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Contos-->Bifurcações -- 07/08/2005 - 12:25 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Orlando ainda sentia prazer com o cheiro de cloro ao redor da piscina, especialmente no clube, onde parece que a quantidade de cloro é maior, ou a manutenção à piscina mais frequente, deixando aquele odor permanente. E assim era desde muito tempo atrás, algumas décadas. Os anos passavam e o cheiro de cloro sempre estava lá, cada vez acompanhado de alguma outra sensação característica. Antigamente era o cheiro de refogado que vinha do restaurante contíguo ao vestiário, depois veio o bafo quente que saía da própria água aquecida nos dias mais frios do ano, e vez por outra tinha também aquela sensação de visão embaçada pelo excesso de cloro ou outro elemento jogado na piscina pelo pessoal da manutenção.
Aprendera a nadar naquela piscina, com seu pai, cinquenta e poucos anos antes, ensinara filhos e netos a nadarem, e também fazia ali seu esporte, há tempo demais para se recordar com precisão. Lá ele brigara, de tapa, com Beto Vila, que viria a ser seu inquilino décadas depois (aliás, nunca falaram a respeito), namorara na água morna de final de tarde, jogara poucos anos de pólo aquático, saltara do trampolim mais alto – uma única vez, mas lembrava-se daquilo a ponto de ranger os dentes até hoje – vencera algumas competições e desenvolvera os ombros vigorosos dos quais secretamente se orgulhava, sempre na mesma piscina.

Mergulhou de ponta e seguiu para seu exercício, que durava nunca mais de quarenta minutos, nunca menos de vinte. As lentas braçadas denunciavam a experiência e a idade avançada do homem, que nadava com a companhia de mais duas pessoas, em raias distintas, num final de tarde belíssimo, de céu azul e temperatura elevada. Ia levado por suas braçadas até a borda de cada lado, levantava a cabeça, mirava a borda oposta e retomava o exercício, vezes sem fim. Era sempre o mesmo roteiro dentro d’água. Além do exercício, a natação lhe proporcionava momentos de divagação, de pensamento livre e calmo. Havia dias em que tudo o que ele queria era cair n’água e botar as idéias em ordem. Muitas decisões importantes foram tomadas ali, na piscina do clube.

Mais da metade do treino já havia passado quando, ao bater na borda, Orlando notou um companheiro de raia. Antes de olhar para a outra borda e retomar o percurso ele olhou para o rosto sob toca e óculos de natação e balbuciou o que facilmente seria entendido como cumprimento. Duas braçadas depois seu cérebro apresentou-lhe uma espécie de pendência, propondo-lhe revirar a memoria e identificar a pessoa que nadava ao seu lado. A impressão causada pelos olhos claros e com longos cílios sob os óculos parecia ser o ponto de apoio da memória. Tentou lembrar-se de quem poderia ser, mas seus colegas de natação já não nadavam mais, e a mocidade que freqüentava aquela piscina não constava em sua memória, embora fosse sabidamente um velhinho popular e quase folclórico por ali.

A pendência virou incômodo e passou a atrapalhar seu exercício, fazendo-o programar parar na próxima borda e aguardar o nadador para identificá-lo. E assim fez, parou na borda e procurou o colega. De pronto notou que tratava-se de uma colega, com maiô azul e ritmo parecido com o seu. Poucos segundos depois a mulher chegou e, para surpresa de Orlando, virou por baixo d’água e seguiu nadando rumo à borda oposta. A desenvoltura impressionou Orlando que decidiu-se a alcançar a fulana, custasse o que custasse. Respirou fundo, encheu o peito como fazia nos tempos de competição de apnéia, e lançou-se determinado a ultrapassar a mulher. Seu orgulho misturava-se com o medo de um infarto ou algo aterradoramente parecido, mas o fato é que nadou como há muito não fazia. Ultrapassou a nadadora pouco depois do meio da piscina e manteve o ritmo alucinado até o final, retirando o óculos para aguardar a chegada da outra.
Arfava, babava e piscava os olhos, mas sentia que viveria mesmo após aquilo. Chegou a irritar-se com a lentidão da mulher, que acabou chegando e não repetindo a virada malabarística da outra volta.

- Que sprint hein, amigo?!
Orlando apenas arfou e, sem olhar, ascentiu com a cabeça.
- Lando? Lando, é você?
- Betina? Não acredito!
- Nossa, você está em forma. Parecia um menino nadando.
- E agora pareço um asmático, respirando desse jeito.
- Ah, não lembrava de você ser asmático?
- Não, não, eu sou mesmo é velho demais para nadar assim.
- Quanto tempo!
- Algumas décadas, não?
- Puxa vida! Que coincidência!
- Ainda mais aqui. Achei que você nem fosse mais sócia.
- Pois é, voltei a ser sócia esse mês. Fazia bem uns quarenta anos que não freqüentava esse clube.
- Puxa, desde que nós ..., bem, desde que ...
- Desde que éramos namorados.
- É, desde então.
- Já acabou?
- A natação? Ou o “momento de nostalgia”?
- A natação, claro.
- Já estava no finzinho. E você?
- Acabei de começar. Mas, poderíamos tomar um café, não?
- Agora?
- É.
- E o seu exercício?
- A piscina vai ficar aqui.
- Tá bom, claro. Nos vemos na lanchonete em quinze minutos?
- Meia-hora. Pode ser? Nós mulheres tomamos um pouco mais de tempo.
- Claro, claro! Que falta de sensibilidade a minha.

Saíram da água um atrás do outro, pela mesma escada, e rumaram quase lado a lado para a entrada dos vestiários mas, curiosamente, não se falaram, sequer se olharam durante todo o trajeto. Orlando ensaiou um até logo, mas saiu baixo demais e não foi percebido por Betina.

Em pouco menos do que os quinze minutos combinados Orlando apareceu vestiário afora e dirigiu-se ao ponto de encontro. Escolheu qualquer mesa disponível e pediu um suco. O tempo que se passou até Betina surgir à visão dele pareceu uma pequena eternidade, mas foi só vê-la para sentir uma dormência, há muito adormecida, entre as suas sensações.
- Que coisa! Lando, desde que o Rio ainda era a capital!
- Como?
- Antes de Brasília! Muito tempo!
- Ah, é, é mesmo! Muito tempo, não!?
- Você nada com frequência?
- Sempre, todo santo dia. Menos domingo, que é o meu dia de descanso.
- Admiro isso, não consigo me disciplinar para manter uma rotina esportiva. Nunca consegui. Já tentei natação, jazz, aeróbica, tênis, arco-e-flecha, dança de salão, até bridge eu já tentei jogar com frequência.
- Arco-e-flecha?
- É, uns vinte anos atrás. Meu marido praticava, e eu entrei na onda, mas não durou nem dois anos.
- Dois anos de treino? Uma Hobin Hood de saias!
- Não, o casamento não durou dois anos. O esporte durou bem menos.
- Ah.
- Era o meu segundo marido. Ele era federado no esporte.
- Hum! Interessante. E agora voltou a nadar?
- Engraçado, não? Voltei a entrar numa piscina olímpica noutro dia. Não entrava em uma desde nossos tempos de pós-adolescência. A gente nadava à beça naquela época, não era mesmo?
- Tempos saudáveis!
- Vai comer alguma coisa? Estou com fome. Nem me exercitei mas estou faminta.
- Eu vou jantar jajá. Vou ficar só no suco. Fique à vontade, peça o que quiser, eu lhe acompanho.
- Então vou comer um sanduíche. Garçon! Garçon! Por favor, um queijo-quente e um suco, igual ao dele. Sem açúcar, por favor.
- Pra mim, outro suco, por favor.
- Lando, você trabalha aqui por perto? Seu consultório fica no bairro?
- Consultório? Eu sou arquiteto! Meu escritório fica perto, sim, bem ao lado da praça 2 de Julho.
- Arquiteto? Largou a medicina? Não acredito! O que deu em você?
- É verdade, você não acompanhou meu drama. Abandonei a faculdade de medicina e me tornei arquiteto. Foi um período turbulento na minha vida. Parece que foi ontem. Eu não conseguia me identificar com a medicina, sofria com a perspectiva de ficar lá quase uma década. Não fiz amigos, passei a ter ânsia de vómito nas aulas e fui abandonando o curso aos poucos. Daí para transformar meus desenhos em profissão foi um pulo.
- É mesmo, você desenhava. Tem razão, jeito você levava.
- Mas fiquei bem uns dois anos em dúvida sobre se tinha feito a escolha certa. Até que um dia decidi que iria ser arquiteto. E não me arrependo, nem um pouco.
- Que coisa! Você projeta prédios, casas?
- Também, mas acabei me especializando em urbanismo. Você conhece o Museu da Cultura Italiana, no centro?
- Já estive num casamento lá, faz uns anos. Você projetou?
- Ahã! Tudo, inclusive o pátio iluminado.
- Aquele pátio .... que fantástico! Nossa, você é dos bons! A-do-rei o Museu.
- Fico feliz que você tenha gostado. Considero o Museu a minha obra-prima. Dediquei seis anos da minha vida àquele projeto, e acho que foi o único que ficou como eu queria.
- Ficou bom mesmo. E o que mais você projetou de famoso?
- Nada, de famoso mais nada. No mais fui, ou ainda sou, um arquiteto
- Modesto! Aliás você sempre foi mais modesto do que deveria, lembro muito bem.
- Mas fale um pouco de você, desses últimos quarenta anos.
- Ihh, é tanta coisa que não sei nem por onde começar. Por onde você acha que devo?
- Você tem quantos filhos?
- Nenhum! Triste, né? Não fui abençoada com essa capacidade, de procriar. Mas sou mãe de um monte de crianças, desde sobrinhos mil até um monte de órfãos do “Lar Bem Amar”, que ajudo a manter desde 86. São meus filhos, todos eles um pouquinho.
- Puxa, comecei mal.
- Que é isso! Que bobagem! Se esse papo acontecesse vinte anos atrás, provavelmente me deprimiria, mas agora... . Sou muito bem-resolvida com relação a isso. Também, na nossa idade filhos já não mais filhos, não é mesmo? Eles já são pais, já têm suas próprias famílias e passamos a ser meras referências carinhosas e eventuais.
- É... .
- Falei bobagem?
- Não, em absoluto. Embora eu me sinta de certa forma uma exceção a essa regra. Meus filhos são muito apegados a mim.
- Que bom! Quantos filhos você tem?
- Quatro, dois meninos e duas meninas.
- Puxa, que coragem!
- Hoje em dia seria corajoso, mas na época era quase que o normal.
- Como chamam?
- Isabel, Marcos Daniel, Otavio e Bruna.
- Bruna? Era o meu nome predileto para uma filha. Tive uma enteada com esse nome, filha de meu quarto marido.
- Quarto marido? Quantas vezes você se casou?
- Seis, contando meu atual, que não é bem um marido formal, mas moramos juntos há três anos.
- Ah!
- Impressiona?
- Não, não, quer dizer, um pouco.
- Bastante, né?
- Bastante!
- Você é casado com sua primeira esposa?
- Sou, há trinta e oito anos?
- Nossa, quase desde que terminamos!
- Na verdade, comecei a namorar a Ângela no meu aniversário, semanas após nosso término.
- Puxa vida, como são as coisas. Talvez eu seja a maior responsável pelo seu casamento de quase quarenta anos!
- Sim, talvez seja. Acho que é, efetivamente é!
- Puxa ... .
- E você, o que faz da vida?
- Carreira, profissão? Diria que sou “do lar”, mas acho isso um tanto vulgar. Nunca trabalhei para fazer dinheiro, para ganhar a vida. Meu primeiro marido era um embaixador, e acabei morando fora do país por algum tempo, até conhecer meu segundo, que era um sujeito muito rico, herdeiro de minas de prata no México, o tal do arco-e-flexa, e depois dele nunca mais precisei de dinheiro. Talvez eu pudesse me considerar uma “socialite”, se isso não fosse constrangedor para mim.
- Então você freqüentou o “jet set” internacional?
- Freqüentei, conheci lugares e pessoas que nem no mais longínquo sonho eu imaginaria que iria conhecer. Estive em castelos, almocei com Rajás, perdi fortunas em mesas de jogo e fui amiga de gente de cinema. Lando, vivi bons tempos de conto de fadas.
- Nossa, que história! E quando você voltou a morar no Brasil?
- Meu terceiro marido eu conheci em Paris, mas era brasileiro, um industrial de Porto Alegre. Casei com ele nos Estados Unidos, em Las Vegas, no melhor estilo americano, mas moramos um tempo em porto Alegre e os últimos anos no Rio de Janeiro, até a morte dele.
- Você é viúva, então?
- Duas vezes, meu quinto marido também morreu, nos meus braços num acidente de automóvel. Triste, mas passou.
- Puxa Betina! Sua vida daria um livro, a minha daria não mais que duas páginas.
- Corri bastante. Depois da morte do Aldo, voltei para São Paulo, onde conheci meu quarto marido, com quem tive um relacionamento-relâmpago, o casamento com ele durou meses, até eu conhecer o Yves, um belga de família brasileira com quem me casei e de quem enviuvei naquele acidente no litoral de Pernambuco, sete anos atrás.
- E aí conheceu o atual marido?
- Ele é mais recente. Na verdade ele não é um “marido-casado”, como lhe disse, mas após a crise de depressão que me tirou do mundo durante três anos, eu o conheci e estamos juntos desde então.
- Você ficou deprimida?
- Tive depressão das mais agudas. Foi um baque muito grande a perda do Yves, me perdi em meio aos remédios e acabei me exilando do mundo, vivendo reclusa.
- Remédio é fogo, às vezes faz mais mal que bem!
- Eu que o diga. Fui viciada em bolinhas durante alguns anos ao longo dessa minha vida. Cheguei a ser dependente de drogas mais pesadas e ilegais, mas não quero falar disso num dia tão feliz.
- Tem razão! Nos reencontramos depois de quase uma vida inteira, e isso merece ao menos alegria e sorrisos.
- E sua família, sua vida, como andou nesses quarenta anos?
- Bem, na verdade nunca me peguei analisando minha história, mas posso vê-la como algo simples. Casei com a Ângela quando mudei de faculdade, uma loucura à época, mas fiquei só nessa loucura. Tivemos os filhos quando eu já trabalhava como arquiteto, viajamos poucas vezes ao exterior, criamos os quatro com simplicidade, sem luxos mas com conforto, formamos todos eles na faculdade do que muito me orgulho. A Ângela é psiquiatra e tem consultório ao lado de meu escritório. Os quatro são casados e já tenho seis netos, dois meninos e quatro meninas. Toda terça-feira todos jantam em casa conosco e viajamos quase sempre para a nossa casa na praia, onde construí edículas para cada um dos casais e filhos. Minha carreira andou lentamente, mas sempre de forma razoavelmente planejada, a da Ângela também. Acho que isso resume esses quarenta anos, que se forma sem grandes emoções, mas com grandes satisfações. Acho que fui mais feliz do que merecia.
- Interessante você dizer isso! Nunca pensei se merecia minha felicidade ou minha tristeza.
- Meu filho mais velho diria que tive uma vida quadrada, no que tenho que concordar, mas não queria que tivesse sido de outra forma.
- Comigo foi um pouco diferente, mas foi do jeito que foi e não vou avaliar isso agora, depois de tudo.
- Onde você mora? Perto?
- Não muito. Na verdade nos último anos meus recursos secaram, achei que viveria menos e me programei mal, então hoje, por medida de economia e precaução moro na casa do Toni, no Morumbi. Um lugar ótimo, calmo, eu mesma decorei tudo, com muitas cores, bem aconchegante!
- E o Toni o que faz?
- Ele é professor de tae-kwon-do – tem uma escola perto de casa. Ele é bem mais novo que eu, mas um amor, muito bom de cabeça, e de papo, uma prosa ótima!
- Ai, ai,..., que vida interessante essa a nossa! Quarenta anos atrás estávamos aqui, na velha cafeteria do clube, pensando em casar e morar em Brasília. Soa até engraçado, né?
- As coisas mudam, não? Você já parou para pensar em como teria sido?
- O que, morar em Brasília?
- Não isso, não propriamente isso. Como seria se a gente tivesse casado. O que teria acontecido de diferente, o que teríamos tido a mais e a menos do que tivemos. Já pensou?
- Acho que já, não sei precisar se elaborei isso pela perspectiva mais correta, mas já pensei sim.
- E aí?
- Não sei se vale levantar essa discussão, me soa um tanto covarde avaliar fatos versus suposições. Já vivemos, né?! É melhor achar que seria pior.
- Tem razão.
- É, pois é!
- Mas você acha que teria sido pior?
- Não acho nem desacho! Preciso ir embora, hoje é terça-feira e ...
- Jantar em família, não é?
- Isso mesmo, e hoje quem vai cozinhar sou eu – Linguado com risoto de açafrão.
- Você cozinhando?
- Não sou lá um mestre-cuca, mas garanto alguns elogios dos familiares.
- Como as coisas mudam!
- Bom, nos vemos aqui pelo clube, não?
- Com certeza, na nossa boa e velha piscina.
- Nossa boa e velha piscina.
- Então, ..., nos vemos.
- Tchau! Foi um prazer revê-la após tanto tempo!
- Foi meu. Tchau Lando!
- Tchau!
- Lando, Lando!
- Oi, pois não!
- Uma coisinha, só. Você sente saudades daqueles tempos?
- Ah, ..., daqueles tempos eu sinto saudades até do gosto da água!
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