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Contos-->EM DIAS DE CHUVA -- 24/09/2005 - 09:34 (Maria Jose Zanini Tauil) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Hipertensa, ossos frágeis, coração debilitado, Rose encosta o rosto na vidraça
e contempla a chuva lá fora. Esse cenário, desde sempre, levava-a à reflexão, a
um balanço de vida.Gosta da chuva, apesar de tudo.

Uma vida inteira juntos, dividindo alegrias e tristezas, perdas
e ganhos, derrotas e vitórias. Chegou aos setenta sentindo-se realizada pela família que constituiu, os frutos do amor, filhos encaminhados, netos lindos e sadios.
Quantas noites, chuvosas e frias , serviram de fundo musical para encontros ardentes sob o edredom!

Relembra o nascimento da primeira neta. Março, chuvas de final de verão. Quinze dias na casa da filha, entre fraldas e mamadeiras, ajudando-a até que se sentisse segura para ficar só com a empregada..

Chegou num sábado à tarde, cheia de saudades do seu mundinho. Na manhã do domingo, o marido saiu para a feira e Rose lia o jornal na cama. Logo que ele saiu,
caiu um pé d` água. Ela se preocupava com ele, olhando a chuva lá fora.

O telefone tocou. Atendeu a uma voz cavernosa, parecia de mulher idosa: "Seu marido tem uma amante, nesse momento está fazendo a feira para ela. Eles têm um filho de vinte anos. Estou ligando porque tenho pena de você"

Rose deu uma gargalhada, embora suas mãos tremessem: "Pena de mim? Tenha pena dela! Somos muito felizes!. Se ela existe, só pega os farelos que deixo cair ao chão".
A outra, sem argumentos, desligou

Rose pensou: "Na certa é alguma vizinha invejosa e mal amada que viu Roberto saindo...Coitado, tão sem tato com mulher! " As iniciativas mais ousadas no sexo eram tomadas por ela, na luta por não deixar a relação cair na rotina....
.Ele não demorou nada na feira. Como não tinha segredos, contou-lhe do trote telefônico. Riram juntos da maldade frustrada...

Passa pelo desfile de lembranças outra semana chuvosa, longínqua.
O marido viajou a serviço para a Argentina. Ela arrumou em sua mala uma caixinha com quinze bilhetinhos, todos com data por fora. Era para ele ler um por noite, no período em que estivesse longe..O dinheiro ganho nessa viagem serviria para a festa de quinze anos da filha.

Num desses dias de saudade, uma voz feminina ao telefone: "Sua idiota! Pensa que ele está viajando? Está aqui comigo, sua boba!" Indignada, Rose tentou responder: "Idiota é..." A outra desligou. Acabou rindo do trote. Tinha até o telefone do hotel onde ele estava, falavam-se todas as noites depois dele ler o bilhetinho.

Riram juntos quando ele chegou e num luxuoso motel, depois de um jejum sexual de quinze dias, ela lhe contou do trote.

Um barulho feito por seu cãozinho tira-lhe a atenção da chuva. Ele jogou ao chão um porta-retratos com a foto de sua filha aos quatro anos, brincando no jardim. Grita a empregada para retirar os cacos do chão e volta à vidraça.

Ainda lembrava daquela roupa da filha na foto, linda, cabelos alourados e olhos azuis. Lembra do dia em que ela chorava para brincar lá fora e Rose não deixava porque chovia torrencialmente. Tentou distraí-la com o jogo da memória, no chão da sala. Interrompeu a brincadeira para atender o telefone. Era uma voz de mulher: " Seu marido é meu...Temos um filho de dois anos".

Rose riu e debochou da mulher. Seu marido nunca saía só, era de casa para o trabalho, do trabalho para casa. As noites de amor eram intensas. Impossível ele se dividir em dois. Não tinha esse vigor, essa apetência sexual tão desvairada, além do mais, para fazê-lo, só se a dopasse durante a madrugada e voltasse logo depois.

Nessa altura, chove também dentro do quarto. As lágrimas escorrem pelo vidro, regam aquele rosto de cera . Três telefonemas em vinte anos. Poderiam ter modificado a sua vida, seria mais fácil recomeçar, ser amada de verdade.

Uma noite, sentado à sua frente, na cama, Roberto lhe contou tudo. Sempre teve outra. Era uma ex namorada. Na indecisão de com qual ficar, resolveu ficar com ambas.. Havia um filho na jogada, quase da idade de sua filha. Os encontros furtivos eram na hora do almoço, num hotelzinho de quinta categoria.

Mas que ataque de remorso era aquele, que o fazia contar tudo, aos prantos e sem rodeios? É que ele chegou aos sessenta e pra completar, um problema cardíaco.
A outra passou a exigir, sentia que ele lhe escapava pelos dedos, como água. Queria mais presença, passeios, fins de semana fora. A insistência virou ameaça. Se ele não fizesse o que ela queria, procuraria Rose e contaria tudo, acabando com o casamento que a ingênua mulher julgava perfeito...Desesperado, contou primeiro. Dessa vez, escolhia uma só.

Rose ouvia calada, rosto lavado em lágrimas. Uma lembrança surgiu: a festa de bodas de prata preparada pelos filhos, onde ela declarou publicamente: "Pudesse voltar ao passado, casaria contigo outra vez".

A ferida sarou, mas deixou feia cicatriz. No coração nasceu um casco de proteção, como os das tartarugas. Perdoou. Deixá-lo? Quem come a carne tem que roer o osso. Não daria esse gostinho à outra.

Passados tantos anos, corpos encurvados, uma tarde chuvosa os contempla assim: Ela, recostada à janela, ruminando lembranças. Ele, frente a tv, na sala, de boca aberta, roncando...
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