todos os lados e ficou sério. Menina não continuou. Sabia que o irmão tinha medo do saci. A avó dissera aos dois que quando uma pessoa anda pelos matos, deve levar consigo pedaços de fumo. Porque se o saci aparecer ele vai pedir fumo para o cachimbo. Se a pessoa não tiver, ele se vinga transformando-a em bicho ou em árvore. Na dúvida, até Menina preferia não falar no saci. Ela tinha certeza de que quando se pensa ou se fala em seres fantásticos, eles aparecem. Seria melhor pensar em outra coisa.

_ Sabe o que a gente podia fazer agora? - Perguntou ela.

_ O quê?

_ O tio Antônio tá olhando a gente lá de longe. Vamos aproveitar pra ver a casa do polonês?

Zico ficou tenso e respondeu:

_ Mas ele é doido, moço! Se ele nos vir vai ficar mais zangado.

_ Não! Ele não vai ver a gente. Vamos ficar escondidos no mato. A gente não faz barulho e fica bem quietinho.

Zico ainda tentou argumentar:

_ E a cerca? Como é que a gente faz?

_ Ora, é só uma cerca de arame. Nós já passamos por baixo de muitas cercas desse jeito. Não tenha medo. O mato esconde a gente.

Menina tirou o cantil do pescoço e deixou-o dentro do oco do tronco. Achou que ele atrapalharia quando fosse passar por baixo do arame. Zico a acompanhou, mas não sem receio. Passaram sob a cerca e do outro lado, pé ante pé, entraram pelo mato que servia de fronteira entre os terrenos da chácara e a casa do polonês, daquele que todos conheciam só de ouvir falar.

Contava-se que ele chegara ao Brasil fugindo da perseguição nazista. Era polonês de origem judaica. Seus pais haviam se transferido para o norte da Itália, durante a primeira guerra mundial. O polonês e os irmãos eram ainda pequenos. A família instalou-se numa pequena localidade da região trentina. Eram comerciantes. Levavam uma vida de trabalho, preocupados, sobretudo, com educação dos filhos. Anos depois, veio a segunda guerra. Quando as tropas alemãs ocuparam a Itália, eles e milhares de outras famílias judias foram levados para campos de concentração. Seus pais foram executados poucos dias depois da prisão. Nos campos de concentração, os alemães matavam primeiro os idosos considerados inválidos para o trabalho e depois as crianças. O polonês foi separado dos irmãos e levado para uma fábrica de produtos químicos, nas proximidades de Domodóssola. Formado em engenharia química, era obrigado a fazer armas mortais que seriam usadas pra eliminar sua gente. Ele não teve mais notícias dos irmãos.

Felizmente, numa arriscada operação, a resistência o resgatou. Foi levado para a Suíça e de lá veio para o Brasil. Contavam também que ele não dormia. Vagava pelas noites fugindo dos pesadelos que o assaltavam quando adormecia. Suas lembranças do campo de concentração eram terríveis. Da Polônia ele não se recordava, pois transcorrera toda sua vida na Itália. Há dois anos se instalara na região, na fronteira de Goiás com Mato Grosso e desde então entrara para o folclore e conversas dos chacareiros vizinhos. Siá Doninha era uma das poucas pessoas que haviam conversado com ele, isto é, tentado conversar, pois o polonês só falava o próprio idioma e o italiano.

Menina e o irmão andaram um pouco pela mata sob a proteção das enormes árvores. Zico, desde o início, dera mostras de que não gostava nem um pouco daquela incursão:

_Moço! Este mato é grande. Eu quero voltar pra casa!

_ Você é muito medroso, Zico! E olha, o certo é dizer que o “mato é alto”. O mato não é grande...

_Moço, eu não quero aprender nada agora. Eu quero voltar pra casa.
_ Ta bom, Zico! Espera só um pouquinho, nós já vamos ver a casa do polonês.

Depois de alguns minutos andando no mato eles ouviram latidos de cães. Menina orientou-se para aquela direção. A mata era espessa e alta. Dificilmente eles podiam ser descobertos. Andaram mais uns passos. Por entre o emaranhado de arbustos e cipós, viu a casa de madeira. Parada onde estava, fez sinal para o irmão fazer silêncio. Zico aproximou-se dela e indagou preocupado, quase num sussurro:

_Moço, será que a gente vai saber voltar pra casa? Este mato é muito alto. Eu acho que tem bichos aqui...

_ Não tenha medo! A gente vai saber voltar pra casa. Vamos só ver se ele aparece e depois a gente volta. Fica quieto agora. Vamos esperar...

_ Esperar o quê? Eu só estou vendo aqueles cachorros lá na porta.

_ Eu também tô vendo eles. Cuidado pra não sacudir os galhos da moita. Eles podem nos descobrir.

No pátio da cabana se encontravam três grandes vira-latas de cor amarelo-queimado. Estavam deitados. Olhavam na direção oposta à dos meninos. Pareciam esperar alguém. Tinham as cabeças levantadas e as orelhas também. Subitamente, os três levantaram metade dos corpos e ficaram sentados. Alguém ou algo devia estar se aproximando daquele lado. Menina pôde observar que os três tinham as mesmas características dos cachorros de “seu” João, o caçador. Provavelmente, aqueles também eram caçadores. Zico começara a dar mostra de aborrecimento. Os mosquitos o estavam picando muito. Ela também estava sendo picada. Mesmo assim fazia sinal pra que ele esperasse mais tempo. De repente, ouviu-se um latido forte. Vinha da direção que os cães olhavam. Foi então que de detrás cortina de mato, surgiu um homem alto, branco, louro. Calçava botas de cano alto e usava um chapéu de lona cáqui, como aqueles dos caçadores de safári. Nas costas, um rifle. Estava acompanhado de um cachorro da mesma raça dos três que esperavam na casa, mas o cachorro era preto. Zico e Menina se olharam atônitos. O garoto, amedrontado, falou baixinho:

_Moço! Ele tá pelado! Ele não usa roupa! Vamos embora daqui logo... Vamos moço!

_ Tá bom, Zico, vamos logo. Mas não faça barulho, senão ele vai ver a gente. Vamos esperar ele entrar na casa. Se a gente levantar agora, ele vai ver.

O homem estava de costas para as crianças. Brincava com os cães que saltavam à sua volta. Falava uma língua incompreensível. Os cachorros, entretanto, pareciam compreender tudo.

_ Mi siete mancati, ragazzi! - dizia o homem.

O cachorro preto ainda preso pela corda pareceu farejar alguma coisa e começou a rosnar. Imediatamente, o polonês ficou alerta. Num movimento rápido, tirou o rifle das costas e apontando-o em todas as direções, gritava ameaçador:

_ Andatevene, maledetti! State lontano da me!

Em sua alucinação, o pobre homem via alemães por toda parte. Ao ver aquela cena, Menina teve muito medo. Entretanto, devia manter a calma. Zico não podia perceber o seu medo. Olhando para o irmão, viu que ele estava a ponto de chorar. Sentindo que era observado, o garoto perguntou-lhe com voz trêmula:

_ O que ele tá dizendo? Pra quem ele tá apontando a espingarda? Eu quero ir pra casa, moço, vamos logo, anda...

O choro abafado do menino parece ter sido ouvido pelos cães, que, como loucos, puseram-se a latir. O polonês ficou mais alucinado e correu para dentro da casa. Lá de dentro, ele abriu meia janela e apontou o rifle em direção da mata. Disparou várias vezes. Menina abraçou-se ao irmão e começou a chorar também. Os dois pareciam menores do que eram de tão encolhidos. Alguns minutos depois, reunindo toda coragem que lhe restara, Menina levantou a cabeça e viu que os cachorros não estavam mais na frente da casa. Isso lhe deu ânimo para fugir daquele lugar. Os disparos haviam cessado. Era hora de voltar para o mandiocal. Cautelosa, falou com o irmão:

_ Zico! Vamos sair meio agachados. É pra o polonês não ver a gente. Segura com força a minha mão, vamos correr.

A decisão da irmã parece ter dado forças ao garoto, que prontamente levantou-se e acompanhou-a na corrida pela mata. Como um bólide, os dois saíram em desabalada carreira. Menina procurava orientar-se pelos vestígios deixados por ela. Tivera o cuidado de vir quebrando ramos das moitas quando ingressara na mata. O problema era correr com o corpo curvado, aquela posição não ajudava. Ela não podia reconhecer o trecho marcado. Zico a acompanhava como uma sombra. Seus dedinhos pareciam garras cravadas na mão da irmã. Quando se sentiu suficientemente afastada do perigo, parou sob um jatobazeiro. Buscou assento nas enormes raízes aparentes da árvore. Zico sentou-se ao lado dela. Os dois olharam um pra o outro e começaram a rir. Os rostos encarvoados de ambos pareciam o pelo do gato Paizinho. As lágrimas deles fizeram rajas na pele suja de carvão. Naquele instante, sem pensar nos momentos de poucos minutos atrás, ela comentou:

_ Moço, será que aqueles cachorros vão ser comidos pelo polonês?

Zico olhou sério pra ela e disse que não queria mais falar naquilo. Menina compreendeu o medo do irmão. Por entre a copa das árvores que os cercavam, percebeu que o sol já estava alto. Naquela hora, em sua casa, já estaria sendo servido o almoço. Sentindo-se repousada o suficiente, convidou o irmão para prosseguir. Depois de algum tempo, ela viu que as marcas não estavam ali. Conseqüentemente, aquele não era o caminho de casa. Apavorada, parou e procurou ouvir as vozes dos homens que estavam na lida. O único som que ouvia era o da mata e o das batidas de seu coração assustado. Onde estaria a cerca? Que lugar era aquele? Os tiros! Será que ninguém ouvira? Seus pensamentos foram interrompidos pela pergunta de Zico:

_ Moço, nossa casa já está perto?

Olhando-o com ternura, ela respondeu:

_ Vamos logo achar a cerca. Quando a gente encontrar, aí vai estar perto. Vamos procurar as pontas de matos que eu quebrei, assim vai ser mais fácil.

_ Você não sabe mais voltar moço? A gente se perdeu?

_ Não! É porque eu quero brincar de Joãozinho e Maria, lembra? A estória que a mamãe conta pra gente?

_ Moço! Eu não quero brincar de nada. Eu quero voltar pra casa - disse o pequeno.

A garota estava começando a se afligir. Seus olhos buscavam com ansiedade os raminhos quebrados. Sua boca estava seca, as picadas de mosquitos, ardiam na pele. Zico devia estar com fome e sede, o que ela poderia fazer? De repente, ouviu latidos de cães. Zico correu pra perto dela e esqueceu toda a prudência, pondo-se a chorar alto. Os latidos ficaram mais próximos. Menina olhava pra todos os lados. Agora já se ouvia rumor de galhos se partindo e passos fortes. Abraçada ao irmão procurou um lugar para esconder-se com ele. Viu o jatobazeiro de tronco largo e correu pra ele. Só então percebeu que andara fazendo círculo. Aquela era a mesma árvore onde estivera pouco antes. Os cachorros se aproximavam. Menina estava ciente do perigo que corriam. Por isso, resolveu pedir perdão para o irmão, pela encrenca em que se metera e a ele também. O menino, de apenas quatro anos de idade, surpreendia pela rapidez em entender as coisas. Com o rostinho encarvoado, molhado de lágrimas, deduziu:

_ Eu sei! Nós vamos morrer não é? Eu nunca mais vou ver a mamãe, o papai e todo mundo lá de casa... - depois, pensativo, continuou - Mas eu vou ver você, não é? Você também vai morrer?

Menina engoliu o nó na garganta e confirmou:

_ É sim, Zico! Eu também vou morrer. Vou ficar junto de você, vamos ficar juntos.

De repente, como num passe de mágica, um cachorro amarelo-queimado surgiu na frente deles. Olhou diretamente nos rostos apavorados dos pequenos e afastou-se latindo. A voz do polonês foi ouvida gritando aquelas palavras incompreensíveis:

_ Maledetti, maledetti! Non lavorerò mai piú per nessum maledetto tedesco.!

As crianças já podiam avistá-lo. Estava sem o chapéu de caçador, mas usava roupas. O homem gritava que não trabalharia nunca mais para os alemães. Pedia para ser esquecido, para ser deixado em paz, sob pena de matar qualquer um.

_ Dimenticami! Ammazzo quiunque si avvicini a me.

O cachorro amarelo-queimado voltou para perto das crianças, que tremiam de pavor. Logo os outros cachorros alcançaram o primeiro. Ficaram diante delas e estranhamente foram diminuindo os latidos. O polonês percebeu a mudança de comportamento dos animais. Cauteloso, veio andando naquela direção. Sem baixar o rifle, avançou direto para o ponto onde os dois choravam. O pavor era tanto, que eles não conseguiam desviar os olhos da face vermelha do homem. A fisionomia raivosa dele foi se modificando a medida que avançava. Vendo que não havia saída, Menina pôs-se de pé. Entre soluços, suplicou pra que ele não matasse seu irmão. O polonês se deteve. Com olhos escancarados, parecia não estar acreditando no que via. Depois, deixou o rifle de lado e vagarosamente falou uma mistura de italiano e português:

_ Ma dai! Non ter paura, non ter medo di me, bambini miei.

Ele falava e estendia os braços para eles, ao mesmo tempo os encolhia. Era como se tivesse medo de assustá-los mais ainda. Estava quase patético. Zico intuiu que o polonês não era o bicho papão que pensavam. Levantou-se do chão e perguntou:

_ O senhor não vai matar a gente?

Naquele momento, Menina teve quase certeza de ver um brilho de doçura nos olhos azuis do homem. Como resposta, ele novamente ensaiou aquela linguagem estranha:

¬_ Matar menino, non! Io non mato. Papá de menino, dovè? Onde é casa de menino? Dio mio, poveri bambini!

A partir daí, os dois pareciam entender tudo o que ele dizia. Zico, apontando a mãozinha encarvoada, para o lado que ele acreditava estar sua casa, falou:

_ É lá! Lá na chácara perto do rio.

Encorajada com o sucesso do irmão, Menina meteu-se na conversa:

_ Nossa vó conhece o senhor. Ela é dona da horta aonde o senhor vai.

O homem sorriu para as crianças. Tranqüilizou-as dizendo que Siá Doninha era uma “donna di grande cuore”. Zico pediu pra ser levado pra casa. O polonês ofereceu a mão para o garoto. Ele aceitou-a. A seguir, pegou o rifle que deixara abandonado no chão. Com uma só mão, vestiu a alça da arma, que ficou apoiada em suas costas. Sempre sorrindo, ofereceu a outra mão para Menina.

_ Viene anche tu, bambina!

Os cães pareciam felizes com a presença das crianças. Como verdadeiros guardiões, dividiram-se em par e ladearam os três humanos. Afinal estavam a caminho de casa. Menina logo se deu conta de que sem ajuda, ela jamais teria acertado a direção de casa. É que quando eles fugiram de perto da cabana, tomaram a direção oposta ao mandiocal. Talvez porque tivessem corrido meio agachados. O que importava naquele momento é que logo chegariam à chácara.

Enquanto caminhavam, ela ficou imaginando a surpresa que as irmãs teriam. Vê-los chegar em companhia daquele que, até poucos minutos atrás, era um verdadeiro bicho-papão. Nenhum dos dois se preocupou em saber o nome do polonês. Zico conversava animado com ele e até o convidou para almoçar, quando chegassem ao casarão. O homem agradeceu dizendo “grazie”. Menina pensou que ele estivesse falando espanhol e ficou feliz.

Demorou um pouco até Menina reconhecer o caminho por onde passavam. Quando afinal viram a porteira da chácara, os pequenos tiveram o impulso de correr para chegar logo. Já próximos da casa, viram que o número de pessoas aumentara. A varanda estava cheia de gente. Serviam-se da gostosa comida preparada por Siá Doninha e suas comadres. Latide e Liviva, com as novas amigas, estavam sentadas num longo banco de madeira. Tinham o prato apoiado nas pernas. Comiam e conversavam animadamente até o momento que perceberam a aproximação do polonês, de mãos dadas com os irmãos. O susto foi tão grande que Liviva deixou cair o prato de alumínio e a comida se espalhou pelo chão. Não sabendo o que fazer, a garota correu para o interior da casa. Dali a pouco voltou, escondendo-se atrás da avó que veio saber o que acontecera. Quando a viu, o polonês fez um gesto como se fosse tirar o chapéu e inclinando o corpo para frente, cumprimentou-a:

_ “Buongiorno, signora!”

A mulher olhou-o com cordialidade e respondeu:

_ Bom dia “seu” Frederico!
Zico e Menina olharam surpresos um para o outro. Então era isto o que faltava. Era a chave do medo. Resolutos, falaram quase ao mesmo tempo:

_ Ele tem nome, vovó? O “seu” polonês tem nome?

Ninguém respondeu. Menina sentiu-se traída e com raiva. Mais uma vez os adultos a decepcionavam com a odiosa mania de ocultar coisas simples, como o nome do polonês. Eles fizeram de propósito, pensou ela. Até mesmo uma pessoa estranha como o polonês, se tivesse um nome, não causaria tanto medo. Como se não tivesse importância o que os netos haviam perguntado, Siá Doninha quis saber o que havia acontecido. Por que é que eles haviam chegado ali, trazidos pelo polonês.

Com muito esforço, Frederico, o polonês, explicou que seus cachorros pressentiram a presença de estranhos, próximos a sua casa. Temendo tratar-se de seus inimigos, ele saíra para verificar e encontrara as crianças que choravam muito. Nesse instante, Antônio chegou. Ao vê-los, sãos e salvos, abraçou-os. Depois, o alívio de vê-los salvos, deu lugar à raiva. Ameaçou-os com castigos pelo susto que dera a ele e aos homens que estavam na lida. Então Menina ficou sabendo que o tio estivera à sua procura, desde que ouviram os disparos na mata. O tio era seu herói. Nunca a deixaria em situação de perigo como a que passara. Liviva substituíra o medo inicial pela curiosidade. Queria saber como tudo ocorrera com eles. Menina fez-se de rogada e respondeu que só queria tomar banho. Maria encarregou-se dos dois. Em meia hora, estavam limpos e se alimentando. Frederico, o polonês, ficou sabendo que o motivo de toda aquela gente na chácara, era pra ajudar no plantio das cepas de mandioca. Enquanto almoçava, ele ofereceu-se para o trabalho. Assim, naquela tarde e no dia seguinte, ele ajudou no mutirão. Enquanto trabalhava, em nenhum momento lembrou-se dos alemães que apavoravam sua solitária vida. A conquista da amizade do estranho e sofrido homem foi o fato mais comentado por muito tempo, no casarão.





Os meses se passaram e a plantação de mandiocas foi crescendo. A diversão de Menina e Zico agora era outra. Adoravam subir nas árvores próximas da casa e de lá do alto, olhar a plantação. Seus olhos alcançavam do mandiocal à cerca fronteiriça com o terreno do polonês. A baleia de jequitibá nadava agora, no mar de folhas verdes, do mandiocal. Parecia realmente flutuar. Até os adultos subiam nas árvores para vê-la e encontravam muita semelhança na imagem criada pela fantasia das crianças.

Depois que o mistério de Frederico, o polonês fora desvendado, nunca mais os pequenos tinham ido até lá. Só Antônio fora. Mas não explicou o motivo da ida ao tronco. A chegada das chuvas contribuiu para o crescimento rápido do mandiocal. Cada dia ficava mais difícil ver a baleia. Algum tempo depois ela foi totalmente coberta. Os pequenos diziam que ela nadara pra longe dali. Na chácara, já se falava em marcar a farinhada.
Quando Menina ouviu o pai falar em farinhada, lembrou-se da baleia. Como estaria ela? Teve vontade de ir até lá. Saiu à procura de Zico e chamou-o para visitar a baleia. Ele, como era de se esperar, topou.
Os dois saíram de casa levando os gatos e meteram-se plantação à dentro. Logo perceberam que levar os bichanos tinha sido um erro. Era muito difícil carregar os gatos e afastarem os galhos que batiam em seus rostos. Por isso, decidiram seguir pelo caminho em volta da cerca de arame. Ali o mato era sempre capinado. Depois que se perdera na mata, Menina não se arriscava muito. Seguindo pela cerca, a caminhada ficou mais interessante.

O mandiocal era rodeado por exuberante mata virgem. Dentre às espécies que existiam ali, destacavam-se as umbaúbas gigantescas, que chamavam a atenção das crianças porque das pontas dos galhos altíssimos, pendiam diversos ninhos de xexéus. Ao vê-los, Menina exclamou radiante:

_ Veja Zico! Os ninhos gigantes! Vamos ver o que tem dentro?

Para irritá-la, o garoto disse:

_ Dentro de ninho só tem ovo!

Menina não gostou do comentário e argumentou que dentro de ninhos também tem coisas diferentes. Pois além de passarinhos, podia ter até os homenzinhos da floresta. Ao ouvir isto, Zico mais uma vez rebateu:

_ Cadê a escada pra ele subir? Você tá inventando, moço!

Ainda assim a garota não se deu por vencida. Disse que os homenzinhos da floresta eram mágicos. Eles podiam fazer qualquer coisa. Até voar. Suas orelhas eram feitas de propósito, muito grandes. Com elas, eles voavam pelo mundo. Zico acreditou na estória e quis saber:

_ Eles são anjos?

Menina vibrou. Tudo o que ela dizia, o irmão acreditava. Então continuou fantasiando:

_ Eles não são anjos. Eles são feitos de pau. – aproximando-se do tronco da umbaúba, viu uma orelha de pau, já bem desenvolvida. Aproveitou e mostrou pra ele – Olha! Ta vendo esta orelha aqui?

_ É claro que estou vendo!

_ Pois é daí que nascem os homenzinhos da floresta...

Zico olhou de novo a orelha de pau e perguntou:

_ Este que está nascendo aí, vai ser vermelho?

_ Acho que sim! Mas eles podem mudar de cor, quando ficam grandes. Tem homenzinho de toda cor.

Zico ouviu que os homenzinhos ficavam grandes e quis saber até que ponto eles cresciam.
_ Ora, crescer é só jeito de falar. Os homenzinhos da floresta já nascem do tamanho que vão ficar. Eles ficam do mesmo tamanho, toda vida.

_ Ah! Eu queria ver um homenzinho da floresta. Você já viu um?

_ Eu já! Eles são engraçados. Só que eles ficam bêbados. E quando estão bêbados, eles mordem a gente. Mordida de homenzinho da floresta é perigosa. Só sara se uma fada mandar. Se não tiver fada, o braço fica seco.

_ Mesmo assim eu queria ver um. Por que só você vê as coisas, moço? Por que eu não vejo?

_ Ora! Eu sou mais velha. Quando você tiver seis anos, como eu, você vai ver tudo. Você também vai crescer... – Menina já estava preocupada com o grau das perguntas dele e tentou mudar de assunto – Acho que o meu gato está com fome.

_ Moço! Você é quase do meu tamanho. Falta muito pra eu ficar do seu tamanho? Você acha que lá naquele ninho tem um homenzinho? Você pode fazer um aparecer?

Menina ficou sem saída. Ele perguntava muito. Por um pouco, ficou calada, depois se lembrou do estilingue que levava no bolso e falou com ele:

_ Vamos derrubar um ninho. Lá dentro pode ter um homenzinho dormindo.

_ Eu não trouxe o meu estilingue! - Lamentou-se o garoto.

_Não faz mal! Eu trouxe o meu. Vamos deixar os gatos no chão e vamos procurar pedras pra atirar.

_Eu pego as pedras pra você. - Ofereceu Zico.

Menina viu o cuidado com que ele deixou a gata no chão. Ele era muito carinhoso. Ao se verem soltos, os gatos se espreguiçaram longamente e foram sentar-se sob os pés de mandiocas. De lá ficaram olhando preguiçosamente, os pequenos. Menina começou a atirar pedras no maior dos ninhos. Com a primeira pedrada, as aves que estavam dentro voaram pra longe. Ela aproveitou para dizer que naquele ninho não tinha nenhum homenzinho. Então escolheu outro. Quando atirou a pedra nenhuma ave saiu de dentro. Zico exultou. Naquele certamente haveria um homenzinho da floresta. A pontaria certeira da garota logo surtiu o efeito esperado. Quando o ninho caiu, até os gatos chegaram pra perto para olhar. Dentro estavam três filhotes mortos de xexéu, quase secos e fedorentos. Havia alguns vermes perto deles. Provavelmente os pais abandonaram os coitadinhos e eles morreram de fome. O mau cheiro afugentou os gatos. Os dois irmãos sentiram náuseas. Zico ficou decepcionado por não ter encontrado o homenzinho da floresta. Afastou-se do ninho tapando o nariz com os dedos. Preocupado perguntou:

_ E agora, moço? O que você vai fazer com os passarinhos mortos?

Ainda com o estômago embrulhado, Menina pegou o ninho comprido e encardido como um saco de estopa. Procurou um lugar onde pudesse pendurá-lo. Terminou pendurando-o no arame farpado da cerca. Tinha esperança de que os pais das criaturinhas mortas viessem ali, visita-los. Enquanto se afastavam do ninho, ela disse para o irmão:

_ Tomara que a fada que protege os passarinhos, encontre a mãe deles e diga que eles morreram.

Depois, cada um pegou seu gato e prosseguiram tagarelando animadamente, até o final da cerca.

_ Acho que a baleia está escondida daquele lado – disse Menina, apontando o dedo.

Os pés de mandioca haviam crescido muito. Os galhos eram robustos. Os dois tiveram que abrir caminho entre os ramos. Nos braços de ambos, já se viam arranhões. Mas não foi difícil, logo encontraram o tronco tombado. Os plantadores haviam deixado uma clareira em forma de círculo, em volta do jequitibá. O terreno era um pouco arenoso. Algumas poucas ervas haviam crescido em torno dele. Ansiosos, correram para o túnel feito pelo fogo. As águas da chuva haviam lavado o tronco por fora e um pouco também por dentro, por causa dos buracos, em cima do mesmo. À primeira vista o lugar parecia limpo, mas... Alguém estava fazendo uso indevido do tronco. Zico, por ser mais baixo, conseguiu chegar perto de onde vinha o cheiro e confirmar a suspeita. O pobre tronco se transformara em privada a céu aberto. Quem poderia estar fazendo aquilo? Injuriada, Menina subiu no tronco e fez a reconstituição do “crime”. Ao final, protestou:

_ Olha só que porcaria moço! Quem será que teve coragem de fazer cocô dentro do nosso brinquedo?

_ Não sei! Mas deve ser um homem.

_ Por que você acha que é um homem?

_ Ora, é só olhar pra saber. Só tem cocô grande aí.

_ Eu não vou olhar cocô de ninguém! Mas eu queria descobrir quem estragou a nossa baleia...

_ Por quê? O que você ia fazer com a pessoa? É gente grande. A gente não dá conta de fazer nada.

_ Não sei não... Mas eu acho que até umas pedradas com o estilingue, eu dava. Eu tenho de fazer alguma coisa.

Menina falava e olhava à sua volta. Procurava inspiração. Aquele crime não podia ficar impune. Seus olhos pousaram de repente, nos galhos de um pé de peroba do campo. A árvore estava um pouco além da cerca. Na ponta de um dos galhos, quase escondida entre as folhas, havia uma casa de marimbondos. Animada, pediu que Zico subisse também no tronco. Do alto, podiam observar melhor o que se passava a volta. Zico obedeceu à irmã e passou por sobre o buraco com o nariz tampado. Os gatos, ao verem os garotos lá no alto do tronco, foram atrás deles. Menina apontou pra perobeira e falou:

_ Moço! Tá vendo os galhos daquela árvore lá do outro lado da cerca? Bem nas pontas, no meio das folhas verdes tem uma casa de marimbondos. Tá vendo?

Suspeitando de alguma diabrura da irmã, o garoto respondeu.

_ Estou. O que você quer fazer?

_ Eu vou mudar a casa de lugar.

_ Onde é que você vai colocar a casa?

_ Advinha! Eu vou por bem aqui de baixo do tronco. Assim, quem vier fazer sujeira no buraco, vai sair todo picado na bunda...

Zico gargalhou feliz e entusiasmado, comentou:

_ Sabe, moço? Eu queria ver a hora em que os marimbondos atacassem a pessoa. Quem será que vem aqui tão longe, pra fazer isso?

_ Não sei! Mas nós vamos saber depois que eu mudar os marimbondos pra cá.

_ Como é que você vai tirar aquela casa de lá da árvore?

_ Ora! Como eu tirei o ninho de xexéu. Vou atirar pedras com o estilingue até a casa cair. Depois que os marimbondos se esconderem com medo das pedras, eu vou lá, pego a casa e coloco aqui, dentro do tronco. Depois eles vão ver que eu deixei a casa deles aqui, vão mudar pra cá, também. Vamos catar as pedras logo.

Menina desceu correndo do tronco e começou a encher os bolsos da calça. Zico fez à mesma coisa. Os dois gatos estavam sentados na parte mais grossa e alta do jequitibá e olhavam curiosos, a movimentação dos pequenos. Um bando de curicas passou voando baixo e barulhentamente sobre eles. Paizinho levantou-se e, num salto espetacular, tentou agarrar uma das aves no ar. A seguir, acompanhado da gata, desceu rápido do tronco. Juntos, foram na direção do lugar onde as curicas haviam pousado. Zico e Menina assistiram, divertidos, a ação do gato. Deduziram, que só depois da caçada, os dois voltariam pra casa.

De posse das pedras, Menina subiu novamente no tronco e preparou o estilingue. Zico, como bom ajudante, ficou ao lado dela. A primeira pedrada passou perto da casa. A árvore estava mais distante do que ela pensava. Colocando outra pedra no estilingue, mirou o alvo por entre a forquilha e falou com o irmão:

_ Agora presta atenção! Este tiro vai ser certeiro. Os marimbondos vão achar que é uma bomba de guerra que está caindo na casa deles.

A pedrada atingiu em cheio, a casa. Os marimbondos fugiram às cegas. Pareciam abelhas tontas. Centenas deles voavam em torno da casa. Era como se quisessem identificar o agressor. Outro grupo verificava o tamanho do estrago na casa. Zico dava gritos exultantes pelo sucesso da irmã. Menina, entusiasmada, pegou outra pedra e disse que aquela era pra derrubar a casa. Zico dava pulinhos em cima do tronco e atirava pedras que tinha nos bolsos, em todas as direções.

Foi nessa brincadeira que, sem saber, ele acertou uma outra casa de marimbondos que estava ainda em formação, num dos pés de mandioca. Menina estava quase conseguindo o seu intento, quando percebeu um zumbido forte que vinha se aproximando. Uma nuvem de marimbondos vinha direta pra eles. Para escapar do enxame, eles pularam do tronco e puseram-se a correr. Os marimbondos vingativos e velozes voaram atrás deles. As primeiras ferroadas foram nas costas e nas pernas. Depois, o corpo todo parecia pegar fogo. Os dois gritavam e choravam. Corriam desesperados pelo mandiocal. Foram alguns minutos que pareceram horas. Os marimbondos desistiram de persegui-los. Só então Menina parou para avaliar a situação. Zico havia sido picado nos braços, pernas, pescoço e no rosto. Ela também fora picada no rosto. Seus olhos pesavam e também os lábios. Chorando muito, os dois procuraram sair do mandiocal em direção da cerca de arame. Quando a avistaram correram pra ela e tomaram o caminho de casa. Quem estava lá, de longe podia ouvir o choro dos dois se aproximando. Siá Doninha e Maria correram pra acudi-los. Ao vê-los naquele estado, a avó foi logo perguntando:

_ Que diabos vocês aprontaram dessa vez? Será que não se pode ter sossego com vocês? Olhem só!! Estão todos inchados.

A mãe dos garotos se aproximou e pôs a mão na testa de um de outro. Já estavam com febre. Foram levados pra dentro e foram socorridos. O cheiro forte de álcool com cânfora se espalhou pelo quarto. Os ungüentos preparados pela avó foram esfregados em seus corpos. Chás de gostos estranhos foram tomados e vomitados. Mesmo acometida do mal-estar provocado pelas picadas, Menina tentou explicar-se pelo ocorrido com ela e com o irmão:

_ A gente só queria mudar a casa de marimbondos pra perto da baleia...

Josefa e os outros mal podiam acreditar no que ouviam.

_ Que loucura é esta? Você tentou mudar a casa de marimbondos? Quem foi que lhe falou que se pode fazer essa bobagem?

_ Ninguém falou. Mas eu tinha que fazer isto pra proteger a baleia. Tem gente que tá fazendo cocô dentro dela. Agora não presta mais pra brincar.

_ Você pegou na casa dos marimbondos? - quis saber a mãe.

_ Não! Eu só joguei pedras com o estilingue. Mas aí outros marimbondos, que moram em outro lugar, atacaram a gente.

_ Eu espero, para o seu próprio bem, que você cresça e pare com suas atentações. Principalmente, não meta seu irmão nas suas artes.

_ Mamãe, a senhora não entende? Eu preciso descobrir quem fez aquilo na baleia. O Zico também quer, o brinquedo era nosso.

Ninguém conseguia tirar aquela idéia da cabeça da garota. Josefa temia que ela se metesse novamente numa enrascada. Por sorte, nenhum deles era alérgico a picadas de marimbondos. Os chás de ervas começaram a fazer efeito, logo eles dormiram. Menina teve um sono agitado, provavelmente provocado pelo veneno das picadas. À noitinha, quando o pai e o tio voltaram do trabalho, ficaram sabendo do ocorrido com os pequenos. Preocupados foram vê-los. Menina se debatia no sono agitado. Zico estava em melhor condição e a presença dos dois o despertou. Carinhosamente, o tio passou a mão na testa do garoto. Chamando-o pelo apelido que lhe dera, perguntou:

_ Oi, Gafanhoto! Dessa vez vocês se meteram com “gente” valente, não é? A idéia foi sua ou da Lagartinha de fogo?

O garoto tinha o olho esquerdo quase fechado pelo inchaço, o lábio inferior também. Ao falar, suas palavras saiam arrastadas, como se tivesse anestesiado:

_ O moço queria por marimbondos na baleia. Pra ninguém mais fazer cocô dentro dela. Se a gente visse quem era, o moço atirava pedras com estilingue, na bunda da pessoa...

_ O rapaz olhou divertido para o garoto e em tom confidencial revelou:

_ Sabe, Gafanhoto? Vou lhe contar um segredo: Quando eu vou ao mandiocal pra verificar se existe algum tipo de praga, eu passo naquele tronco. A primeira vez foi porque eu tive dor de barriga. Depois, eu achei que aquele era um bom lugar pra fazer o que fiz... Não pensei que o lugar fosse tão importante pra vocês. Depois do episódio com o Frederico polonês, vocês nunca mais foram lá, não é mesmo?

Zico ouviu atentamente o que o tio disse. Quando o rapaz acabou de falar ele o tranqüilizou:

_ Pode deixar, tio. Eu vou falar com o moço. Se foi o senhor, ele não vai atirar pedras de estilingue e nem vai por marimbondos pra picar sua bunda.

Antônio e Dom Mozart se entreolharam e saíram rindo do quarto.

Menina só soube da visita do tio no dia seguinte, quando Maria trouxe-lhe o desjejum. Ajeitando-se na cama, perguntou pra moça se o tio estivera no quarto. Maria respondeu no seu dialeto costumeiro.

_ Siô Antoin teve sim. Vei pra modi si adiscurpá. Ele falô qui num sabia que o toco de pau era de oceis brincá.

_ Não é um toco, Maria! É um tronco baleia, furado por dentro e nas costas. Agora eu não quero mais aquele tronco, pois, além de sujo, está cheio de marimbondos.

Menina cumpriu o que disse. Enquanto morou na chácara, não voltou a aproximar-se do que restou do velho jequitibá.
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