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Contos-->Mentiras vencidas partem -- 09/03/2000 - 00:55 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não havia porque ligar para ninguém, era assim dentro da cabeça dela o tempo todo, depois de tantas coisas acontecerem na trama da sujeira. Ora, era tarde demais e havia dado tudo errado, como não deveria deixar de ser. Mas ela tinha uma faca de destroçar carne na mão suja de sangue e anfetaminas na cabeça girando, girando, girando.
A faca fora removida da gaveta alguns minutos atrás, nem dava para lembrar direito, pareciam horas, dias, semanas, sugestões psicodélicas perdidas dentro de seus pensamentos atrapalhados, como um turbilhão emotivo contra tudo e todos que pudessem vir a prejudicá-la; naquelas condições, qualquer um que viesse a cruzar seu caminho tinha que sofrer antes de morrer. Nem era tarde para lástimas, mas a preocupação dela não era essa.
Havia começado tudo a um tempo atrás, naquele supermercado do fim da rua. Ela era cega e estava grávida, mas tinha noção das coisas porque nascera sem os olhos e passara por alguns abortos ilegais, feitos de improviso. Besteira. Apesar de o ter escolhido, não pertenciam um ao outro e não haveria nada que fizesse isso mudar. Muitos erros, falhas demais para quem não pediu para se envolver, ela não ligava, estava se lixando. Só tem puto, eu mudo minha vida quando eu quero, vou mudar de novo. Então alguém começou a se arrastar pelo chão da sala ruidosamente, suspirando abafado pela falta de ar e derrubando objetos que estivessem próximos.
Ela foi até lá. Tateando as paredes para não cair na sua escuridão pessoal, meio assustada e meio assustadora, como uma presa envenenada, localizando o lugar exato de onde viera a voz. Predadora cega?
Olhos para que?
Ela já estava morta a muito tempo.

* * *

Tornara-se uma obsessão nos últimos meses; limpava a testa com o lenço enquanto subia as escadas, com os joelhos estalando. Esteve durante muito tempo atrás de algo que tinha que encontrar e elucidar, em meio a pistas erradas, provocações e falhas lamentáveis. No seu escritório na delegacia, só restavam toneladas de papéis comprovantes da aparente inutilidade em pegar o maníaco. Havia algo maior, ele sabia desde o começo, meu Deus. Era maldade demais e estava iminente nas suas costas. Brigou com todo mundo, os seus companheiros e a sua família, ninguém e nada mais importava para ele na sua perseguição interminável. E ele nem tinha mais idade de ligar para isso, era só deixar acumular em cima da escrivaninha velha, fez isso por todos aqueles anos até inventar de uma hora para outra que ia resolver aquele negócio. Era uma dor de cabeça tremenda, todo fim de tarde, atrás da nuca, suor e visão disfocando, precisava de um cafezinho com o AS mas daquela vez tinha que passar.
Terceiro andar, as articulações doíam, a transpiração oscilava entra gotas e delírios. Prédio chique mas ele odiava elevador, era coisa para bicho. Pressão subindo.
Eram trinta anos na polícia, trinta longos anos. O currículo de investigador parecia anular o empenho em pegar alguém tão perigoso daquela vez, assim como outros o foram e ele deixou passar. Ele lembrava das últimas vítimas do maníaco durante toda aquela subida terrível; os dias estavam esquentando. Parece que quanto mais quente o clima fica, mais violentas as coisas ficam. Não poderia ter outra explicação e ele sentia vontade de vomitar ali mesmo, nos degraus. Ao passo que tentava reaver os fatos referentes a cada corpo encontrado, tentava compreender melhor o que poderia estar lhe esperando no final que tanto aguardara. Foram vinte e um corpos, adolescentes, invariavelmente molestados de todas as maneiras que o legista pode registrar. Não se tratava só de abuso e humilhação sexual, mas de um desafio a racionalidade. Durante a subida que não queria terminar, lembrou-se do seu primeiro dia como policial na delegacia vagabunda de periferia, fedendo a urina e suor de malandro. Chegara na mesma hora uma viatura com uma prostituta com uma barriga de uns seis meses e espancaram a desgraçada quando ela teve um ataque histérico para sair do camburão. Alguém pisava na cabeça dela e dava para ver o nariz sangrar e a sujeira da sola dos sapatos lustrarem os esfolões, mas ninguém se contentava só com isso. Aquele bando de filho da puta, era tudo filho da puta mesmo, inclusive ele. Mas fazia tempo demais e já estava anestesiado até chegar o maldito caso e o chocar mais uma vez. Teve o doido da machadinha, os caras do atentado na prefeitura, um monte de escroto doido, travesti com navalha, drogado, teve de tudo passando na frente dele. Era a vida de choques e aquele último caso parecia uma renovação para o tesão esquecido. Depois se aposentaria e voltaria para a família, recordando-se da mulher e dos filhos acidentalmente, das perdas e omissões que fez questão de preencher na carreira de inconformismo. Que família que nada, estava tudo criado, a mulher velha e sem graça assistindo novela com o vidro de esmalte no colo para ir a lugar nenhum e os filhos se virando, até o mais novo já tinha carteira de motorista. Ele não sabia o que viria depois, e nem ligava, poderia ser com qualquer um. Suava. Realmente estava muito, muito quente; e finalmente chegava no andar onde as resoluções se estenderiam a seus pés. Era o seu nirvana de incompetente latente e suburbano.
E ele não parava de lembrar das imagens.

* * *

A culpa não era dele. Todo mundo tinha uma parte a cuidar naquela trama, mas ninguém soube seguir sua própria vida e deu naquilo. Agora era tarde porque nunca houve tempo para sorrisos idiotas e filosofias de bem-querer. Era só dor, ódio, rancor e desprezo porque o seu coração, o coração de todo mundo, já era.
Não sentia as pernas e tinha a impressão de que sangrava na altura dos quadris, nas costas. Algo o atingira violentamente, perfurante. Da onde estava, se fingindo de morto, dava para ver o outro e a nissei do filme estirados no chão, apagados. Ele ainda tinha o revólver escondido dentro do paletó mas temia terminar ali mesmo. Deu tudo errado, sempre dava tudo errado, não era para menos. O envolvimento de curto prazo do que era para ser uma sociedade perfeita e lucrativa resultara em um circulo passional completamente doentio. De repente, viu-a entrando na sala, escorando-se pelas paredes, com uma expressão horrorosa de dor e agonia, segurando a faca. A nissei se retorcia no chão, bem devagar, e tentara um grito mal sucedido a alguns instantes. Tinha uma bala no rosto e outra no ombro que estragaram sua beleza plástica, mas vivia. Era uma atriz razoável, para aquele tipo de filmes estava perfeita, sexo selvagem. O mercado aceitava maravilhas, era uma pena; a mais baixa categoria em pornografia, distribuição exclusiva da Yakuza e máfias internacionais. Falavam em dólares e cocaína fina, nada de moeda nacional ou aquelas merdas misturadas que favelado coloca para dentro.
Ele se envolvera no grande mercado havia algum tempo, desde que abandonara a faculdade de contabilidade. O aliciamento de menores era só uma alternativa que se demonstrou sem graça bem rápido e no fundo ele sempre odiou números. Era novo, vivia de pau duro e idéias esquisitas, classe média bem feijão com arroz mesmo e queria mais que aquilo. Nunca mais deu notícia em casa, Deus me livre, interior é lugar para conformado, não eu. Uma ou outra trepada eventual antes das filmagens, alguns baseados e bebida vagabunda e estavam prontos para ganhar o submundo da periferia, nos piores cinemas ou teatros pornô da cidade. Mas a coisa foi descendo de nível, foi preso duas vezes, era uma espécie de estuprador disfarçado. Estava a beira do abismo quando conheceu a nissei; ela era perfeita, o seu protótipo de paixão eterna e o sonho de consumo para suas perversões. Não foi difícil se envolver e com pouco tempo, conheceram pessoas interessantes e dispostas a patrocinar a sujeira. Com a ajuda apropriada, começaram o festival de abuso humano e finalmente começou a tirar o pé da lama. Dizia sempre para ela, estou livre, estou livre, mas quando cheirava demais começa a chorar e pedia colo. Não tinha mais uma veia sadia no braço, a merda das drogas pesadas era essa. E ela também precisou de uma cirurgia plástica para reconstruir o septo do nariz porque o pó tinha comido tudo(que ele pagou numa boa), e ainda assim continuou bonita e gostosa. Gostosa chique, daquelas que fuma cigarro de canela e bebe liquor caro sem borrar o batom dos lábios. Boca carnuda, coisa de louco, nunca tinha visto japa com uma boca carnuda.
Isso é Deus, ela dizia para ele, no ouvido, durante as preparações de cada filmagem. Faziam um longa em pouco mais de duas semanas, só dependiam dos seqüestrados e das burocracias para se livrar do corpo depois.
Então, a garota da faca finalmente se aproximava deles, cega e furiosa.

* * *

Havia sido muito difícil durante todo aquele tempo. Ninguém se habituava rápido a tal estilo de vida, muito menos ela. Era mimada demais e se envolvera de uma maneira comprometedora. Daquela vez seria diferente, decidira não abortar.
Tudo começou no supermercado, lembrava novamente enquanto entrava na sala com a faca na mão. Colocou a ponta do pé descalço em cima do pescoço de alguém que parecia ser a nissei; cabelos longos, lisos e sedosos. Foi seqüestrada para valer enquanto fazia as compras de quarta-feira sozinha. Era deficiente física mas, porra, ela sabia se virar. Jogaram-na dentro de um carro, levaram para algum lugar que cheirava a perfume doce, pânico, desespero. Eram as trevas da sua vida se tornando pavor; foi invariavelmente violada e humilhada, é claro, mas os planos deles em relação a si mudaram e foi polpada. Antes de você teve mais quatro, menina, eles diziam. Estão todas mortas, enterradas por aí, mas a gente não vai te matar porque você é limpeza, é uma das nossas. E entrou para a indústria cinematográfica dos sumiços, abusos, câmeras e óbitos. Queria poder assistir os filmes que participara mas só escutava os gritos; descreviam as cenas para ela, mas isso não saciava o seu desejo de simplesmente ver. Mudou de vida, provavelmente já havia sido dada como morta pelos familiares; na merda de país, com um dia de sumiço, um desaparecido provavelmente já foi estuprado, esfolado e picado em mil pedaços. O jogo havia se invertido para ela. Rapto, luz, câmera, sexo. Morte, cova e mais um corpo encontrado.
Foram seis ou sete abortos, citotec e cirurgia. Disseram para ela que sua vagina estava ficando mais larga por causa daquilo e achou legal mesmo que fosse brincadeira; colocavam um negócio enorme no útero que chupava o feto despedaçando-o parte por parte até limpar a casa para o próximo. Sabia disso porque lhe explicaram uma vez e passou quase um mês na base do tranqüilizante chorando pelos seus ovários. Mas continuava a nova vida pensando todo dia sobre aquelas mudanças adoráveis e radicais na sua rotina e no comportamento alterado em função da nova personalidade que brotava. Ela simplesmente se entregara para o outro lado, ignorando família, valores morais e toda a merda verborrágica de que estava presa a alguma coisa. Não ligava para nada. Era ela, ele e a nissei, além dos outros que cuidavam da parte mais burocrática e quase nunca apareciam. Sentiu-se bem naquela vida até onde pode. Tirou o pé lambuzado de sangue do pescoço dela, abaixou-se e tateou o rosto, mas só sentiu pedaços de pele e carne fatiados pelo tiro que a acertara bem no meio da cara. Onde existia um nariz, entrava e saía um ar fraco, forçado, demonstrando sinais claros de uma respiração gradualmente morrendo. Continuou tateando, com a faca em uma das mãos, até encontrar os outros corpos. Isso era fácil, conhecia toda a arquitetura do apartamento como ninguém.
Nada poderia prendê-la a nada.

* * *

A primeira coisa que viu quando entrou no apartamento foi a nissei. Ela estava enrolada numa toalha pequena e estampada, provavelmente nua e de ressaca; viera abrir a porta apática do que poderia acontecer e de quem tocara a campainha. Essa foi a parte fácil, graças a Deus. O coração dele batia tão rápido que doía.
Ergueu o 38 para ela, senta no sofá, vagabunda. Polícia, você e seus amigos estão presos. Ela não pareceu entender direito, começou a rir, desgraçada. Tentou manter uma distância razoável dela mas estava difícil se concentrar. O suor não parava, era um calor infernal ali dentro, mesmo que conseguisse sentir a brisa artificial do ar condicional central.
Ela tirou a toalha, jogou no chão e realmente estava nua, tinha uma tatuagem perto da genital e ficou dançando na frente dele. A dor de cabeça apertava na nuca, o braço direito parecia querer adormecer enquanto segurava a arma. Tinha barulho de gente nos outros cômodos do lugar, talvez só mais um, não sabia quantos.
Senta, sua vagabunda, você está pensando o que, eu meto uma bala na sua cara. Ela parou finalmente para escutá-lo, mas não entendia. Que diabos ela tinha tomado para não entender nada? Os dedos dele apertavam a arma com força suficiente para tentar anular o formigamento do braço. O peito doía, parecia que tentavam esmagar seu coração.
Ela chegou perto demais dele enquanto se preocupava com suas dores de enfarto. Colocou o cano do revólver na boca e simulou sexo oral, prostituta. Deveria ter atirado, mas não o fez; os dentes começaram a travar, todo o ar do mundo parecia pouco para seus pulmões. Pelo amor de Deus, eu não vou morrer agora, eu não posso morrer agora na frente dessa cadela pirada. Pior que quase ficou excitado com aquilo, coisa de profissional mesmo. Puxou o cano do hálito dela, que pareceu decepcionada com o objeto de metal, e empurrou-a para o maldito sofá.
Um homem apareceu no corredor e ele passou a mira para seu novo alvo. Vem para cá, seu desgraçado, senta ao lado dela. Era um cara arrumado, paletó novinho da cor de pérola, colocou as mãos para cima e veio caminhando devagar, com uma expressão sacana no rosto. Era um daqueles exploradores sexuais com menos de trinta que achava que podia comprar tudo. Se não estivesse com o coração parando, ia querer encará-lo no braço, saciar o ego. O figurão chegou e se sentou.
Seus malditos desgraçados, filhos da puta. Vocês vão para a cadeia.
O homem sorriu; a nissei parecia em transe.
Tem mais gente aqui? Fala! O coração dele ainda apertava. O homem balançou a cabeça fazendo não. Mas ele tinha que ir olhar, e estava sozinho. Deveria ter policiais com ele, mas não: era um quase velhote passando mal e com dor nas juntas, suando feito porco no abate.
Foi então que a nissei colocou a mão dentro do paletó do homem. Na mesma hora, ficou com o 38 apontado na sua cara. Tira a mão devagar, puta. Devagar se não eu atiro. Quando ela puxou o braço bruscamente, ele realmente atirou. Sujou a roupa de todo mundo com sangue, sangue amarelo. O homem com o paletó claro emplastado com pedaços dela não acreditou quando a viu caindo no chão em gritos desesperados; levou outro tiro, no ombro, e calou a boca de encontro ao tapete. Respirava difícil. Quer levar bala também? Filho da puta, coloca a arma no sofá, com a outra mão. Se me enganar vai para o inferno junto com a puta. Vocês seqüestraram e mataram toda aquela gente, enganaram a polícia toda mas não me enganam mais. Vocês estão ferrados. Ferrados.
A hora era aquela. O coração parou e a dor foi insuportável. Sentia os braços e o pescoço formigarem, junto com o aperto horrível no peito. Cambaleou para trás, se apoiando no bar, enxergando tudo errado. Quando tentou atirar na imagem embaçada que se levantava do sofá, percebeu outra imagem entrando na sala, provavelmente outra garota. Mas ele não tinha forças para raciocínios. Não tinha força para mais nada, absolutamente nada.
Tombou.

* * *

Ele viu a cega tatear o corpo do policial com o pé e constatar que estava morto. Pouco a pouco ela chegava perto dele; sabia onde tinha caído porque havia o acertado com aquela faca. Ele lembrara. Ela entrara na sala, manobrara toda a situação como mais uma vítima, meteu o aço nas costas dele e estava voltando para acabar o serviço. Cega desgraçada, ingrata. Era daquele jeito que pagava todo aquele tempo de carinho? Estava com eles porque queria. Participava dos sequestros, das filmagens por vontade própria. Até sugeria aonde deveriam colocar os corpos, para fazer um joguinho com a polícia: um serial killer ou sei lá o que, estava na moda. Tinham uma cobertura enorme dos patrocinadores, tinham dinheiro. Tudo foi por água abaixo.
Quando ela foi chegando perto, ele já tocava no cabo da arma de dentro do paletó. Vadia. Ia ser um tiro bem na buceta dela, para não esquecer a traição. Por mais desajustado e monstros que fossem, trair ainda era o pior de todos os crimes, e ele chegou a amá-la como amava a nissei. É claro que não era só sexo. Quando fodiam, era bom, mas também se adoravam. Vadia, desgraçada.
Ela tateou as pernas dele com o pé. Estava longe para o tiro; tateou uma vez, duas. Afastou-se bruscamente, antes que ele atirasse, mas foi tarde demais e um projétil atingiu o teto da sala. Errou uma cega, como pode isso? Uma infeliz de uma cega. Disparou mais duas vezes, mas ela já havia se escondido no bar. A essa altura da festa, a nissei estava morta. Ele era um homem forte contra uma garota que não enxergava nada, perder para ela era quase uma ofensa.
Foi se arrastando com dificuldade, tentando vê-la por trás do balcão. Ficava um rastro de sangue horrível no tapete, mas já estava tudo sujo, o paletó pérola já era, quinhentos paus encharcados de sangue e excremento. Ouviu sirenes vindo da rua, bem distantes. O policial idiota tinha deixado recado.
Eu estou grávida, seu bosta, ela gritava enfurecida do outro lado do bar. Não vou morrer nas mãos de vocês, dessa vez eu quero esse filho e vou ferrar com todo mundo.
Vagabunda, não vai sair daqui, ele a via encolhida ali atrás, finalmente. Tentou disparar mas antes que o fizesse ela já havia saltado da onde estava; a infeliz parecia que enxergava mais do que ele. Tinha muito dor; com os movimentos que fizera para achá-la, a quantidade de sangue perdido começava a afetá-lo. Ele não era matador de improviso, tinha que ter tempo para pensar, armar as jogadas, era um homem de jogadas. Não podia morrer novo daquele jeito, humilhado.
Estava desprotegido. A arma seria útil se ele estivesse sem ferimentos; ela chegou fácil até ele e gravou a faca no abdome, no tórax, no abdome de novo, no pescoço, instintivamente e sem errar. Mais sangue. Ainda disparou três vezes para o teto, filha da puta, não levou um tiro sequer. Uma cega, ilesa contra o amor de sua vida armado. Abriu a barriga dele feito vaca em açougue, com entranhas saltando para cima do paletó. Quinhentos reais, putaquepariu, desgraçada, eu te amava e você rasga minhas tripas por nada, por nada.
Não havia mais o que se dizer a seu respeito.

* * *

Ela caminhava tranqüilamente pelo supermercado, sem maiores preocupações. Não via nada mas já se acostumara com o lugar, podia se virar sozinha quando queria apenas com o auxílio da uma bengala. Sabia até onde ficava a prateleira dos doces e das bebidas, ágil como um bicho do mato à noite. É claro que nada mudara aquilo. Nunca pensava a respeito do que a esperava no futuro nem do que fizera no passado, mas se empenhava apenas no presente. Nem assim se prendia a ele, talvez por medo ou talvez por instinto de sobrevivência. Era um mundo às escuras que parecia passar indiferente a sua frente; nenhuma situação a atrairia. Os sons eram as imagens suficientes para que descobrisse o caminho do céu, se é que acreditava nas baboseiras da boa formação católica, aprendida a rezar direitinho e a agradecer a falta de olhos para não ver as desgraças do mundo violento, caótico, cruel, terrível, mesquinho e pornograficamente ingênuo. Claro que ela enxergava muito além disso, pois não ligava para nada, mesmo que amasse. É a prateleira dos eletrodomésticos, ela sabia onde estava.
Isso era tudo, porque tudo mais já ruíra, ou viria a ruir.
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