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Contos-->Da tentação -- 25/09/2005 - 14:16 (Janete Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Da Tentação *

Podia tocar a mão do rapaz ali ao seu lado. É certo que ninguém acharia uma contravenção um gesto descuidado de tocar a mão do outro, distraidamente numa conversa. Nossa cultura permite muitas liberdades e demonstrações de afeto sem que isso represente qualquer delito. Parecia-lhe, contudo, arriscado demais, dificuldade intransponível fingir descuido, o desinteresse se constituindo como uma visível fraude.

O risco para prazer tão efêmero valia a pena?

Um amigo disse que Epicuro prescrevia que o bem que adviesse de um ato seria o que daria a dimensão do poder ou dever fazer “x”. Não lera Epicuro, nem conseguia raciocinar com clareza sobre as prováveis conseqüências boas e más, em meio a sentimentos contraditórios. Tinha pouco tempo para pensar nesses assuntos, embora durante os dias esses assuntos muitas vezes se intrometessem nos pensamentos urgentes e de ordem mais prática, fragmentando-os, subvertendo-os.

Trazia a certeza de que cada aventura amorosa resulta cedo ou tarde em desilusão. Desilusão? Desencontro de expectativas, separação de corpos e objetos. Nova tentativa, ensaio, erro, ensaio, erro velho ou erro inédito, uma vida se construindo em meio a desacertos sucessivos e isso de equívoco pode bem ser condição para se continuar vivendo, tentando, testando, desaprendendo oito horas por dia, como apregoam irreverentes os versos de Manoel de Barros.

Perdia o sono pensando nele, ou melhor, guardava as lembranças dele para anteceder os momentos de espera quando deliberadamente retardava o sono, driblando o cansaço. O rosto dele sobrepunha-se a todas as imagens até que definitivamente se misturava ao caos e então dormia.

O que fazer, então? Não devia ser amor, nem paixão, talvez que apenas um desejo de proximidade, isso ainda sem condição de ser nomeado. Quão misterioso pode ser esse descaminho que vai se revelando o desejo de proximidade entre homem e mulher!

Homem e mulher. De novo Adão e Eva. A bem da verdade, não era essa oposição que os reunira, pondo-os em relação. Ela não se apresentava a ele na condição de fêmea: era a sua professora. O que os aproximara era a possibilidade que existe entre mestre e discípulo. O mestre traz como tesouro o conhecimento. Nisso consiste sua riqueza e poder. Isso busca o aprendiz. Obviamente que não se concebe mais tamanha assimetria. O jovem disciplinado e estudioso ensinava; a mulher aprendia. Por mais que a pedagogia tenha inovado, porém, há lugares e expectativas que se estabilizaram, papéis sociais, imaginários, uma aura que nos envolve como sujeitos sociais e históricos e define modos de ser e até amar.

Ele a chamava senhora. Depois você. Depois você e senhora. Misturava as formas de tratamento e ela acabava rindo. Um dia, atrevendo-se, declarou:

– É você quem pode decidir como me chamar. Vai, escolhe de uma vez, que isso me confunde.

Insistentemente a chamava “professora”, nunca pelo nome. Professora, o que a senhora acha? Professora, você disse há pouco que. Vamos embora que a professora se cansou de nós. Não fale assim que posso ter ciúmes da professora. Vou me sentar longe da professora só para que me chame de bonitão novamente. Bonitão, aonde pensa que vai? Ainda não acabamos o resumo, rapaz. E então a professora alertava para a forma cerimoniosa com que a tratava. A forma denunciava a distância que ele devia julgar manter-se entre os dois. É isso que me declara, rapaz. É isso o que quer?

Adão, Eva e a serpente.

A professora também raciocinava que podia deixar escapar a qualquer momento uma palavra delatora do que deveria estar encoberto. À medida que os estudos os aproximavam, fatalmente se aproximavam da extinção do segredo. As palavras dizem de viés, as negações são polifônicas, os atos falhos nos traem, o que vai na alma de um ou outro modo vem à tona, já diziam Freud e o apóstolo Paulo. Descoberto o que deveria se aquietar sob os lençóis do silêncio, as coisas tomariam incerto rumo.

Nunca tivera medo dos riscos, mas agora, depois de muitas perdas, vinha exercitando a paciência e modos de saber preservar. Mesmo sabendo que nada perdura. Mesmo depois de ter aprendido que se pode perder tudo ainda que se economizem os gestos e as palavras, que o cuidado seja verdadeiro e não se poupem os carinhos e as atenções. Mesmo quando o que se intitulava amor se lhe mostrava como forte e resistente, declarado e assumido, casa, filho, papel, teimou em se desmanchar ante algum descuido – ou por que foram muitos os descuidos. Nenhum amor persistira até ali, desacompanhada nos seus cinqüenta anos.

Não era amor, nem paixão, possivelmente algum encanto daqueles de que depois se esquece. Como o de um poema. Pra retomar o encantamento é necessário novamente buscar na estante, abrir o livro, reler os versos, aqueles que já se sabe de cor. Estranho exercício o de encantar-se.

Ia lá estender o braço, roçar-lhe a perna e atrair-lhe os olhos. Para uma idéia. Veja bem. Os olhos dele haviam de vir ter com os seus. Nesse momento, sabiamente arquitetado, caberia à professora dizer algo que deixasse a prosa em suspenso, sob a desculpa de uma urgência de cunho teórico. O tempo impreciso do diálogo interrompido, o volume das idéias chegando abruptamente, o calor, a pressão leve dos dedos sobre a perna dele.
Talvez que fosse amor, só que agora construído com a leveza com que se deve amar um rapaz. Sem culpa. Ele era leve. Estudava e brincava. Lera Max, Ferreira Gullar. Barthes. Assim falava Zaratustra.

A maçã.
* Luíza Helena da Silva Oliveira















Luiza, em 22.09.65.
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