Dando continuidade ao trabalho códice do futuro, quero dizer que
outra revolução da leitura é a que diz respeito ao estilo de leitura;
na segunda metade do século XVIII, à leitura intensiva haveria de
suceder outra, qualificada de extensiva. O leitor intensivo é confrontado
com um corpus limitado e fechado de textos lidos e relidos, memorizados
e recitados, ouvidos e sabidos de cor, transmitidos de geração a
geração. Os textos religiosos, e em primeiro lugar a Bíblia nos países
protestantes, são os alimentos privilegiados desta leitura, fortemente
marcada pela sacralidade e autoridade. O leitor extensivo, o da Lesewut,
da ânsia da leitura que toma conta da Alemanha no tempo de Goethe,
é um leitor totalmente outro : ele consome muitos e variados impressos;
lê-los com rapidez e avidez, exerce em relação a eles uma atividade
crítica que, agora, submete todas as esferas, sem exceção, à dúvida
metódica. Por outro lado, para o grupo mais extenso dos leitores,
para os mais humildes- os dos chapbooks ou da literatura de cordel,
a leitura conserva, de forma duradoura, os traços de uma prática rara,
dificil, que supõe memorização e recitação de textos, os quais, devido a
seu número restrito, se lhes tornam familiares, sendo, na verdade,
antes reconhecidos que descobertos. Em nosso tempo, precisamos
de outras espécies de livros, de literatura, de revistas especializadas
e de obras de referência. É preciso que os novos livros funcionem
como máquinas, à maneira da Enciclopédia de Diderot , e sinalizem
os seus caminhos, para que o leitor possa entrar facilmente em seu
interior e encontrar rapidamente o que procura. É preciso que as obras
estejam abertas à navegação do leitor, para que ele escolha livremente
o seu percurso e faça suas próprias descobertas. É preciso que os
dispositivos de pesquisa sejam ágies e inteligentes, permitindo chegar-se
ao conhecimento desejado com um minimo de atropelos e sem
constrangimentos de ordem geográfica, econômica ou institucional.
O pefil das bibliotecas já está mudando radicalmente, em muitas
delas, os livros estão sendo digitados e armazenados em CD-ROMs
ou em gigantescos memórias on line, de modo a permitir o acesso
remoto e a pesquisa a partir de qualquer palavra na língua-sede. Se
o livro vai morrer ou não, essa é uma discussão restrita apenas aos
circulos de filólogos, pois, no fundo, tudo é uma questão de definir
o que estamos chamandos de livro. O homem continuará, de qualquer
maneira, a inventar dispositivos para dar permanência, consistência
e alcance ao seu pensamento e às invenções de sua imaginação.
E tudo fará também para que esses dispositivos sejam adequados
ao seu tempo. A sabedoria, como dizia Brecht, continuará sempre
passando de boca em boca, mas nada impede que estendamos um
microfone às bocas que falam, para lhes dar maior alcance. Com
o texto eletrônico, a coisa muda. Não somente o leitor pode submeter
o texto a múltiplas operações ( pode indexá-lo, colocar observações,
copia-lo, desmembrá-lo, recompô-lo, deslocá-lo etc.) mas pode ainda
tornar-se seu co-autor. O texto eletrônico, pela primeira vez, permite
superar uma contradição que obsedou os homens do Ocidente :
a que opõe de um lado o sonho de uma biblioteca universal que
congregasse todos os livros já publicados, todos os textos já escritos,
esgotando todas as combinações das Letras do alfabeto. "Quando
se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira
reação foi uma felicidade extravagante", essa felicidade extravagante
a que se refere Borges, nos é prometida pelas bibliotecas sem
muros e até sem lugar, que serão provavelmente as de nosso futuro.
-José Angelo Cardoso. Poeta, contista, artista plástico.
São José do Albertópolis.-Guaira-SP.
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