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Contos-->Meu tio renato Depoimento -- 07/01/2001 - 13:32 (Vânia Moreira Diniz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
http://planeta.terra.com.br/arte/vaniadiniz

Eu o conheci sempre. Desde que nasci, ele fez parte do meu dia-a-dia e tinha admiração pela sua larga inteligência, cultura e espírito. Em minha infância e adolescência meus irmãos e eu demos boas gargalhadas com o seu jeito especial de dissertar os acontecimentos mais triviais.
Quando chegava, eu ficava feliz porque sabia que o tempo que permanecesse em minha casa seria de divertimento constante. Imagino que os outros também encarassem assim a sua presença, porque todos o adorávamos e admirávamos.
Extremamente charmoso, os cabelos negros deixando entrever duas entradas generosas que mais tarde ensejariam uma pronunciada calvície, não se poderia dizer que era classicamente bonito, mas posso afirmar que encantava muito mais do que se realmente tivesse uma beleza extravagante. No entanto, eu sempre ouvi todas as pessoas se referindo ao meu tio como “muito Bonito”.
Senti minha família diversas vezes em conflito com ele querendo incutir-lhe um jeito tradicional que Tio Renato jamais poderia adquirir. E me perguntava porque faziam isso se o seu encanto era justamente ser muito diferente das demais pessoas que eu convivia.
Lembro-me também de tia Raquel, bondosa e gentil, mas completamente diferente do marido. Doente, frágil e sempre precisando de algum tratamento específico tinha como principal característica uma enorme doçura. Doçura que a acompanhou até o fim de seus dias. Dias que para ela não foram carregados de muito sol. Entretanto para ser justa tenho que declarar que a personalidade do meu tio empanava a figura da mulher e a bondade de tia Raquel suplantava completamente os sentimentos naturais dele. Eram figuras que não se combinavam, contrastantes e estranhas para viverem uma mesma vida.
Eu gostava imensamente de ambos, mas devo confessar que tio Renato me causava muito mais curiosidade e fascínio porque era realmente encantador. Por vezes as pessoas à sua volta lhe diziam que ele era louco, intrépido demais e nada convencional e sua reação natural, pelo muito que o conheci deve ter sido a de desprezar esse comentário o que, aliás, acho que o fez pela sua vida inteira.
Jamais se preocupou com o que os outros achassem em qualquer nível. Era egoísta, mas um adorável egoísta. Claro que adorável para aquelas pessoas que não pudessem ser atingidas pelo seu egocentrismo. Em todo caso era uma figura totalmente cativante.
Na época em que tenho a sua imagem mais nítida, exercia um mandato de deputado federal por São Paulo além de ser, segundo as pessoas entendidas um extraordinário advogado. Mas para mim era apenas “o charmoso e divertido Tio Renato”, embora reconhecesse o quanto era inteligente e culto.
Nunca esquecerei um fato que foi motivo de hilaridade completa na família quando pediu a interferência de meu pai para que seu filho Roberto não andasse de moto pelas ruas do Rio ou São Paulo. Achava extremamente perigoso e pela primeira vez o senti apreensivo. Pediu que meu pai conversasse com o sobrinho e o convencesse a não comprar a moto. E qual não foi a surpresa de todos quando o divisamos uma semana depois na carona de uma moto em Copacabana, com meu primo dirigindo em razoável velocidade. Quando nos viu acenou em cumprimento com uma das mãos. Nós ríamos quase incontrolavelmente enquanto meu pai, muito sério dizia com o rosto totalmente conturbado:
- Ele é maluco. Completamente maluco!
E eu procurando controlar-me em meio às gargalhadas com meu irmão que estava próximo, não concordava com aquela opinião. Achava Tio Renato fascinante demais.
Ninguém conseguia deixar de achar muita graça e mesmo encanto naquele homem demasiado peculiar e de atitudes tão dissonantes. Era especial. Realmente era.
Pelo que eu soube, minha tia e ele casaram-se porque ela começara a esperar um filho, mas jamais tinha vivido felizes. Meu pai e os outros tios muitas vezes o admoestara pela vida que instintivamente levava e não achava justo o sofrimento de tia Raquel. Acho, na verdade que ele mesmo não tinha consciência disso. Acresce que a saúde delicada da mulher o obrigava a ter uma vida restrita para a qual ele não estava realmente preparado. Poucas vezes permaneciam juntos porque minha tia se encontrava ausente semanas a fio em tratamento médico e mesmo quando lá estava pareciam duas pessoas completamente distantes. Não me lembro de jamais tê-los visto em atitudes de carinho. Para ser autêntica nem um gesto mais íntimo jamais percebi esboçado entre dois.(Pelo menos foi isso que minha memória infantil guardou)
Eu tinha uns nove anos quando minha tia morreu e a família dela, segundo contam (não poderia me lembrar) acusou-o seriamente de ter contribuído e muito para a infelicidade e conseqüentemente piora do seu estado. Revejo meu pai conversando sobre o fato com meus outros tios e minha mãe. E realmente me perguntava sem entender porque eles falariam isso. Mais tarde viria, a saber, que antes de minha tia falecer, Tio Renato apaixonara-se por outra mulher. E até os próprios parentes o recriminavam muito. Ele não se importava, como sempre.
Muito mais tarde conheci essa mulher fantástica e compreendi a razão de tanta paixão. Foi uma amiga muito carinhosa que me deu apoio em momentos difíceis da minha adolescência, pois ao contrário do que todos pensavam, era sensível, generosa, terna, e desesperadamente apaixonada por meu tio. Em conversas que tivemos depois que me tornei adulta ela se censurava pelo sofrimento da tia Raquel. Mas jamais achei que tivesse razão nesse negativo sentimento. Foi uma fatalidade. Apenas isso. É verdade que minha tia sofrera muito, mas não por culpa de Marília. Isso tudo já existia mesmo antes dela aparecer. Até nós, crianças percebíamos a distância dos dois como duas paralelas que estando lado a lado não conseguem se tocar. Sempre foi essa a minha impressão.

2ª PARTE

Marília era uma mulher encantadora e meu tio a conhecera casualmente. Não era exatamente linda de traços. Mas não precisava que fosse. Era extraordinariamente charmosa, enormemente, como todos concordavam na família. Sempre recordarei a primeira vez que a vi e como a achei intensamente sedutora, elegante, aristocrata e a beleza exagerada de traços não lhe fazia falta. A nossa simpatia nasceu mútua e profunda. Ela esperava um filho de Tio Renato e várias vezes me confessou o quanto gostaria que fosse uma mulher e se parecesse comigo. E por estranha coincidência isso realmente aconteceu. Patrícia nasceu e as pessoas ficavam impressionadas com nossa semelhança. Fiquei muito feliz.
Mas o que me deslumbrou foi a forma eletrizante como os dois se atraíram. Muitas vezes ela me contou essa história e eu gostava de ouvi-la. Ficava fascinada prestando atenção em cada palavra daquela narração exótica.
Meu tio tinha ido passar uns dois anos no oriente, para fazer um curso de especialização. Foram juntos, para que pudessem usufruir alguns pedaços da vida. Minha tia Raquel havia morrido há muito tempo, mas as pessoas constantemente os criticavam. Principalmente porque ela havia também acabado um noivado em decorrência dessa ligação. Achei interessante que só quando já haviam partido de São Paulo ela telefonou para a mãe dizendo que estava viajando para o exterior.Deixou seu trabalho na Câmara. Abandonou tudo para acompanhar tio Renato
- Foi tudo muito difícil, ela me disse um dia.
- Não compreendo porque isso. Que idade você tinha?
- Eu já tinha 26 anos, Vânia, mas tudo foi muito complicado.
- Fiquei sempre feliz de ver que meus primos lhe adoravam e não lhe deram o menor problema.
- É verdade, eu os amo como se fossem meus filhos, acredite.
- Claro que acredito. Você é uma mulher maravilhosa.
Ela sorriu com ternura, chegou muito próximo e beijou-me o rosto dizendo em seguida:
- Mas você é muito especial para mim.
- Tenho certeza disso, Marília. E fico feliz de ver como hoje toda a minha família lhe adora.
- Sei que sim. Mas você foi a primeira a me acolher no seu coração. Foi instantâneo. Não esqueço disso. Não vou esquecer nunca.
- E por que não deveria ter sido assim? Todos acabaram vendo que eu tinha razão.
Com tristeza começamos a constatar que meu tio com a natural inconseqüência de seu temperamento levava uma vida dúbia e ficamos tristes. No seu casamento anterior não havia realmente amor, mas e agora?
Marília, entretanto não era uma mulher comum. Quando começou a perceber a atitude do marido pediu que ele saísse de casa. Enfrentara muitas tempestades por sua causa, mas não queria sofrer mais. Não, por isso. Se já não lhe tinha amor era porque nada fora consistente para ele e não valia continuar. E muito nos entristeceu a aflição de minha amiga. Meu tio tentou várias vezes voltar, mas ela jamais aceitou.
Seus filhos não se conformavam com o afastamento daquela mulher que tanto os ajudara, porém Marília não cedeu e os dois se separaram. Mas jamais, em momento nenhum deixou de ser a extraordinária amiga que encontrei. A minha amizade, amor, admiração por minha tia Marília continuou a brilhar sempre. Aquela encantadora criatura foi o sol que entrou na vida de meu tio e não só na dele porque em muitas oportunidades, eu muito jovem, ela foi como uma luz de atenção e solidariedade em meu caminho. Esqueceu por vezes até a própria filha num momento que eu precisei muito de uma pessoa adulta numa fase difícil, porém passageira. E minha tia esteve a meu lado dando-me forças e conduzindo-me como um lume forte e inebriante.

CONCLUSÃO

Meu tio começou a sentir-se muito mal, mas sua agitada vida política não lhe dava tempo nem para se cuidar. Quando percebeu que piorava a cada dia e que tudo parecia evoluir, com sintomas que jamais sentira resolveu finalmente ir ao médico e constatou que tinha leucemia.
Perguntou então quanto tempo teria de vida e recebeu a resposta que nesses casos pode-se viver talvez no máximo dois anos. Ele não acreditou.
Era apesar de tudo uma pessoa tão singular e fora dos padrões normais, que respondeu ao especialista que até lá seria descoberto um remédio salvador. Pelo que sabia dele tenho certeza que realmente conservava essa convicção. As pessoas ficavam petrificadas com o temperamento esfuziante, confortante e nada prosaico daquele homem tão fascinante. A confirmação de sua excentricidade sempre surpreendia a todos.
Continuou sua vida quase normal até que iniciou uma descida íngreme e triste no caminho da piora. Estava muito mal e era ainda bastante jovem. Todos sofriam muito com isso. E a família assistia de novo impotente outro sofrimento.O que me emociona, e me deixa os olhos úmidos de lágrimas é quando relembro que no pior momento de sua vida tia Marília procurou-o, convidando-o a voltar para casa. Ela o trataria. Foi uma escalada amarga rumo ao sofrimento e jamais minha tia negou o seu apoio naquela oportunidade.
Estavam já separados há algum tempo e mesmo assim ela esqueceu tudo para cuidar daquele homem atraente e superficial. Mas que naquele momento precisava dela. Não vou descrever esse martírio lento que todos já viram em algum lugar. O que quero ressaltar de maneira particular é a figura dessa mulher excepcional.
Cuidou dele até o último momento com carinho dedicação e amor. Chorou muitas vezes ao vê-lo perdendo as forças e a atividade e lutou angustiadamente para que tivesse conforto naquele sofrimento. Não pensava nela e os inúmeros amigos que freqüentavam a casa a viram muitas vezes sofrendo, contudo firme e inabalável em sua função de confortar e incentivar.
Muitos meses depois ela me diria numa íntima conversa o quanto amara aquele homem.
- Amei-o muito, Vânia. Seu tio foi um ídolo para mim. Até hoje lembro-me dele com calor especial. Ele foi muito importante em minha vida. A pessoa mais importante. E foi uma paixão. Deixaria tudo por ele outra vez, se o tempo voltasse. Apesar dos sofrimentos que ele me causou.
Contemplei-a, certa da imensidão de sua dor.
- Sei que amou, Tia Marília. Mas também sofreu!
- Sim, você lembra da sua outra tia? Raquel?
- Muito pouco, eu era muito pequena quando ela morreu. Mesmo assim os dois nunca estavam juntos.
- Sei disso, mas sofri muito por saber que ela podia passar qualquer constrangimento por minha causa,
- Não sei, mas acho que talvez ela jamais tenha sabido.
Ela observou-me com carinho dizendo em seguida:
- É possível vencer uma paixão? Não sei. Nós, seu tio e eu não conseguimos. Mesmo contra toda a dura oposição da sua família.
- Não foi só paixão. Foi amor. Eu presenciei a sua dedicação, o desprendimento contínuo que só o amor consegue. Ficou com ele nos piores dias de sua vida brilhante. Na hora que não mais era sedutor. No momento que era a sombra do que foi.Quanto à minha família, o que importa isso, agora, minha tia? Eles viram que você era justamente o contrário do que imaginavam.
- Eu sei. E o amava, de verdade. Por vezes olhando-a, lembro-me de gestos, do olhar de seu tio e me comovo. Você me faz lembrá-lo. Por isso queria tanto que minha filha se parecesse com você.
Estava num instante de muita comoção e deixei que as lágrimas rolassem por meu rosto porque estou mais do que certa que a vida tem seus momentos de alegria esplendorosa ou de martírios intensos e devemos estar preparados para os dois. Mas será que estaremos? Temo que não. Tenho procurado me condicionar para os terríveis contrastes que a existência impõe. E creio que ainda estou muito frágil. Sei que todos precisamos nos fortalecer e me pergunto se isso acontecerá algum dia. Ou se sempre seremos tão abalados pela adversidade. Pode ser que haja acontecimentos que compensem a dor. Não sei. Ela sempre parece mais profunda que a felicidade talvez porque seja mais difícil ultrapassá-la.
Nunca deixarei de admirar essa extraordinária mulher que também simbolizou o verdadeiro ídolo. Alguém desprendida, generosa, amiga e mulher na acepção da palavra. Que foi atingida e sobreviveu. Censurada e manteve-se digna nas injustiças impostas. Que deu lição de galhardia e amor. Que perdoou quando o homem que amava mais precisava dela. Que passou por cima das mágoas sem acumular ressentimentos e que soube amar. Inquestionavelmente.
Um ídolo pelo menos para mim. Um suave e esperançosos ídolo.
Ambos foram: Cada qual a seu modo.

Vânia Moreira Diniz
maio-2000

OBS: Os fatos e a história são absolutamente reais.


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