Usina de Letras
Usina de Letras
144 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62266 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10379)

Erótico (13571)

Frases (50656)

Humor (20039)

Infantil (5450)

Infanto Juvenil (4776)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6203)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O Professor de Minhocas -- 05/01/2001 - 14:31 (Newton Sales) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Todos que me conhecem sabem perfeitamente do fino trato que dispenso aos prazeres da vida; acham-me um bonachão irremediável, pouco voltado para as coisas sérias. Mesmo aborrecido com o julgamento, respeito as opiniões, e louvo ao mesmo tempo a facilidade com que essas pessoas penetram nas particularidades da vida alheia, a ponto de perceberem acontecimentos domésticos.

O que lhes vou contar é uma estória adequada para esse tipo de pessoas que vivem constantemente preocupadas em consertar o mundo, mas que só fazem tumultuá-lo. Se alguém por acaso preocupar-se um pouco com as narrações, proceda um exame no todo; alcançará com isso a flexibilidade necessária para esquecer o contista ávido de leitores, e analisar apenas o seu trabalho. Se assim fizer, tenho certeza de que o escritor desaparecerá de sua mente, ficando apenas o homem. Portanto, passo das considerações diretamente à estória.

Ela começa com um verão rigoroso, e com uma quantidade maior de mendigos perambulando pelas ruas da cidade.

Eu sou um bonachão, e como tal sobra-me tempo para observar tudo isso. Para os bons e honestos eu nada sou na vida; não trabalho, não faço parte de nenhuma instituição de caridade, levando meu tempo a analisar pessoas e coisas. No entanto, era-me fácil vê-las todos os dias; bastava dar uma volta pela cidade, e lá estava eu com os mendigos e demais problemas que me preocupam. Justamente numa dessas voltas, e nesse mesmo verão, aconteceu-me um fato interessante, aborrecido para mim, certamente alegre aos leitores, pois ele vai dar condições para que se tenha conhecimento de algo verdadeiramente incrível.

Cansado de andar sem destino, resolvi sentar-me à mesa de um bar a fim de tomar algo gelado. Ao observar o aspecto geral do ambiente onde havia entrado, dois homens que bebericavam no balcão fizeram-me pensar: “hoje não é o meu dia!”

Mas as atitudes e ocupações dos outros não me interessam, e por isso eu as deixo a critério de cada um. O que temia acontecesse, e antes de mais nada lhes digo, aconteceu, era que algum daqueles homens resolvesse sentar ao meu lado. Não foi nenhum dos que eu divisara logo ao entrar. O sujeito que sentara ao meu lado, aparecera não sei de onde, e era bastante apresentável. Uma coisa traía, porém, a jovialidade de seu rosto: trazia à cabeça um chapéu de coco. Outro aspecto bastante desagradável observado naquele homem era sua barriga que o afastava consideravelmente da mesa.

Olhou-me duas ou três vezes demoradamente, mostrou-me uma dentadura amarela e perguntou:

- Desculpe a intromissão, mas o senhor se chama Tarcísio?

Rapidamente, sem lhe dar mais tempo, respondi:

- Engana-se cavalheiro, o meu nome é Rubens.

- Como não, continuou o homem, tenho certeza de que o rosto é o mesmo, os cabelos caídos de lado... Santo Deus, estarei vendo coisas?

Para tranquilizá-lo, disse sorrindo:

- Nada disso, amigo, o senhor apenas se equivocou. Há pessoas que se parecem muito. Mas foi um prazer conhecê-lo!

Estendi-lhe a mão que permaneceu no ar por alguns segundos. Eu não havia notado a falta de seu braço direito. Meio confuso, quis esconder a surpresa, oferecendo-lhe um refresco.

Toma? É feito de essência, mas serve para passar o calor...

Ele fez uma cara de quem tinha bebido um quilo de chumbo derretido, respondendo:

- Obrigado, e eu não posso tomar nada gelado...

Sempre achei que a piedade era um sentimento nulo dentro de mim. Enganara-me, e a certeza disso veio logo após a sua resposta. Permaneci sentado, na esperança de fazer algo por aquele homem.

Pôs a mão esquerda em cima da mesa, batendo devagar com os dedos menos o mínimo que não se movia. Pensei como sair dali sem feri-lo, mas seu aspecto era de quem queria formular muitas perguntas e estava proibido por alguma coisa. Resolvi pô-lo mais à vontade, dirigindo-lhe a palavra:

- Esse Tarcísio é seu amigo, certamente...

- Mais ou menos, respondeu. Deve-me entretanto dois mil cruzeiros, e até agora não me procurou para pagar.

- O senhor quer dizer dois mil cruzeiros?

- É sim, meu amigo, dois mil cruzeiros.

Estava bastante surpreso com a ingenuidade daquele homem, e mais que depressa procurei saber detalhes acerca do tal Tarcísio.

- Permita-me a indiscrição, mas procura seu amigo desde quando?

- Ah! - exclamou meu companheiro de mesa - Isso foi há dez anos. O senhor sabe, empresta que amanhã eu pago... e até hoje.

Senti vontade de rir, porém transformei-a numa afirmação:

- Ora, ora, hoje em dia nada mais vale o seu dinheiro. Acabaram-se os cruzeiros... Mesmo porque tenho a impressão de que ele nem sabe que o senhor ainda existe.

O homem assumiu outra vez aquele aspecto triste, acentuado agora por dois olhos que me fitavam vivamente. Falando compassadamente, respondeu:

- Mas eu sei que ainda existo, e que ele me deve; não é o suficiente? Guardo suas feições tão nitidamente que seria fácil identificá-lo se o visse. O senhor me parece demais com ele, espero que não seja parente...

- Não - respondi laconicamente.

- Pois é - continuou o homem -, nada se pode fazer com elementos desatinados. Esse de que estou falando deixou-me bastante triste; porém, conheci um outro pior ainda.

Ao ouvir aquelas palavras últimas de meu companheiro de mesa, comecei a suar com a certeza de que perdera o resto da tarde. Pressenti a narração seguinte, e a quantidade de refrescos que deveria tomar dali em frente. Continuou olhando para mim. De repente, contorceu o rosto um pouco para o lado direito, respirou metade do ar que existia no ambiente, e voltou a falar:

- Ah, meu amigo!... Abril de 1956... Arrepio-me todo quando olho o calendário. O problema daquele homem deixou muita gente matutando. O senhor gostaria de ouvir sua estória?

O erro foi eu não me ter retirado de imediato. A sobriedade de meu rosto imitava a das mais austeras, e o timbre da voz, mesclei-o entre o másculo e o ator. Não que o ator negue o homem, mas a sua profissão lhe permite fugir um pouco à gravidade do som produzido pelas palavras. Assumi essas atitudes, com a intenção de mostrar que não desejava ouvir mentiras; só depois pude saber que ele não as entendeu.

- Vamos lá, determinei; fale, mas não se perca em minúcias.

- Serei breve, respondeu-me. Agora, diga-me uma coisa: como é mesmo o seu sobrenome:

- Ataliba; meu nome completo é Rubens Ataliba Ramos.

- Ah, sim! - disse surpreso meu interlocutor - O dele era Medeiros...

- Dele quem ? - Perguntei.

- Nada... Vamos à estória. - E começou a contar-me:

Era um professor vizinho meu. Um sujeito sardento e estranho. Via-se seu rosto poucas vezes, vivia trancado como um presidiário e nunca cumprimentava ninguém. Seus dois filhos apareciam no terraço da casa, demoravam-se lá uns quinze minutos olhando a rua, e depois voltavam para dentro. A casa dele metia medo! Eu nunca entrei nela, mas pelo que pude observar, deveria ser cheia de teia de aranhas e laboratórios. Só uma coisa dava sinal de que ali havia vida normal: era a voz de uma mulher. E que mulher, meu amigo!

- Um momento - disse-lhe eu. Deixe a mulher do professor de lado e fale dele. Quê de estranho afinal havia em sua vida?

- De estranho? De incrível, digo-lhe eu.

Morava há quase um ano tão perto de mim e eu nunca o vi sorrir. Mas o importante é que depois de algum tempo comecei a sentir no ar um cheiro diferente, parecido com o de uma solução qualquer. Interessei-me pelo fato, e passei a observar por trás de casa os movimentos do professor. Perdi muito tempo esperando descobrir alguma faceta daquela criatura. Um dia, quando já estava prestes a desistir, ouvi sua voz do outro lado:

- E porque não; um instante e faço-a já entrar em casa. Não mais acontecerá como dantes - cada uma em seus devidos lugares.

Aproximei-me o que pude a fim de ouvir melhor, entretanto nada mais percebi. Meio intrigado, deliberei descobrir tudo o que se passasse dali em diante, mesmo que arranjasse encrencas.

“Amanhã subirei ao muro”, pensei eu.

Imaginem os leitores o tipo de homem com quem conversava. Ouvira anteriormente várias estórias absurdas, mas esta eu creio jamais foi contada ou acreditada. Começava a interessar-me e entre um cigarro e um gole de refresco, comentei:

- Continue, seu relato me atiça a curiosidade.

- Pois bem - assentou o homem.

Após aquela tarde de domingo era mais ou menos três horas da tarde da sexta-feira seguinte, quando subi novamente ao muro que separava nossos quintais. Foi neste momento que pensei consultar um médico; ou estava ficando louco, ou o professor já o era de há muito. Sentado num pequeno banco de madeira, tinha a seu redor vários recipientes de vidro em diversos tamanhos e todos eles estavam colocados em posições diferentes. Agora imagine o que havia dentro deles: Minhocas!... As maiores eram colocadas nos vidros mais largos e assim sucessivamente. O mais interessante era que o professor mudava suas posições, falando baixinho:

- Ontem mudei de idéia - vocês passarão para cá. De outra vez mando-as para um espaço maior ou menor; sabem que não admito insolências.

E continuou falando como se obtivesse resposta. O fato é que falava sozinho, dando porém a impressão de um movimentado diálogo... E continuava:

- Compreendam que também não quero intrusos naquele local; breve mandarei cada uma de vocês separadamente para lá. Mas isso tem de ser feito devagar, e somente vocês terão esse direito. As que havia afixadas ao chão, foram-se por ordem minha, a fim de que pudesse distribuir este quintal de forma mais criteriosa. Não aceito ninguém de outros locais, nem permito separações - é uma questão de organização.

Tinha a impressão de que o espaço ao qual o professor se referia era uma pequena área limpa que existia no centro do quintal, limitada por alguns riscos feitos no chão; aliás, havia várias dessas delimitações feitas desse modo. Chamava as minhocas por nomes que eu não conseguia entender. Depois de algum tempo, prosseguiu:

- Bem, estamos certos; a modificação que implantei aqui tem por objetivo distribuir este terreno de maneira que cada uma possa sobreviver honestamente. Estudei-as demoradamente, chegando à seguinte conclusão: ou vocês se unem, respeitam-se e procuram uma solução comum para os seus problemas, ou sucumbirão totalmente. Não permito réplicas! Se você que aí está tinha uma boa parte de terra em seu poder e a perdeu é porque não possuia capacidade para aproveitá-la; que os seus filhos não lhe copiem o exemplo. Agora vou repetir como foi feita a distribuição, e depois voltarei no intuito de verificá-las e se continuam em seus lugares devidos.

Saiu colocando minhocas por todos os cantos. Depois de pouco tempo restavam apenas três que continuavam ainda dentro do vidro; colocou-os perto de si, levantou-se de momento e se dirigiu ao canto do muro onde havia numa panela um líquido borbulhante. O cheiro que exalava dali era o mesmo que eu sentia constantemente. Esfregou as mãos avidamente, e imediatamente dirigiu-se às minhocas de modo insolente:

- Lamento, mas esta experiência pode custar-lhes a vida. Tentarei lapidar-lhes o juízo. Com esta solução espero estar contribuindo para que voltem a praticar seus atos de uma maneira mais correta. Você que morava naquele lugar seco não deveria tentar inundá-lo, sacrificando a vida de suas semelhantes; quisera impingir-lhe todo o mal que praticou! Quem lhe deu o direito de assimilar idéias particulares e tentar destruir este quintal, tão generoso para todas? Se havia em sua mente a semente do bem comum, por que não consultou as demais? Vê, foi preciso que eu fizesse uma reforma para que tudo voltasse ao normal. Depois aliou-se a estas outras duas para que os planos obtivessem maior e melhor resultado, não pensando que havia outras, fadadas a sofrer com suas atitudes. Ademais, não há nisso consistência; querer inundar todo um quintal por questão própria. Não compreendem que a água sobra aqui, que vocês devem explorá-la e não deixar que as sufoquem? Não posso perdoar desta vez; aquele preparado foi estudado minuciosamente. Não há possibilidade de erro.

- Dizendo isso, retirou as minhocas dos vidros e as jogou dentro da panela... Voltou-se, juntou os recipientes vazios e meteu-se dentro de casa.

O meu fantástico amigo falava como se estivesse impondo as palavras, tal era a sua convicção. Não o interrompi um segundo sequer. Acredito nesses tipos; imaginam, criam em suas mentes um emaranhado de coisas irreais que de qualquer forma nos deixam uma dúvida no espírito. Que o professor fosse estranho, eu concebia naturalmente. Não entendia o fato de que ele tentasse que simples minhocas compreendessem suas palavras. Poderia ser um neurótico, ou um estudioso profundo. O importante para os leitores é que ele existia na mente de meu amigo como uma realidade das mais puras.

Durante toda sua narrativa, afirmava que se prendia apenas aos fatos. Depois de uma pequena pausa, fitei-o bem nos olhos e perguntei:

- O professor não o viu enquanto o amigo permanecia trepado no muro?

- Não - respondeu-me. Os seus olhos não se despregavam do chão. Quem o visse naquele momento diria estar hipnotizado. Mas voltemos aos acontecimentos:

Como lhe disse, entrou em casa e não mais voltou. No outro dia esperei-o; não veio, nem no outro. Pude vê-lo no dia seguinte, porém não foi ao quintal. Vestido em um terno de tropical bem assentado, fazia-se acompanhar da família quando saiu de casa. Estava eu, postado à janela, na ilusão de receber um cumprimento; mera ilusão... O professor caminhava com a cabeça erguida, ajeitando o laço da gravata constantemente. Ninguém supunha fosse ali um homem que descia de sua dignidade de professor para meter-se com minhocas. O resto do dia, passei-o todo entre livros e cigarros; às vezes, imaginava-me conversando com meu vizinho, descobrindo aos poucos o mistério que o envolvia. Penetrava em sua mente devagar, mas nada encontrava, a não ser minhocas... Outra coisa se não me afigurava para que eu pudesse chegar a uma conclusão lógica. Estava me preocupando demais com aquele assunto; tive um pensamento que logo se desvaneceu: “se eu descesse em seu quintal bem na hora de suas conversas absurdas com aqueles bichos”; talvez pudesse saber definitivamente o sentido daquelas atitudes idiotas e a real razão da reforma do quintal. Porém, eu o imaginava capaz de tudo; talvez me tomasse por algum ladrão, tentando perturbar sua felicidade em ser o único homem a conversar com minhocas no século vinte.

Os leitores gostariam de saber a que horas estávamos quando aquele gorducho fez outra pausa para acender um cigarro. Confesso que não me lembro bem; as horas perdidas e passadas não constituíam para mim nenhum problema. O que devia fazer era forçar meu amigo a terminar a sua narração o mais breve possível. Aproveitei o momento e inventei uma mentira daquelas nas quais não vai pecado por sua intenção.

- Pois bem - disse-lhe eu; estou gostando muito do professor de minhocas. Espero entretanto que o resto de sua estória não seja por demais longo; tenho um encontro às dezoito horas.

- Está enfadado? - Perguntou-me.

- Peço-lhe apenas que termine logo, do contrário chegarei atrasado.

Ele voltou ao professor, desta vez sem fazer pausas nem acender cigarros; e entre palavras e mais palavras foi aos poucos me contando a coisa mais espetacular que pude ouvir em toda a minha vida.

O resto aconteceu no dia 16 de abril; o ano como lhe disse era 1956. No momento em que bateram à minha porta estava lendo um dos capítulos de Os Miseráveis; levantei-me de roldão e ao abrir aquela porta empoeirada e compacta, deparei-me com o professor de minhocas. A cara era a mesma, azeda, no entanto agora favorecida por um inusitado sorriso. Olhei-o desconfiado, mas antes de qualquer reação, ele falou friamente:

- Desculpe incomodá-lo, mas o que me trouxe aqui é muito importante.

- Pois não - repliquei; entre e sente.

- Afastei a cadeira de vime para o lado do sofá e acomodei o professor da melhor maneira possível. Estava surpreso. O motivo que o trouxera à minha casa deveria ser mesmo importante. Finalmente éramos vizinhos há nove meses, sendo essa a primeira vez que trocávamos palavras. - Em que posso servi-lo, perguntei.

- Um fato, senhor, para o qual peço toda a sua atenção, trouxe-me à sua presença, embora não seja do meu feitio incomodar meus semelhantes. Muitas vezes, entretanto, é necessário que o estudioso deixe um pouco os afazeres sagrados da ciência para pedir ajuda. O senhor pode imaginar como é difícil para um homem identificado com o saber projetar seus conhecimentos. Ele tem que fazer isso através de evidências incontestáveis. Dedico-me atualmente a uma pesquisa bastante trabalhosa. Estabelecer as relações entre os homens é para mim coisa muito fácil, já que disponho de todas as condições possíveis para examiná-los um a um. Mas o ser que busca, quando alcança o ápice, deseja voltar ao ponto de origem. E sabe por quê? Porque não tem mais para onde ir. A mentalidade humana desejaria, se lhe fosse dado esse direito, toda a certeza de que algo está por trás do infinito; o senhor talvez não sinta. Estávamos por horas a discutir, eu e um amigo, o progresso da mente humana, e nos propusemos a pensar até onde ela chegaria se lhe dada fosse toda a liberdade. Sabe a que conclusão chegamos? Ela se voltaria para os animais inferiores! O cérebro do homem, cansado, o induziria a isso. Até agora o que se precisa descobrir não é mais segredo para ninguém. Todavia, amigo, ainda não nos voltamos para os animais; somos os privilegiados, os únicos que raciocinam. Com isso, fecha-se-nos um mundo semelhante ao nosso; mas eu vou iniciar uma campanha para expor minhas teorias, no sentido de desvendá-lo. Elas baseiam-se na vida dada aos outros seres pela mesma força que foi tão bondosa conosco, premiando-nos com a razão. Para isso, porém, preciso de seu auxílio, de todos que conheço. Começarei aqui, depois irei estendendo por todo o mundo as provas de que existem vidas semelhantes à nossa inteligentes e sensíveis, que raciocinam com os mesmos critérios do homem. Com os animais chamados inferiores, o senhor fala e eles entendem; quem prova que não respondem às nossas perguntas? É um problema apenas de interpretação. Queira Deus não sejamos nós os idiotas por não estarmos à altura de compreendê-los; eu os entendo, e é para lhe dizer isso que aqui estou, para que o senhor compreenda que vários de nossos problemas serão resolvidos por esses seres. No momento, quero apenas um favor seu: quando eu houver concluído o meu trabalho, os meus estudos, que o senhor se associe comigo, dando-me sua ajuda moral, e financeira, para que juntos nos entendamos melhor. Eu lhe ensinarei a lidar com vários desses bichinhos como amigos; dominei uma boa parte deles, e a esta altura já me comunico inclusive com minhocas. Sabe, eu descobri, por exemplo, que as semelhanças entre elas e nós são muito grandes e ao mesmo tempo compensadoras para as minhas teorias. Basta lhe dizer que elas têm problemas sociais e de relações pessoais. Possuem critérios de tratamento, são organizadas em sociedade e justamente por isso têm como nós o problema racial; sendo que lá não existe esse negócio de preto e branco. O valor pessoal não se aquilata pela cor e sim pelos atos, a grandeza dos atos. Sei que é difícil, depois o senhor me dará razão. Elas são pouco comunicativas, mas nota-se facilmente o seu modo de vida. Descobri tudo isso depois de muito tempo estudando minuciosamente cada movimento, cada curva de seus corpos. São mais amadurecidas que nós, não temem a morte, tida como coisa muito normal. O mais importante é que não se matam; não há guerra entre as minhocas. São numerosas, mas permanecem num plano de isenção quanto aos conflitos comuns, que são resolvidos sem que se precise de armas. Agora diga-me se com tudo isso eu não provo que é preciso se estudar um meio de entendimento global com esses seres? Quando venho de minhas aulas sinto-me feliz em pensar que ao chegar em casa, no meu quarto de estudos está a salvação da humanidade. Naquele gabinete eu não serei forçado a participar de assuntos aborrecidos; lá, fico totalmente voltado para a ciência, não dou esmolas, não corro para atravessar ruas, e não vejo pelas bancas de revistas retratos de mulheres nuas e indivíduos sorridentes. Tudo é paz, compreensão universal. Cada hora naquele quarto é mais uma afirmação de que eu estou construindo, estou caminhando para cima com uma velocidade deveras compensadora.

O professor falava já há algum tempo. Em dado momento, o interrompi e perguntei:

- Muito bem, professor; espera que eu o ajude a mostrar aos homens aquilo que desconhecem totalmente. Será que eles entenderão?

- Tenho certeza disso. Um dia, haverá um momento para a reflexão, e nunca é tarde para que se a proceda. Então, eles compreenderão que de nada adiantará seus projetos científicos se continuam a destruir vidas todos os dias. Nesta hora, voltarão suas mentes para a minha causa. Quando isso acontecer, estaremos felizes, inclusive o próprio Deus; não seremos somente dois; estarão todos unidos e convictos, lutando para descobrir naquilo que foi criado pelo Onipotente com uma razão concreta, a salvação do mundo. Não haverá mais rostos atrás de vidraças perscrutando horrores; seremos um mecanismo centralizado, de forma que todos pensem por um só cérebro. Não é maravilhoso? Os monumentos serão trocados por simples estátuas, a fome pela fartura, a força pela razão, e a afronta pela compreensão. Só podemos fazer isso, senhor, se partirmos de algo novo, sublime. O homem já conheceu que é mau e nada pode fazer por ele próprio senão procurar a razão das coisas, da vida, em outros seres. Não podemos construir nada sobre escombros. Minhas minhocas nos ajudarão a descortinar a mão que varrerá definitivamente o perigo que ronda nossas cabeças. Conto com sua ajuda, repito, e para isso torno-me desde já seu amigo. Irei ao sair daqui visitar outros vizinhos, depois farei um chamado a toda a humanidade para que me acompanhe na difícil missão de dar aos animais aquilo de que eles tanto precisam: a nossa voz, somente a voz, porque o resto eles já o possuem.

- Agora o deixo só. Assim que for preciso chamarei para juntos congregarmos outras pessoas, visando ao bem de nossos irmãos que injustiçados até agora permanecem no caos, tidos como subalternos e irracionais. Boa noite!

- Saiu sem me dizer sequer uma outra palavra, afora o que lhe relatei, e o que é pior!... sem apertar a minha mão.

Bom, estava quase terminada a narração de meu amigo de bar; restava por último perguntar-lhe o que acontecera ao professor, se cumprira o que prometera, se voltara à sua casa, enfim, qual fora o seu destino.

O narrador respondeu já de pé e quase chorando todas as perguntas.

- Soube depois que o professor visitava todos os moradores do bairro; é certo que a partir daquele momento guardamos determinado receio dele, até sabermos de sua trágica morte. Encontraram-no enforcado no banheiro de sua casa. Um mês após o nosso encontro, suicidara-se.

Na última palavra pronunciada pelo curioso amigo que arranjara naquela tarde, assentei enfastiado:

- Bem, não deixa de ser um acontecimento trágico; cumpri-me desejar-lhe que ao menos encontre o tal Tarcísio, o que lhe deve, a fim de que possa reaver o seu dinheiro.

Despedimo-nos sem mais delongas. O encontro ao qual me referira era imaginário. Sobrava-me naquele dia apenas o caminho de casa.

Resolvi inobstante pelo contrário, e me voltei para o caminho de um teatro. A peça começaria às oito horas; deixe-me ver a quantas estou, pensei, enquanto colocava a mão no bolso.

E caros leitores, fui roubado!... O homem que sentara comigo àquela tarde, e sem o braço direito, roubara-me o relógio com sua corrente de ouro que o mantinha preso à algibeira.

Ele não era apenas um desocupado contista. Era um habilidoso ladrão, de relógios e de tempo.




Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui