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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->REVOLUÇÃO E FUTURA UNIÃO -- 15/12/2008 - 01:05 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Julho de 1924. A cidade de São Paulo crescia em todos os
sentidos. Havia dois anos, em fevereiro de 1922, a intelectualidade
brasileira tinha sido surpreendida com a Semana da Arte
Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo.
Movimento cultural que chamou a atenção da sociedade
brasileira. Estado dinâmico, com a economia aquecida, passou
a ser chamado “locomotiva”, pois, devido à lavoura do café e
suas exportações para o mundo, além de uma grande expansão
industrial, São Paulo puxava o resto do país.
Em 1922 começaram os movimentos de insurreições
militares denominados Revoltas Tenentistas. A oficialidade,
principalmente do Exército, não estava satisfeita com a República,
muito menos com o presidente Epitácio da Silva Pessoa, que
tinha nomeado um civil para o Ministério da Guerra. Para
culminar os acirramentos, o governo mandou fechar o Clube
Militar no Rio de Janeiro e prender o seu presidente, ninguém
menos do que o Marechal Hermes da Fonseca.
Parte da guarnição do Forte de Copacabana rebelou-se
no dia 5 de julho de 1922. Imediatamente o governo manda a
Marinha de Guerra bombardear o Forte e decreta estado de
sítio. Este movimento militar ficou conhecido como Os
Dezoitos do Forte. Sem acordo nas negociações, os revoltosos
deixam o quartel e combatem com as forças legalistas na praia
de Copacabana. Os rebeldes são mortos. Só os tenentes Eduardo
Gomes e Siqueira Campos sobrevivem.
Ainda em 15 de novembro de 1922 o Brasil elegeu, mais
uma vez de maneira arcaica e repleta de cambalachos, o novo
Presidente da República. O mineiro Artur da Silva Bernardes
venceu as eleições. A jovem oficialidade, revoltada, contestou
publicamente esta vitória.
32
Depois das peripécias ocorridas em Fantasmas e Fantasias,
Francesco Antônio Trombieri não mais acendia nem
apagava os lampiões a gás da iluminação pública. Fora promovido.
Agora atuava como fiscal de iluminação a gás, em
alguns pontos da cidade onde havia tais lampiões. A luz elétrica
já era um orgulho para São Paulo desde o século XIX. Planejava-
se estender os encanamentos através de ruas e avenidas
para que os fogões, em vez de lenha ou carvão, fossem abastecidos
pelo gás de rua, fato que viria a acontecer em 1929.
A família Trombieri prosperava. Continuavam morando
no bairro da Bela Vista, o Bixiga, lá na Rua Conselheiro
Carrão, e já iam para o quinto filho. Francesco e dona Joaninha
trabalhavam bastante para sustentar a prole. Ela costurava
calças para os alfaiates do bairro.
No mesmo bairro, na Rua Rui Barbosa, moravam
outras famílias de italianos, oriundos da Calábria: os Gullos e
os Stavales.
Habitavam duas mansões avarandadas e ajardinadas
que, na época, faziam parte do mesmo terreno. No maior
morava José Stavale, Zezé para os íntimos, com seus dezesseis
anos. Rosa Yolanda, segunda filha de Francesco, ia fazer seis
anos. Embora vizinhas, as duas famílias ainda não se
conheciam.
Francesco continuava a se encontrar com os amigos. E
as conversas giravam em torno da estagnação e das revoltas que
o país enfrentava. Comentavam, com tristeza e saudade, as
cartas que recebiam dos familiares deixados na Itália.
No dia 5 de julho de 1924, exatamente dois anos após
a revolta no Rio de Janeiro, ocorreu nova rebelião. Desta vez
dentro da cidade de São Paulo.
33
Alguns quartéis do Exército, sediados no Estado de São
Paulo e apoiados por outros da Força Pública, hoje Polícia
Militar, atacaram a sede do governo. Comandados pelo general
Isidoro Dias Lopes, Miguel Costa, Joaquim e Juarez Távora,
eles forçaram a saída do Presidente do Estado, nome dado aos
atuais governadores, que na ocasião era Washington Luiz, e
ocuparam pontos estratégicos da cidade.
Logo nas primeiras horas da Revolução, além de seus
quartéis de origem, os revoltosos ocuparam as Estações da Luz,
Sorocabana e a Estação do Norte no Braz, que ligava São Paulo
ao antigo Distrito Federal, no Rio de Janeiro. Tomaram também
a sede dos Correios e Telégrafos, alguns armazéns, os depósitos
de combustíveis na Mooca e outros pontos da capital, principalmente
hotéis, hospitais e diversas torres de igrejas.
Desde o primeiro dia, os combates dentro da cidade
foram violentos, causando inúmeros mortos e feridos entre os
militantes e a população civil.
Mas somente após alguns dias de luta a população tomou
conhecimento das causas defendidas pelos tenentistas. Além da
renúncia do presidente Arthur Bernardes, eles exigiam do Estado
ensino gratuito, o estabelecimento da autonomia do Poder
Judiciário e, sobretudo, a moralização do viciado sistema eleitoral,
conhecido como “bico-de-pena”. O voto não era secreto.
Na época, este movimento não foi bem definido, mas
foi bastante divulgado. Golpistas, mas reformistas. Prova
inconteste da mescla dos ideais tenentistas, foi que inúmeras
tendências políticas adeririam aos líderes. Alguns tornaram-se
comunistas; outros, nazi-fascistas; outros, ainda, conservadores.
Trágicas foram as mortes de muitas crianças, a grande
maioria por imprudência. Elas acreditavam que se tratava de
34
novos festejos de São João, comuns em junho, e percorriam as
vizinhanças das trincheiras, no momento dos combates,
disputando a posse de cápsulas deflagradas. Esse tipo de morte
também vitimou muitos adultos.
O principal alvo da artilharia e infantaria revoltada, nos
primeiros dias de revolução, era a sede do governo, o antigo
Palácio dos Campos Elíseos, no bairro do mesmo nome.
Os revolucionários montaram seu quartel-general na
Igreja da Nossa Senhora da Glória, no Cambuci, devido à sua
ótima posição topográfica, no topo de uma colina. Suas peças
de artilharia pesada de longo alcance, vindas de Quitaúna,
foram colocadas nos altos da cidade: Altos do Araçá, no espigão
da Avenida Paulista, Perdizes, Morro dos Ingleses, topo da Rua
dos Ingleses, no bairro da Bela Vista, nosso conhecido Bixiga,
e outros locais de onde deslocavam suas baterias com uma
rapidez incrível.
Parte da fiscalização feita por Francesco era nas adjacências
do Morro dos Ingleses. Naquela manhã de sábado, ao
tentar subir as escadas que saíam da Rua Fortaleza e terminavam
no patamar do Morro, foi impedido por dois soldados
fortemente armados. A escadaria estava bloqueada por uma
trincheira de revolucionários que o impediram de subir. E, com
violência, fizeram-no retornar, avisando:
— Estamos em revolução. Vai cuidar da tua vida e não
passe mais aqui!
Preocupado, Francesco voltou para casa. Foi quando
começou a escutar os primeiros tiros de canhão e o matracar
de uma metralhadora.
Zezé era aluno interno no Liceu Coração de Jesus. O
Liceu, anexo à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, dos padres
35
salesianos, situava-se, e existe até hoje, no Bairro dos Campos
Elíseos, bem próximo ao Palácio do Governo.
Os primeiros tiros de artilharia, dirigidos contra o
palácio, caíram nas redondezas. Um dos tiros atingiu em cheio
o pátio do Liceu. Felizmente era sábado e o pátio do colégio
estava vazio, pois os alunos preparavam-se para passar o final
de semana em casa. Mas, além do susto, como fazer para
mandar a garotada embora entre dois fogos?
Houve um fato contraditório, naquele sábado. Um grupo
de alunos do Liceu, com alguns professores, todos uniformizados,
foi mandado para uma chácara dos padres que ficava
na zona leste. Estavam passando pela Várzea do Carmo, já em
poder dos revolucionários, quando foram confundidos por
tropas legalistas, que quase atiraram no grupo, tragédia que por
pouco não aconteceu.
Os raros bondes elétricos que ainda circulavam já
tinham ordens da Light para retornar às suas estações. Uma
dessas garagens localizava-se na Alameda Glete, no bairro de
Santa Cecília, que terminava próxima ao Liceu. Nesta estação,
Zezé tomava o bonde para ir para casa, no Bixiga. Infelizmente
o local estava tomado pelos revolucionários.
Francesco não sabia o que dizer a Joaninha. Além da
esposa, tinha quatro filhas pequenas, o que o deixava extremamente
preocupado. Os últimos acontecimentos estavam
tornando a sua vida cada vez mais difícil. Pensou, pensou e
decidiu ficar em casa, ao lado da família, naquele final de
semana, esperando o que poderia acontecer na segunda-feira.
Até as padarias estavam fechadas. E o barulho dos tiros dos
canhões continuava a martelar a sua cabeça.
Salvador e Palmyra, pais de Zezé, tão perto de Fran36
cesco, também não sabiam o que fazer. Angustiados, pensavam
em seu único filho.
Segunda-feira, 7 de julho. As escaramuças entre os legalistas
e revolucionários continuavam a todo o vapor. A cidade
estava praticamente paralisada. A guerra civil dominava tudo.
Só o prédio dos Telégrafos, na Rua José Bonifácio, tinha sido
recuperado pelo governo.
Zezé conseguiu chegar em casa no início da semana.
Tinha ficado no Liceu.
Seus pais, tios e primos articulavam o que fazer para
deixar seus lares. Não era para menos. A canhonada e a fuzilaria
assustavam a todos.
Salvador era artista gráfico e trabalhava nos fundos de
sua casa. Assim, não precisava sair para o trabalho. Mas e quem
foi trabalhar naquela segunda-feira? — Ninguém!
Os principais avanços das tropas revoltosas aconteceram
até a madrugada de 9 de julho, quando todos os
redutos legalistas, inclusive o Palácio dos Campos Elíseos,
foram abandonados. O governo retirou-se da cidade e suas
forças agruparam-se principalmente em locais próximos do
Ipiranga. Tréguas, nem pensar! Tiros eram ouvidos a todo o
instante, apesar do recuo. Não havia descanso para os beligerantes.
Apenas os legalistas tinham-se retirado para organizar
melhor a retomada da cidade. Os canhões legalistas, lá para
as bandas da Penha, alvejavam sem piedade o Morro dos
Ingleses, uma das bases da artilharia dos revolucionários.
Francesco e Salvador, com suas famílias, estavam no
meio desse fogo cruzado.
Na casa de Zezé, como em muitas outras casas da cidade,
quando os tiroteios e o cruzar dos obuses eram mais inten37
sos, homens, mulheres e crianças escondiam-se debaixo das
camas. Sair às ruas era pedir para ser morto ou ferido por bala
perdida ou explosão de granada.
Ainda lembro-me de ouvir meus familiares contando sobre
as batalhas das artilharias. Pelos estampidos, sabiam qual tipo
de canhão estava atirando. E à noite, os obuses disparados das
baterias no Morro dos Ingleses, passavam sobre as casas, zunindo,
ainda ardendo em fogo, deixando traços coloridos no céu.
Sábado, 12 de julho. Com a cidade repleta de boatos e
combates, numa incrível coincidência, as duas famílias
resolveram fugir.
Aproveitaram o final de semana. Devido à aparente
suspensão dos combates de rua, alguns bondes trafegavam e
algumas casas comerciais funcionavam com as portas entreabertas,
como se fosse um dia de luto semi-oficial.
Fizeram as malas. Francesco com toda a família, mais
a sua cunhada Santina foram para a casa dos tios, no distante
bairro da Lapa.
Ir para a Lapa já era uma viagem. Imaginem com a cidade
em revolução? Os primeiros bondes começavam a trafegar
às cinco horas da manhã. A confusão era muito grande, por
isso era impossível pensar em horários ou linhas funcionando
normalmente.
Depois de várias horas, chegaram à Avenida São João.
O trecho entre a Praça Antônio Prado até a Alameda Glete
estava interditado para qualquer tipo de veículo devido às
trincheiras abertas no meio da avenida. Tiveram de ir a pé.
Paulina, a filha mais nova, com um ano de vida, ardia em febre.
As filhas maiores, Cristina, Rosa e Mafalda ajudavam a carregar
os pertences da família.
38
Em frente à Estação Glete, depois de diversos sustos com
soldados e sentinelas, sentaram-se em um pequeno bar para
comer um lanche preparado por dona Joaninha: pão italiano
com chicória frita no alho e óleo.
Em seguida, embarcaram num bonde lotado com outros
fugitivos da Revolução.
Quando chegaram à casa dos tios já era noite. Na Lapa,
como em outras partes da cidade, não havia energia elétrica.
Os revoltosos tinham desativado diversas usinas. A principal
estação transformadora da Light and Power, na Rua Paula
Souza, nas mãos dos legalistas já não fornecia energia suficiente
para a cidade.
Lá moravam dona Florinda, irmã de dona Cristina, mãe
de Francesco, casada com Francesco Grosso. Outro casal de
calabreses, chegados durante a imigração com a primeira filha,
Florinda, nascida na Itália, foram diretamente para a cidade
de Rio Claro, no interior paulista, onde se estabeleceram como
comerciantes. No Brasil nasceram mais dez filhos, e entre eles
o famoso artista plástico Guerino Grosso. Suas telas eram
dedicadas às naturezas mortas e ambientes de fundos de
quintais.
Francesco Grosso, junto com a família, mudou-se de Rio
Claro para São Paulo, em 1919. Os onze filhos do casal Grosso
já eram nascidos, em 1924.
No casarão da Rua Rui Barbosa, naquela manhã de sábado,
os preparativos para a viagem não eram os mesmos. Uma
boa parte da família ia para Rio Claro, onde morava Aníbal,
irmão de Palmyra. Arquiteto, ele havia mudado-se para lá,
também em 1919, para assumir o cargo de primeiro professor
de desenho técnico na Escola Profissional de Rio Claro.
39
Coincidências que seriam constatadas, anos mais tarde.
De um comando revoltoso, a família de Zezé conseguiu
saber que por volta das duas horas da tarde partiria um trem
para Campinas, e de lá haveria uma baldeação para outras
cidades, inclusive Rio Claro. O trem sairia da Estação da Luz,
outro quartel dos revoltosos, comandado pelo lendário tenente
Cabanas.
João Cabanas nasceu em São Paulo, onde cursou a
Escola de Oficiais da Força Pública paulista e bacharelou-se pela
Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Após a retirada
dos revolucionários da cidade, o Tenente Cabanas comandou
a famosa Coluna da Morte. Feroz nos combates com as forças
do governo, seus feitos militares estimularam o aparecimento
de diversas lendas sobre a sua pessoa. Dizia-se que tinha o corpo
fechado e que possuía poderes sobre-humanos para, depois das
batalhas, empreender fugas espetaculares. Como ocorreu com
outros líderes do movimento, o governo federal colocou sua
cabeça a prêmio por quinhentos contos. Exilou-se, então, no
Uruguai. Não participou da Coluna Prestes.
Com as três principais estações em poder dos revolucionários,
a principal atividade dos comboios, que iam e
voltavam do interior de São Paulo e de outros estados, era o
transporte de armas leves, cavalos e canhões, e os passageiros
eram as tropas.
Mas naquele trem embarcariam passageiros comuns.
Como chegar até a Estação da Luz? Estavam tentando
encontrar um modo de deslocamento quando Ernesto, recémcasado
com Antonieta, irmã de Palmyra, apareceu com uma
velha carroça puxada por um cavalo. O grotesco carro,
conduzido por seu cocheiro, serviu principalmente para as
40
malas e embrulhos. Os adultos seguiram andando. Havia um
pequeno na viagem, o primeiro filho de Ernesto e Antonieta,
Adalberto, o querido Bertinho. Deram voltas e mais voltas,
desviando das tropas e das trincheiras. Cenas de puro vandalismo
eram vistas a todo o momento. Populares e revoltosos
incendiavam lojas e armazéns para saqueá-los. Mas a família
conseguiu chegar até a estação.
Lá, outra surpresa estava reservada. Felizmente, a carroça
continuava carregada. As sentinelas avisaram que o trem
sairia da estação da Barra Funda. A família não se preocupou
com isto, pois a partida estava muito atrasada.
Depois de nova caminhada até a Barra Funda, seguiram,
na velha “Maria-fumaça”, Zezé, seu primo Eduardo, o
Dadinho, o qual, anos mais tarde se ordenaria padre jesuíta,
tia Marietta, Risoleta e Antonieta com seu marido, que não
largava um momento sequer de Bertinho.
Ficaram nos casarões: Salvador e Palmyra, Julieta, também
irmã de Palmyra, com seu marido Dante, pais de Dadinho,
e o resto dos filhos.
A viagem, além de atrasar mais de uma hora em São
Paulo, foi uma epopéia. Depois de dez minutos, o comboio
parou na Estação da Lapa. Nem imaginavam que lá perto estavam
Francesco e família. O destino começava a aproximar Rosa
e Zezé. Como a ferrovia estava em poder dos revoltosos, todo o
cuidado era pouco. As paradas eram enervantes e demoradas. O
deslocamento de tropas era intenso para São Paulo. Os trens,
vindos do interior, trazendo soldados principalmente de Jundiaí
e Pirassununga, corriam em grande número e tinham prioridade.
De São Paulo a Jundiaí, a Estrada de Ferro era a SPR, São
Paulo Railway, dos ingleses, que começava em Jundiaí, passava
41
por São Paulo, e ia até a cidade de Santos. Pela SPR escoavam as
exportações de café para o porto de Santos. Em Jundiaí começava
a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, construída
pelos barões do café. Em tempos normais, na estação de Jundiaí
só trocavam as locomotivas. Mas naquele sábado tiveram de
descer e trocar de trem. As viagens de trem para Rio Claro, feitas
habitualmente pela família de Zezé, duravam de quatro a cinco
horas. Mas aquela durou mais do que o dobro.
Saíram de São Paulo às três horas da tarde do sábado e
só conseguiram chegar a Rio Claro na madrugada de domingo.
Tio Aníbal esperava-os na estação. Ao anoitecer, tinha recebido
o telegrama avisando da súbita viagem. Da estação para a
Avenida Cinco, onde ele morava, era perto. Não precisaram
mais de carroça.
Tia Maria, a segunda esposa de Aníbal, havia preparado
um suculento jantar, que acabou virando café da manhã.
Em São Paulo, na Lapa, as famílias Trombieri e Grosso
somavam vinte pessoas, na mesma casa. Dormiam em paz. Nem
escutavam o troar dos canhões vindos dos lados da Penha.
Domingo, continuava a calma aparente, apesar dos
combates esporádicos e duelos de artilharia. A grande batalha
pela reconquista da capital estava sendo preparada pelos
legalistas.
Na segunda-feira, 14 de julho, Francesco voltou para
casa sozinho. Tinha de continuar a sua fiscalização, sem levar
em conta a redução do fornecimento de gás, causados pela
revolução.
Nas casas das retortas e nos gasômetros, a Revolução
causava alterações nos sistemas de produção. Além da falta de
carvão, provocada pela interrupção do transporte; as paredes
42
metálicas dos reservatórios de gás, a cada instante, eram atingidas
por balas perdidas, causando incêndios e vazamentos.
Assim, foram estabelecidos turnos de doze horas, com redução
do pessoal e a permanência das famílias dos operários dentro
das fábricas.
Como era obrigado a passar duas vezes por dia pelo
Morro dos Ingleses, Francesco tornou-se bastante conhecido
pelos soldados e oficiais que ocupavam a área. Possuía até as
senhas e as contra-senhas do setor. Ao subir e descer as escadas
da Rua Fortaleza, avisado sempre pelas sentinelas avançadas,
ia gritando o código do dia. Assim, circulava pelo espaço
ocupado sem ser molestado, e acabou fazendo boas amizades
entre os revolucionários. Amizades que perduraram anos após
o término da Revolução.
Lá perto, menos de quatro quarteirões de distância,
Salvador e o resto da família viviam momentos de saudades e
angústias. Não tinham notícias. Telegramas do interior para a
capital, nem pensar! A gráfica permanecia fechada. O mesmo
acontecia com a fábrica de sapatos, na casa ao lado, de seu
concunhado Dante.
Não era para menos. Não havia transporte. Os poucos
bondes que ainda trafegavam circulavam esporadicamente. Os
serviços essenciais de fornecimento, como energia elétrica, água
e gás, estavam quase paralisados. Os jornais davam trágicas
notícias de mortes e destruições!
Em 20 de julho os legalistas, agora mais equipados, com
armamentos e tropas vindas de outros estados, começaram a
fechar o cerco da cidade. Chegados de trens pela Central do
Brasil, transformaram a recém-inaugurada Estação da Vila Matilde
em quartel-general. A artilharia, assentada nos arredores da
43
Penha, martelava as posições inimigas dia e noite. Do porto de
Santos subiu para São Paulo um forte contingente legalista.
Depois de se formar, com as tropas que estavam no Ipiranga,
começaram a marcha pela Saúde, Vila Mariana e Liberdade. Da
Penha chegavam cada vez mais tropas, para cerrar o cerco
através da Barra Funda e Bom Retiro. As duas alas lutariam, nos
dias seguintes, para a conquista definitiva da capital.
As batalhas de infantaria, exibindo lutas corpo-a-corpo
com as baionetas caladas, prosseguiam.
Conta-se que em uma destas batalhas, na Rua dos
Lavapés, o sangue dos soldados escorria pelas sarjetas.
Pouco a pouco, batalha após batalha, os legalistas
ganhavam terreno. As torres das igrejas, principalmente as da
Nossa Senhora da Glória, ex-quartel-general inimigo, e da
Imaculada Conceição, na Rua Cincinato Braga, no espigão da
Avenida Paulista, já serviam de postos de observação para as
tropas do governo federal. Percebia-se os revolucionários
começando a abandonar tais lugares e concentrarem-se perto
das estações. Era o prenúncio da fuga premeditada.
Além do centro da cidade com seu famoso triângulo,
rua 15 de Novembro, Direita e São Bento, os bairros mais
atingidos foram: Campos Elíseos e Luz, por ser a sede do
governo, de muitos quartéis e estações de trem. Segue-se com
Santa Efigênia, Bela Vista, Brás, Bom Retiro, Barra Funda,
Liberdade, Cambuci, Vila Mariana, Santana, Consolação, Santa
Cecília e Mooca. Depois de vários ataques de artilharia, os
depósitos de combustíveis da Mooca, ao lado da estrada de ferro
e dos armazéns gerais, arderam durante vários dias. Durante
as noites em que perduravam os incêndios, a paisagem parecia
uma aurora boreal tupiniquim. O clarão constante das laba44
redas a queimar gasolina e óleo, vista à noite, lembrava um
constante amanhecer.
A queima dos depósitos de combustíveis e outros incêndios
aterrorizavam os habitantes naqueles tristes dias. O incêndio
da fábrica Crespi foi um dos maiores. Os poucos
bombeiros não davam conta dos sinistros.
Domingo, 27 de julho. Desde a véspera não se ouvia o
barulho dos combates em toda a linha de frente. Francesco saiu
cedo de casa para ir visitar a família, na Lapa.
Estava passando pelo centro, quando um pequeno aeroplano
começou a sobrevoar a cidade. Foi uma correria só. O
povo, amedrontado, pensou logo em bombardeio. Mas não! Em
vez de granadas, o piloto jogava A Gazeta de Notícias, com uma
proclamação do ministro da guerra, pedindo ao povo paulistano
para evacuar a cidade. Quando o aeroplano voltou, atirando
para baixo a carga de jornais, sem pestanejar os soldados revolucionários
começaram a atirar com seus fuzis e metralhadoras
na direção do aparelho. Foi uma fuzilaria incrível. Francesco
estava pensando em voltar para casa, mas não foi necessário. O
aviador, como na época eram chamados os pilotos dos aviões,
desapareceu no horizonte com o seu aeroplano.
Em Rio Claro, através dos poucos jornais que chegavam,
Zezé e os seus tomavam conhecimento das notícias.
Na madrugada da segunda-feira, 28 de julho, repentinamente
os sinos do Mosteiro de São Bento, no centro da
cidade, começaram a repicar com insistência.
Muita gente acordou, provocando certo alvoroço na
população. Ao clarear do dia, os boatos alastravam-se pela
cidade: os revoltosos estavam abandonando a capital, fugindo
de trem para o interior. Tropas legalistas eram vistas ocupando
45
as trincheiras dos revolucionários. Ninguém sabia dizer, ao
certo, se haveria mais combates. Informações e desinformações
circularam por toda a manhã. Nas portas das redações dos
jornais, a multidão aumentava em busca de notícias.
Francesco estava diante da redação do jornal O Estado
de S. Paulo, também querendo saber das novidades.
Mas, a realidade estava nos olhos das pessoas que vinham
dos bairros, principalmente da Liberdade, Brás e Mooca,
pois elas afirmavam que as trincheiras dos revolucionários estavam
abandonadas. Havia desânimo e cansaço nos rostos dos
soldados rebeldes.
Entre três e quatro horas da tarde, soube-se, por meio
de fonte fidedigna, vinda da redação de “O Estado, que se o
General Izidoro Dias Lopes não capitulasse, a cidade seria
arrasada pela artilharia legalista, posicionada em lugares
estratégicos. Não haveria mais combates de infantaria. A cidade
desmoronaria sob o aço e o fogo das granadas legalistas.
Apesar de a imprensa e o povo estarem divididos entre
revolucionários e legalistas, a cidade não desmoronou. A fuga
dos revolucionários era latente. As tropas legalistas tinham
vencido a Revolução de 1924.
O Hotel Therminus, residência oficial do comando da
Revolução, estava vazio. Ninguém sabia de ninguém. Viam-se
caminhões lotados de soldados revolucionários, assobiando e
se despedindo do povo com:
— Adeus e até a volta!
Nos quartéis, repartições públicas, trincheiras e outros
locais até então em poder dos revolucionários, o caos era
completo. Tudo estava abandonado: armas leves, munições,
víveres, combustíveis, roupas e outros utensílios à mercê dos
46
saques. Dos lados da Estação da Luz vinham as notícias que
trens lotados de tropas corriam para o interior. Gôndolas de
carga, carregando peças de artilharia, faziam parte dos comboios.
A Revolução tinha terminado.
Muitos dos trens transportando os derrotados passaram
por Rio Claro.
Contava meu pai que boa parte da população ficava nas
imediações da estação, ou até na plataforma de embarque e
desembarque, só para vê-los. Num desses comboios, ao partir,
os soldados, por brincadeira, disparam suas armas para o
telhado de zinco. O barulho foi tão intenso que o povaréu
desistiu de voltar para matar a curiosidade.
Após a derrota do movimento paulista, em 1924, esses
grupos de combatentes recuaram para o interior do Brasil, sob
o comando de Miguel Costa. No início de 1925 reúnem-se, no
oeste do Paraná, com a coluna do capitão Luís Carlos Prestes,
que havia partido do Rio Grande do Sul, sempre com as forças
federais à sua procura.
Forma-se a Coluna Prestes com cerca de 1.500 homens,
que entram pelo atual Mato Grosso do Sul, sobem rumo ao
norte, chegando até o sertão do Maranhão. Voltam através do
interior do nordeste e cruzam o estado de Minas Gerais,
refazendo parte do trajeto, e cruzam a fronteira com a Bolívia,
em fevereiro de 1927. Enfrentam tropas regulares do exército
ao lado de forças policiais dos estados e tropas de jagunços,
estimulados por promessas oficiais de anistia. Dizem que até o
lendário Lampião foi convocado para lutar contra a Coluna
Prestes. Nas cidades e vilarejos do sertão por onde passaram
promoveram comícios, divulgando manifestos contra o regime
oligárquico da República Velha. Enfatizavam o autoritarismo
47
do governo de Washington Luiz, que mantinha o país sob estado
de sítio desde a sua posse, em novembro de 1926.
As tropas lideradas por Prestes e Miguel Costa não
conseguem derrubar o governo de Washington Luiz. Mas, com
as glórias da marcha vitoriosa de 25 mil quilômetros, o prestígio
político do tenentismo aumenta, abalando ainda mais as bases
da República Velha, e ajudando a preparar a Revolução de
1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Cresce também o
prestígio de Prestes como líder que, posteriormente, entra para
o Partido Comunista Brasileiro.
Com o crescimento do fascismo na Europa e do integralismo
no Brasil, liderado por Plínio Salgado, as lideranças democráticas
e de esquerda decidem reproduzir no país o modelo das
frentes populares européias. Com este objetivo é criada no Rio
de Janeiro, em 1935, a Aliança Liberal Libertadora (ANL), reunindo
ex-tenentes, comunistas, socialistas e líderes sindicais excluídos
do poder. Luiz Carlos Prestes, recém chegado da URSS,
é convidado para presidente de honra da organização. A ANL
cresce tão rapidamente quanto a sua adversária AIB (Ação Integralista
Brasileira), que tinha o apoio do presidente Getúlio Vargas.
Os confrontos entre os militantes comunistas e integralistas,
tornam-se cada vez mais freqüentes. Aproveitando o apoio da
sociedade à causa antifascista, Prestes lança em julho de 1935,
em nome da ANL, um documento que pede a renúncia de
Vargas. Em represália, o governo decreta a ilegalidade da ANL.
Com o apoio de Prestes, e contando com a adesão de
simpatizantes da proscrita ANL em importantes unidades do
exército, os comunistas preparam uma rebelião militar. O levante
dos quartéis seria o sinal para uma greve geral e o início da
revolução popular. A revolta começa precipitadamente nas
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cidades de Natal e do Recife, nos dias 23 e 24 de novembro de
1935. Devido à inesperada antecipação dos fatos, os chefes do
movimento apressam a mobilização no Rio de Janeiro para a
madrugada do dia 27. O 3º Regimento de Infantaria, na Praia
Vermelha, e a Escola de Aviação, no Campo dos Afonsos, são
palcos da revolta. Os rebeldes são encurralados pelas artilharias
do exército e da marinha e rapidamente dominados. A rebelião
é derrotada no mesmo dia em que começa devido à falta de
organização. Em todo o Brasil, revoltosos e simpatizantes são
perseguidos e presos. Luiz Carlos Prestes é libertado somente
em 1945, quando termina a ditatura de Getúlio. A mulher de
Prestes, a judia Olga Benário, é presa e entregue à Gestapo, a
polícia secreta de Hitler. Após mais esta revolta, que ficou
conhecida por Intentona Comunistas, o PCB – Partido Comunista
Brasileiro é condenado à clandestinidade.
Voltamos aos primeiros dias de agosto de 1924, o governo,
restabelecido, fazia o balanço das perdas e danos causados
à cidade pelas balas dos canhões, tiros de fuzis e metralhadoras,
incêndios, depredações, saques e outras violências trazidas pela
guerra civil. Faltavam hospitais para atender os inúmeros
habitantes feridos nos tiroteios. A Revolução deixou mais de
quinhentos mortos e cinco mil feridos.
O estado de sítio vigorava desde o primeiro dia da
revolta. Militares que não fugiram, políticos, jornalistas e outros
tantos que lutaram ou foram a favor da Revolução estavam
presos. Diversos jornais não circularam nos primeiros dias, após
o término da luta, como O Estado de S. Paulo, leitura obrigatória
de Zezé até outubro de 1999, data do seu falecimento.
Os mortos foram pranteados e enterrados. Assim, a cidade,
como fênix, ressurgia das cinzas.
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Pouco a pouco, os milhares de habitantes, fugidos da
luta armada, foram retornando. Entre eles estavam Rosa e Zezé.
Das lembranças físicas deixadas pela Revolução, guardo
até hoje uma antiga caixa de folha-de-flandres, usada para
guardar fumo para cigarros de palha da Companhia Souza
Cruz. Lá dentro ainda estão, como Zezé deixou, pentes de balas
de fuzil e estilhaços de granadas de mão. Estas recordações
foram recolhidas nas ruas. Não me esqueço da primeira vez em
que minhas tias e meu pai mostraram-me a bala de fuzil cravada
em uma das venezianas da varanda do casarão da Rua Rui
Barbosa. Perdida na memória da velha casa durante a sua
demolição, nos anos 70.
No começo da década de 1930, Salvador Stavale e Francesco
Trombieri conheceram-se através da Igreja Católica. Os
dois pertenciam à Sociedade Filantrópica São Vicente de Paula
e à Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Eram vicentinos
e franciscanos. Zezé participava das reuniões vicentinas, na
Igreja de Nossa Senhora da Achiropita. Na Igreja da Imaculada
Conceição eram realizadas as atividades franciscanas.
Francesco e Joaninha criaram e educaram nove filhos.
Salvador freqüentava a casa do amigo, principalmente nas
noites de terça-feira, por ocasião da reunião vicentina. Juntos,
depois de jantar, iam para a igreja. Salvador, carismático e dono
de um humanismo ímpar, passou a admirar ainda mais a família
Trombieri. Animava as noites com suas brincadeiras, tocando
flauta, divertindo grandes e pequenos.
Esta amizade criou laços íntimos entre os dois. Consideravam-
se irmãos. Alegre como sempre, atendendo aos pedidos
da família, principalmente das crianças, Salvador passou a
jantar com os amigos com mais freqüência. Era considerado
um membro da família.
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O tempo foi passando. Francesco continuava trabalhando
na Companhia de Gás, como caixa recebedor, em um dos
guichês do escritório na Rua Roberto Simonsen, na antiga casa
da Marquesa de Santos. Salvador, ajudado por Zezé, continuava
com sua gráfica na Rua Rui Barbosa.
Corria o ano de 1937. Salvador estava muito doente.
Sofria de problemas coronários. Completaria sessenta anos em
dezembro, mas parecia mais idoso, pois seu semblante, outrora
jovial, havia adquirido uma aparência cansada. Mesmo assim,
mantinha seu bom humor e a benevolência para com todos.
No começo de julho de 1937, Salvador resolveu passar
uma temporada em Rio Claro. Lá tinha a companhia dos seus
cunhados, Aníbal e Marietta. Aníbal tinha seis filhos pequenos,
que adorava. Marietta lecionava na cidade.
No dia 10 de julho, passeando com seus sobrinhos
Norberto e Pradelina, pelas ruas de Rio Claro, sofreu um colapso
fatal e faleceu em questão de instantes.
Com a morte do pai, Zezé passou a freqüentar a casa do
amigo Francesco. Lá conheceu Rosa, a segunda filha. Não houve
dúvidas: meses depois, Rosa era pedida em casamento por Zezé.
O namoro, depois o noivado, o primeiro enlace da
família Trombieri, aconteceu à moda antiga, sob a batuta severa
de Francesco, pai fervoroso e zeloso com a educação dos filhos.
Ficaram noivos no dia 21 de junho de 1938.
Exatamente um ano depois, no dia 21 de junho de 1939,
quando a Revolução ia completar quinze anos, Zezé e Rosa
casaram-se na Igreja de Nossa Senhora da Achiropita. Assim
foi selada a união entre as famílias Stavale e Trombieri.
Dos três filhos do casal, este contador de histórias foi o
segundo.
O tempo passa, mas as memórias ficam!


"Este Conto está publicado no livro "CONTOS E RECONTOS" de Roberto Stavale, lançado pela FACTASH EDIDORA, em 2004, e o Copyright do Autor reza: Proibida a reprodução dos textos originais, mesmo parcial, e por qualquer processo, sem a autorização do Autor."



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