Surdez
Passou em minha porta no ultimo dia e bateu suavemente. Quase não escuto. Mas escutei. Por isso deduzo que ainda não é tempo de procurar a cura para esse meu problema de surdez. Ainda escuto o necessário. O que não é necessário, dele não preciso.
O fato é que quando abri o pesado portão de madeira, lá estava o pedaço alcochoado, colorido, cheirando a frutas. Trezentos e sessenta e cinco pontos. Um para cada dia.
O que vou fazer com isso? Não intentei pergunta. Vou vivê-los. Foi a decisão, de pronto, antes mesmo de tocar os dedos no que ainda estava deitado em chão frio, como se à espera de quem o quisesse. Ah, fresco. É meu. Foi-me dado. Uma vida em calendário bordado.
A cada ano, cada naco é mais precioso, significando uma nova chance de vida. De aparar arestas, de cometer mais erros, de expandir o que é difuso dentro de mim mesmo.
Guardei o pedaço. Hoje vejo. Já está comido, como se desfizesse o cerzido, costureiro mal criado. Sobram pouco mais de onze trapos. E continuo tentando manter a cor do barrado.
Uma hora eu pego o ser que deixa no batente de minha porta essa colcha de delicado bordado. E quando isso acontecer, eu peço a ele que me ensine como melhor aproveitar esses pedaços que me sobram, amargando de inconsistências e tristezas o que não pude, por ineficiência ou fraqueza, usar como devia. E lho devolvo o que não presta.
Quem sabe, talvez, ele não consiga reconstruir uma outra colcha para o inverno dos anos que estão por vir, quando o que me sobrar for apenas esses pedaços, sem nenhum outro que me dê tempo de curar essa surdez. Essa que, a cada abrir de porta, se torna mais pesada alastrando-se no árduo em que me transformo.
L.Lima
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