É grande o número de auto-retratos. Fica claro: Frida Kahlo marca mais uma vez presença neste estilo e nesta forte veia expressiva que desenvolveu, que é o caráter endógeno dos seus auto-retratos. A inflexão. Seu realismo fantástico/mágico é inconsciente puro do passado de uma artista que no dia 17 de setembro de 1925 sofreu um terrível acidente de trânsito. O trágico acontecimento faz com que a artista Frida não pare mais. Retratou a lápis a cena do acidente, sem respeito por regras ou perspectivas. Passou três meses de cama e começou a pintar e desenhar como forma de evitar as dores e os aborrecimentos.
"O meu pai teve, durante muitos anos, uma caixa com tintas de óleo e pincéis dentro de uma jarra antiga e uma paleta a um canto do seu estúdio fotográfico. Ele também gostava de pintar e desenhar paisagens. Desde pequena eu não tirava os olhos daquela caixa de tintas." Frida começa a pintar a tudo e a todos à sua volta. "E assim comecei o meu primeiro quadro: o retrato de um amigo."
Depois, um dossel com um espelho é colocado para cobrir toda a parte de baixo de sua cama, de forma que ela pudesse se ver e ser o seu próprio modelo. Assim começaram os auto-retratos de Frida, que acabaram acompanharam a artista por toda sua trajetória, em cada uma de suas etapas. Felizes ou doloridas fases (pela vida conturbada que teve), elas foram plenas para o desenvolvimento de toda a sua obra. Suas particularidades sempre foram muito polêmicas, sua vida com Diego Rivera, marido e grande amor, seus amantes e seus cúmplices.
Metade européia (pelo pai alemão) e metade mexicana (por parte da mãe), seu auto-retrato de 1939 é definitivo quanto ao sentimento que tem quanto a esta mistura. Ali, ela trata emoções envolvidas na sua separação e crise matrimonial com Diego, porém revela nitidamente a Frida mexicana, com roupa tehuana, que é a mais amada, enquanto a outra, espelhada e cúmplice de mãos dadas, tem um traje mais europeu e está sangrando no puro branco do vestido rendado. Os corações das duas estão ligados apenas por uma artéria, e estão expostos: surrealistas. A parte rejeitada européia de Frida corre o perigo de se esvair em sangue até a morte. É muito forte. Mulheres não tocavam neste tema e muito menos se colocavam com este tipo de abordagem.
Seu auto-retrato de 1940 - logo na fase seguinte - revela ainda mais o atrevimento quanto à sua postura feminina, em choque com o padrão vigente da época. Auto-retrato com cabelo cortado mostra Frida vestida com um largo e sóbrio terno masculino, de tonalidade escura. Aqui, ela acabou de cortar os cabelos com a tesoura representando o desprendimento dos ícones femininos como tal, na forma (e na fôrma) de justificação do afeto. O verso de uma canção surge poeticamente pintado no que diz: "Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca, já não te amo." Ousadamente ela toca na ferida do clichê, o que deve e/ou pode ou não ser permitido para a mulher e sua individualidade.
Frida Kahlo fez mais que pintar seus auto-retratos. Frida pensou. Ela sentiu e se expressou, se colocou como pessoa e mulher em tudo o que percebia à sua volta. Permeou universos de limites sutís, face a um mundo que lhe tirou e lhe deu muitas experiências contraditórias.
Na verdade, o cabelo é o seu elemento simbólico escolhido, como veículo através do qual ela expressa seus sentimentos por Rivera, à partir de 1940. Uma trança com fios desfiados assume a nova feminilidade como atitude rejeitada no auto-retrato da fase anterior. Ao longo de sua produção, Frida realça que as mulheres em geral (e entre elas - eu ) querem sempre, mais do que tudo, tê-lo nos braços como se fosse um bebê recém-nascido. Esta relação é amplamente notada no seu trabalho O Abraço Amoroso entre o Universo, a Terra (México), Eu, o Diego e o Señor Xólotl. Para a artista, o marido era muito mais do que o filho que não chegou a nascer.
No entanto, percebemos que cerca de um terço dos quadros de Frida são auto-retratos. Especialmente por volta de 1939, pintou-se o tempo todo quase que exclusivamente, o seu interesse era sempre auto-focado. Expressa-se em todos os retratos buscando revelar o seu temperamento naquele momento da pintura. Da hora, do instinto. Frida é vital a si mesma. "Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor." De cabelos soltos ou presos, em meio ao verde e aos seus bichos, ou mesmo usando seus brincos étnicos, Frida se refletiu no espelhamento - que foi poder se olhar - para fazer sua pintura contar uma história de vida passada no México dos anos trinta e quarenta.