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cronicas-->Uma festa de ex-passageiros -- 23/02/2004 - 12:56 (Érica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma Festa de Ex-passageiros

Imagine uma festa em que você convide todas as pessoas que um dia se sentaram ao seu lado no avião. Se não der para lembrar de todos, é porque os esquecidos nem mereceriam ser convidados. Vamos começar por aqueles que você não esqueceu ou que, pelo menos, lembra agora. Seriam convidados para esta festa:

1. O filho de um diplomata norte-americano num país da América do Sul. O rapaz teria uns 19 anos e ia visitar o pai, que era separado ou divorciado da mãe. Ele estava muito nervoso e falava sem parar. Só deu uma pausa para comer, mas mesmo assim, comia e falava entre as engolidas e os goles de coca-cola. Não deixou você dormir, falava e suplicava respostas. Você meneava a cabeça, olhos semifechados. Ele continuava no seu monólogo febril, arrematando cada revelação com um you see, you see . Ele poderá movimentar a festa, se seguir no ritmo em que atravessou duas zonas horárias e o oceano Atlàntico, a noite inteira, sem dormir e sem parar de falar.

2. A mulher de um técnico em automóveis alemães, que acabava de visitar o marido, fazendo estágio em Detroit. Ela estava com a filhinha de sete meses. Você pegou na menina e ela fez xixi na sua saia. A mãe não tinha colocado fralda na garota. Você nunca a esqueceu. (A mãe.)

3. O empresário japonês que abria o pequeno dicionário japonês-português e vice-versa para cada coisa que queria comunicar e apontava a frase ou o termo com o dedo. O dicionário foi publicado em Portugal. Você hesitou em dizer-lhe que algumas palavras não eram usadas no Brasil. Ele poderia entrar em pànico. Perguntou, sempre virando páginas e mais páginas do glossário e apontando com o dedo, se havia chá no Brasil. Também disse, pelo mesmo método, que adorava chá. E que tinha trazido um pacotinho. E me deu um envelopinho de presente. E ainda usando o dedo e virando páginas, perguntou se você se incomodaria se ele mantivesse a luz acesa do lado dele. E dormiu quase a noite toda com a luz acesa.

4. E o poeta israelense? Quando descobriu que você trabalhava com literatura e crítica literária, ficou lendo os seus poemas em hebraico, depois em inglês, pedindo que você fizesse a versão - ainda que rápida e superficial - em português. E tomava nota das suas palavras, foneticamente. E lia, logo em seguida, sua versão em português, com nitidez, antecipando-se ao prazer de surpreender amigos brasileiros com a leitura dos seus poemas. Sofríveis. Mas o homem, mesmo você querendo, não foi esquecido. Seus poemas, sim...

5. A moça que se declarou comunista e fascista, ao mesmo tempo. E, logo em seguida, confessou ser uma pessoa que gostava de mentir. Mentia muito, ela dizia, porque era a única forma de manter-se interessante aos olhos dos outros. Se falasse a verdade, seria uma mulher comum e corriqueira. A mentira a salvava. Mentiu tudo o que disse naquela viagem? Você nunca saberá. Mas por isto mesmo, não a esquecerá. E à festa a convidará.

6. E aquela menina que o pai colocou nas suas mãos, no aeroporto. Teria uns 12 anos e estava sendo despachada para visitar a mãe. A menina fora levada por uma aeromoça, mas ainda assim o pai a recomendou para você. "Dê uma olhada nela, por favor." Por causa disto, a sentaram ao seu lado. Menina tranquila. Ficou quieta todo o tempo até que o avião começou a se sacudir, lá pela madrugada. Foi quando ela acordou e olhou para você com os olhos mais arregalados do mundo e perguntou: "Vamos cair?" Você sorriu para ela e se sorriso tivesse cor, seria do tom amarelo-limão. "Claro que não! Isto é muito normal..." - completando a sentença, você poderia ter dito: "é normal para caminhão em estrada esburacada, não em avião." Mas não disse, só lhe deu um sorriso. Ela sorriu também, um pouco mais calma. E começou a falar aos borbotões: que não via a mãe fazia muito tempo, que morava com o pai, que era bom morar em Nova York, mas estava muito sozinha lá. E que precisava conversar certas coisas que não poderia conversar com homem, só com mulher. Mas que a mãe não a queria morando com ela. A mãe era escritora, morava em São Paulo e não queria ser incomodada. O pai era médico. Ela morava em Nova York com ele, mas a cidade era a mais louca do mundo. Saía muito com o pai, mas só escutava conversa de médico. Pobre menina.

Que festa seria esta, com tanta gente diferente? Uma festa de solitários, de individualistas, de viajantes medrosos, curiosos, valentes, indiferentes. De gente que se comunica por toda uma noite e nunca mais na vida. Que conta segredos pessoais na penumbra do avião mas que na saída do aeroporto, à luz do dia, não se incomoda em ser reconhecida ou ignorada. É indiferente. O que aconteceu no avião ficou pelas nuvens. Mas se houvesse essa tal festa e eles fossem convidados..... Que festa seria essa? Seria uma festa de pouca ou muita conversa? E de quê se falaria? Das viagens? Das separações? Da comida a bordo? Em que língua? Com que música? De outros encontros nos ares?

E quem serviria os canapés, os aperitivos, as bebidas? Uma aeromoça? E ao levar seus convidados até a porta, você diria, até a vista? Ou até outra viagem? Ou Até sempre? Ou Até nunca? Ou Até a gente se esquecer de vez?

-------------(17 de abril, 2000)-----------------
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