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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->NHÔ QUITÉRIO -- 04/12/2008 - 00:15 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nhô Quitério

Numa quente madrugada de março de 1795, às margens do
Rio Guarapiranga, Freguesia de Santo Amaro, na rudimentar
senzala da fazenda do português Henrique Joaquim Pereira,
cujas terras eram cultivadas por escravos negros e alguns
indígenas das antigas aldeias tupi-guaranis, nascia mais um
escravo gerado por outro escravo reprodutor.
Seu Joaquim, como era conhecido o fazendeiro, só teve
uma preocupação – saber se o recém-nascido era menino ou
menina. Com muita prática, escreveu num velho livro de
anotações o crédito de mais uma mão-de-obra gratuita para
as suas lidas. E, sem pensar muito, deu ao bebê o nome de
Quitério da Paixão, pois a Semana Santa se aproximava.
Anotou também o nome da mãe: Thereza.
Enquanto escrevia, lembrava que a sua filha, nascida
em dezembro de 1794, Maria Adelaide, ainda não havia sido
batizada. Mas logo depois das funções da quaresma um padre
apareceria por lá e, durante uma festança muito bem
organizada, Adelaidinha, como era carinhosamente chamada
por todos da casa-grande, receberia, finalmente, as bênçãos
do batismo.
A prática de tratar seres humanos como se fossem
mercadorias já era de família. Seu avô paterno, o velho e
temível Mário Gatão Pereira, tinha seguido algumas bandeiras
pelo interior de São Paulo e, durante essas incursões, havia se
tornado mercador de negros e gentios.
Tudo começou há quase cinco séculos.
Não mais de trinta anos haviam se passado do
descobrimento do Brasil, quando aventureiros, comerciantes,
soldados degredados e índios se aventuraram para o interior,
vencendo uma serra inóspita. Partiam de São Vicente e

Itanhaém, em busca das fabulosas riquezas que, comentavase,
existia naquele sertão. Procuravam também outros indígenas
que serviriam de mão-de-obra escrava.
Com eles seguiam os jesuítas com a missão de participar
e catequizar os donos da terra – uma nação inteira de aborígines
pagãos.
Após a fundação e a instalação dos jesuítas no povoado
de São Paulo de Piratininga, em 1554, o Provincial da
Companhia de Jesus da Capitania de São Vicente, padre
Manoel de Nóbrega, distribuiu diversos religiosos pelas
periferias da vila. Alguns padres foram para a Aldeia de
Jeribatiba, hoje Santo Amaro, onde outros jesuítas, vindos nas
primeiras expedições, dedicavam-se a educar e catequizar
índios e mamelucos.
Após diversas estadas em Jeribatiba, observando a
quantidade razoável de índios catequizados e de colonos
instalados na região, o padre José de Anchieta propôs constituir
ali um povoado. Sua idéia foi aprovada pelos moradores e seus
superiores. Construiu-se, então, com taipa de pilão sem forro,
uma capela na região do Cupecê, onde moravam João Paes e
sua mulher Suzana Rodrigues, doadores da imagem de Santo
Amaro. Em 1686 a aldeia foi transformada em Freguesia.
Em 1832, Santo Amaro torna-se município e se desliga
de São Paulo. Extenso, este município abrangia todo o
território ao sul do antigo córrego da Traição, hoje canalizado
sob a Avenida dos Bandeirantes, e se estendia a leste até os
cumes da Serra do Mar.
Sua formação geográfica incluía as áreas correspondentes
aos municípios de Itapecerica da Serra, Embu, Embu-
Guaçu, Taboão da Serra, São Lourenço da Serra e Juquitiba.

A maior atividade da região de Santo Amaro era a
criação de gado e de outros animais destinados ao abate.
O primeiro matadouro de São Paulo, construído em
1852, situava-se nas cabeceiras do córrego Anhangabaú, ao
lado do Itororó, atualmente início da Avenida 23 de Maio,
próximo da Rua Humaitá.
A poluição, que matava até os peixes do Rio Tamanduateí,
levou à necessidade de outro matadouro, erguido lá
pros lados da Vila Mariana. Inaugurado em 1885, às margens
do córrego do Sapateiro, situa-se hoje no Largo Senador Raul
Cardoso, Vila Clementino. Tombado pelo Patrimônio Histórico,
tornou-se sede da Cinemateca Nacional em São Paulo.
No final de 1953, meus pais compraram a casa de
número 30 do Largo Senador Raul Cardoso, antigo Largo do
Matadouro, onde moraram durante quase cinqüenta anos.
Depois da morte deles, a propriedade foi vendida, em 2003.
A inauguração, em 1886, da estrada de ferro de São
Paulo a Santo Amaro, a Companhia de Carris de Ferro de São
Paulo a Santo Amaro, contou com a presença do Imperador
Dom Pedro II. A antiga linha começava nas proximidades do
cemitério dos Aflitos e seguia para as aturais ruas e avenidas
Liberdade, Vergueiro, Domingos de Morais, Jabaquara,
passando atrás do local onde, mais tarde, seria construído o
Aeroporto de Congonhas. De lá prosseguia até Santo Amaro.
Nos dois primeiros anos de operação, a tração dos
vagões de carga e de passageiros era feita por animais. As
locomotivas a vapor chegaram mais tarde, da Inglaterra.
Essa tramway de bitola estreita, com cerca de vinte
quilômetros, foi quem levou definitivamente o progresso para
a zona sul do município de São Paulo. Foi construída em duas

etapas: a primeira, da Liberdade até Vila Mariana, e a
segunda, da Vila Mariana a Santo Amaro.
Na altura da atual Rua Sena Madureira começava o
ramal da ferrovia, que seguia para o Matadouro.
Em 1913, a linha férrea foi desativada e substituída,
em parte, por uma linha de bondes elétricos, que na Rua
Domingos de Morais desviava para a Avenida Conselheiro
Rodrigues Alves, até a esquina onde está, hoje, o Instituto
Biológico. De lá, seguia em linha reta até as margens da represa
de Guarapiranga, passando por Moema, Indianópolis,
Brooklin, Campo Belo, Alto da Boa Vista, dando origem à
Avenida Ibirapuera, seguida da Vereador José Diniz.
Além da antiga estrada de ferro que ligava São Paulo
a Santo Amaro, a cidade teve mais duas estradas semelhantes,
o Tramway do Ypiranga, de 1892 a 1903, e o famoso e inesquecível
Tramway da Cantareira, o Trem da Cantareira, tema
de prosa e verso, que funcionou de 1894 a 1964.
A Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro foi
inaugurada em 1899. E em 1924 foi aberta ao público a matriz
de Santo Amaro, atual catedral, pois em maio de 1989 o Papa
João Paulo II criou a Diocese de Santo Amaro, desmembrando
da região a Arquidiocese de São Paulo.
Um dos fatores mais relevantes para a extinção do
município de Santo Amaro, em 1934, incorporando-o a São
Paulo, foi a construção do Aeroporto de Congonhas, iniciada
em 1936.
No final do primeiro Império, depois do falecimento da
Imperatriz Leopoldina, o casamento de Dom Pedro I com dona
Amélia de Leuchtbenberg, princesa da Bavária e filha dos reis
da Baviera, incentivou a vinda do primeiro grupo de colonos

alemães. O número de seus descendentes ainda é grande,
principalmente no bairro do Alto da Boa Vista, que mantém
as características desse povo.
No início do século XX, a Light and Power Company,
empresa canadense responsável pelo fornecimento de energia
elétrica e de transportes na cidade, inundou uma vasta área
da região de Santo Amaro, que alcançava as divisas entre
Itapecerica da Serra e Embu-Guaçu, dando origem à Represa
Velha de Santo Amaro, depois, Guarapiranga, que em tupiguarani
significa garça vermelha.
Esta obra gigantesca utilizou o Rio Guarapiranga e
seus afluentes para formar a sua barragem porque o crescimento
industrial e residencial de São Paulo demandava muita
energia elétrica. Na época previa-se que, durante alguns meses
por ano, principalmente nos de estiagem, a vazão do Rio Tietê
seria insuficiente para manter, a plena carga, a geração de
eletricidade nas usinas de Santana do Parnaíba.
A barragem e o reservatório passaram a ter grande
importância para a região. No final dos anos 20, quando a cidade
começou a crescer de fato, a represa tornou-se a principal
fonte de abastecimento público de água.
A represa de Guarapiranga foi palco de diversos fatos
históricos, significativos para os brasileiros. Em 1928, os
aviadores italianos Francesco de Pinedo, Carlos Del Prete e
Vitalle Zecchetti, pioneiros na travessia do Atlântico Sul a
bordo do hidroavião S-55 Santa Maria, desceram na represa
sob os aplausos de centenas de populares.
Logo depois foi a vez do piloto brasileiro João Ribeiro
de Barros, a bordo do seu hidroavião Jahú, que hoje serve de
alimento para os cupins no Museu da Aeronáutica, ao lado

do 14-Bis, Demoiselle de Santos Dumont, e de outros
aeroplanos antigos, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Outros pilotos pioneiros que passaram pela represa
foram os portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
Em homenagem aos aviadores italianos, ergueu-se um
monumento na Avenida De Pinedo, na Capela do Socorro.
Embutida no pedestal da estátua há uma legítima coluna
coríntia romana, de mais de dois mil anos, presente do então
presidente italiano Benito Mussolini aos heróis da travessia.
Rotulado de fascista, pois um de seus relevos é o fáscio, feixe
de varas dos antigos lictores romanos, o monumento gerou
muita polêmica durante a última gestão de Jânio Quadros na
prefeitura de São Paulo. No local existe hoje apenas uma placa
comemorativa. A peça em si foi retirada e atualmente é mais
um dos inúmeros monumentos à mercê da ignorância pública,
esquecido na Praça Adolfo Bloch, nas confluências da Avenida
Brasil com a Rua Colômbia, no Jardim América.
A represa de Guarapiranga trouxe lazer não só para
os moradores da região, mas também para visitantes de outros
bairros de São Paulo. A partir da Avenida Conselheiro
Rodrigues Alves, na esquina do Instituto Biológico, a
linha corria como se fosse de trem. E o “amarelão”, como era
chamado o bonde amarelo da Light, ia e vinha, apitando
para espantar o gado que andava sobre os trilhos. O bonde
atravessava o Rio Pinheiros, passando sobre uma ponte
de madeira sem passagem para pedestres. Assim trafegava
até as margens da represa, levando, principalmente nos
finais de semana, famílias e amigos para os tradicionais
piqueniques.

Durante a década de 30, inúmeros clubes náuticos e
marinas estabeleceram-se na represa, culminando na criação
da Federação de Vela do Estado de São Paulo.
O mais famoso balneário da represa era o Interlagos,
construído em 1940, no qual havia cabines de madeira para
os banhistas, quiosques, balanças e gangorras. Tudo era muito
bem organizado, diferente do abandono atual. Para ornamentar
as suas praias, areia branca foi trazida de Santos.
Também na região de Santo Amaro localiza-se o
Autódromo de Interlagos, inaugurado em 1940.
Mas vamos voltar à pacata Santo Amaro de 1795.
Desde épocas remotas, os indígenas que habitavam as
planícies da futura cidade de São Paulo usavam os cursos dos
rios Anhemby, atual Tietê, Emboaçava, hoje Pinheiros, e
Tamanduateí, para o transporte de mercadorias.
Além de criar gado leiteiro e de corte, seu Joaquim cultivava
feijão, mandioca, milho e cana-de-açúcar para garapa e
forragem. Também tinha uma olaria e um bom pomar, com
diversas árvores frutíferas. Bananeiras, laranjeiras, limoeiros,
pitangueiras, amoreiras e goiabeiras garantiam o sustento da
família e dos escravos, somados à venda de gado e leite.
Não faltavam também bons peixes pescados nos rios
que atravessavam a fazenda e região.
Possuía algumas parelhas de jumentos, bois, cavalos e
mulas. Mas para vender os seus produtos preferia as vias
fluviais.
A cada mês seu Joaquim carregava um ou dois carros
de bois com mercadorias e, como numa aventura, partia para
vendê-las ao povo ribeirinho até chegar ao Porto Geral, o
grande comércio de São Paulo. Na ida, vendia algumas frutas,

queijos, farinha de milho e de mandioca, além de doces feitos
na fazenda. Aproveitava para anotar os pedidos que entregaria
na volta, como remédios, azeites, velas, óleo para lamparinas,
roupas e aviamentos, ferramentas, alimentos e bebidas,
mercadorias vindas da Europa e outros produtos que eram
comercializados apenas na cidade.
Para tomar conta das mercadorias e também zelar por
sua segurança, levava sempre escravos fortes, que também
remavam do Rio Pinheiros até o Porto Geral, às margens do
Tamanduateí, na parte baixa da cidade, perto da Igreja dos
Jesuítas e do Mosteiro de São Bento.
O carro de boi servia apenas para levá-los até um
pequeno atracadouro no Rio Pinheiros, onde seu Joaquim
dispunha de três barcas, estreitas e compridas, para navegar
pelo apertado canal do Tamanduateí.
Antes de ser urbanizada, a região da Rua 25 de Março
e do Porto Geral constituía o leito sinuoso do Tamanduateí,
então navegável, que aí recebia as águas do Anhangabaú. Com
muitas curvas, o Rio Tamanduateí era extremamente
importante, nessa época. Mas deixou de ser navegável e
perdeu a sua relevância quando o seu leito foi retificado, em
1916. O porto era utilizado para descarregar as mercadorias
vindas do Porto de Santos e das Freguesias de São Bernardo,
Santo André e Ipiranga, e também das que margeavam o Tietê,
lá pelas bandas da zona norte da cidade.
Esse porto, conhecido como Geral, batizou a atual
Ladeira Porto Geral, outrora localizada na sétima e última
curva do rio.
A Rua 25 de Março foi assim chamada por volta de
1865, em homenagem à primeira Constituição brasileira,

promulgada pelo imperador Dom Pedro I em 25 de março de
1824. Antes era conhecida como Rua das Sete Voltas, devido
às curvas do rio. Depois passou a se chamar Rua do Baixo,
ou Baixa do São Bento, por causa da sua localização, “abaixo”
do antigo Mosteiro de São Bento.
O primeiro Mosteiro de São Bento foi fundado em julho
de 1598 pelo monge beneditino frei Simão Luiz, paulista da
Capitania de São Vicente e discípulo do padre José de
Anchieta.
A Câmara da Vila de São Paulo autorizou a construção
do mosteiro, mas determinou que a obra fosse erguida no
terreno que abrangia o Vale do Anhangabaú, nos arredores
do Porto Geral, nas terras altas da antiga taba do cacique
Tibiriçá, chefe da nação Guaianaz, aliada dos jesuítas. Tibiriçá
foi convertido e batizado pelos padres José de Anchieta e
Leonardo Nunes, e escolheu o nome de Martim Afonso, em
homenagem ao amigo Martim Afonso de Souza.
Bartira, batizada Isabel, filha de Tibiriçá e casada com
o aventureiro português João Ramalho, e Terebé, mulher de
outro aventureiro português, Pedro Dias, que adotou o nome de
Maria da Grã, em homenagem ao padre Luiz de Grã, contribuíram
enormemente para o desenvolvimento da colonização paulista
e da Capitania de São Vicente. No dia 10 de junho de 1562,
a pequena Vila de São Paulo foi atacada pelos índios tupis e
carijós, comandados por Arari, irmão de Tibiriçá. Os invasores
foram derrotados graças à ação de Tibiriçá e dos jesuítas.
Terebé morava nas matas do Ibirapuera, região da
futura Santo Amaro. Mãe de seis filhos, alguns deles tornaramse
ilustres santamarenses: Borba Gato, os padres Belchior e
João de Pontes.

Outra personalidade ilustre de Santo Amaro foi Paulo
Francisco Emilio de Salles, nascido em abril de 1836, também
conhecido como Paulo Eiró. Seu pai Francisco Antonio das
Chagas, foi o primeiro presidente da Comarca. Internado no
Hospício dos Alienados, em São Paulo, em maio de 1866, o
controvertido poeta Paulo Eiró definhou durante cinco anos
entre crises de demências e lucidez. Faleceu em junho de 1871,
de meningite, aos 36 anos de idade.
Tibiriçá morreu bem velhinho, no Natal de 1562. O indígena
Martim Afonso deixara de existir! No final da tarde seu
corpo foi levado para o Colégio de São Paulo para ser sepultado.
Seus restos mortais jazem na cripta da catedral da Sé.
Cinqüenta anos depois o mosteiro foi reformado e
ampliado pelo bandeirante Fernão Dias Paes Leme. A atual
construção teve início em 1910, segundo o projeto inspirado
nas tradições ecléticas germânicas do arquiteto Richard Berni,
de Munique, Alemanha.
As missas e as vésperas no mosteiro são marcadas pelo
tradicional canto gregoriano entoados pelos monges ao som
de um órgão que contém quatro teclados manuais, pedaleira
e 77 registros reais. É considerado um dos principais órgãos
de grande porte no Brasil.
Em sua nave principal estão enterrados Fernão Dias
Paes Leme e sua mulher, dona Maria da Graça Betim.
Desde essa época os sírio-libaneses, chamados de “turcos”,
dominavam as importações e as revendas das mercadorias
na área da Rua 25 de Março.
O local foi se tornando um centro do comércio
atacadista de todos os gêneros.
O primeiro mercado de madeira, construído rustica61
mente entre 1859 e 1867, na várzea do Tamanduateí, ficava no
final da atual Ladeira General Carneiro com a Rua 25 de
Março. Demolido em 1907, deu lugar a outro mercado – o chamado
Mercado Novo – também destruído poucos anos depois.
O novo traçado do Tamanduateí e as drenagens,
principalmente da Várzea do Glicério, resultaram na abertura
e pavimentação de novas ruas. Sem os mercados, o local voltou
a ser um entreposto de produtos ao ar livre.
No entanto, tornava-se absolutamente necessário
construir um novo mercado nas imediações.
Em abril de 1925, a Prefeitura Municipal de São Paulo
iniciou as obras do novo mercado, concluídas em 1932. Porém,
a inauguração foi adiada devido à Revolução Constitucionalista
de 1932, que usou o local como depósito de munição.
Em 25 de janeiro de 1933, aniversário da cidade de São
Paulo, inaugurou-se o mercado municipal, também conhecido
como Mercado da Cantareira, na Rua da Cantareira, paralela
à Rua 25 de Março.
A escolha deste local foi estudada de modo estratégico
– próximo à rede ferroviária e à estação do Pari com seus
pátios ferroviários, conectadas às linhas de bondes, e situado
no eixo que liga a zona norte ao ABC e a Santos. Infelizmente,
ao contrário das cidades de Paris, com o Rio Sena, de Londres,
com o Tamisa, de Nova York, com o Hudson, ativamente
utilizados para o transporte de mercadorias, e cujos custos
constituem uma fração do rodoferroviário,
Os rios paulistanos foram totalmente alijados desse
propósito.
Quem assinou o projeto da grandiosa obra em estilo
neoclássico foi o arquiteto Felisberto Ranzini, do escritório de

arquitetura e engenharia Ramos de Azevedo. Os 12.600 m²
de área construída ocupam um quarteirão e suas atrações
especiais, além das mercadorias, são as colunatas, com mais
de dez metros de pé direito, e os 55 vitrais alemães em estilo
gótico. Essa construção foi planejada para abrigar os
comerciantes da região. Surgiram outros, que se beneficiaram
da estrutura do comércio convencional, seguindo depois com
a formação das bolsas de mercadorias.
Muito elegante, o Mercadão foi considerado majestoso
demais para as suas finalidades, na época de sua inauguração.
Devido aos seus bares e restaurantes, logo ficou conhecido
também como templo da gastronomia.
Instalado à margem esquerda do Tamanduateí, na área
do Parque Dom Pedro II, hoje parcialmente extinto, até 1966
o Mercadão trabalhava praticamente 24 horas por dia. Das
oito horas da noite em diante, quando cessava o trânsito
pesado da cidade, os principais quarteirões ao redor do
mercado, principalmente as avenidas Mercúrio e Senador
Queirós, eram interditadas ao trânsito e começava então uma
grande venda noturna de gêneros alimentícios que abasteciam
feirantes, restaurantes, entrepostos e outros pequenos estabelecimentos
comerciais da capital.
Bares, restaurantes, pensões, pequenas lojas, hotéis de
curta permanência e bordéis abriam as suas portas para as atividades
noturnas. Apontadores do jogo do bicho, camelôs,
prostitutas, mendigos, boêmios e batedores de carteiras misturavam-
se a centenas de trabalhadores. Esta faina terminava
às 5h00, quando o prédio do Mercado era aberto e o trânsito,
restabelecido
No verão de 1966, após vários dias de chuvas torren63
ciais e ininterruptas, a região do mercado sofreu a sua maior
inundação. Fechado por mais de uma semana, o Mercadão e os
estabelecimentos ao redor transferiram as suas atividades
comerciais, inclusive as noturnas, para a Vila Leopoldina.
Assim, o grande movimento de mercadorias feito na noite passou
para a Ceagesp – Companhia de Entrepostos e Armazéns
Gerais de São Paulo, conhecida também como Ceasa.
Desse modo terminou mais uma página romântica e
saudosista da história de São Paulo.
Hoje, todo reformado, o Mercadão é uma das atrações
da cidade de São Paulo – as pessoas fazem filas para comer
os famosos sanduíches de mortadela e os pastéis de bacalhau.
Por ora, deixaremos os sanduiches e pastéis para voltar
aos nossos personagens.
Um dos escravos que geralmente acompanhava seu
Joaquim era o Gustavo. Negro forte, com quase 1,80 m de
altura, dizia ser pai de Quitério.
Quando seguia para os matadouros, a boiada era
guiada por escravos boiadeiros, comandados pelo capataz
português, compadre de seu Joaquim, o temível capitão-demato
Victor Manoel.
Vez ou outra, alguns moleques da fazenda acompanhavam
o pessoal nas barcas para ajudar, se fosse necessário.
Com o tempo bom e correnteza favorável, essas viagens
duravam, em média, quinze dias, entre ida e volta.
Depois de descarregados dos carros de boi, os fardos
eram acomodados nas barcas. Seu Joaquim gostava de sair
sempre ao amanhecer. Dificilmente expunha suas mercadorias
em noites escuras, sem lua. Ele e seus escravos costumavam
viajar quando o céu estava limpo e na semana de lua cheia.

O primeiro trecho era feito sem grandes problemas.
Aproveitando a vazão do Rio Pinheiros, seus homens não
precisavam de grandes esforços para remar. A correnteza
encarregava-se da tarefa.
A primeira parada ocorria a quilômetros, rio abaixo,
nas proximidades do local onde o córrego da Traição deságua
no Rio Pinheiros.
Na época, muitos escravos foragidos agrupavam-se
naquelas paragens – um paraíso sem os grilhões da escravatura.
Havia rios piscosos, caça em abundância e tropeiros que
por lá passavam, ressabiados. Pois freqüentemente surgiam
bandos de negros fujões para saquear a comitiva. O lugar entre
os caravaneiros passou a se chamar Traição. Vem daí o nome
córrego da Traição.
Essa parada ficava, no máximo, a uma ou duas horas
rio abaixo. Depois continuavam a descer o rio até o encontro
com o Tietê.
Na Traição, a estada não era demorada. Os viajantes
tinham pressa, pois passariam a noite e boa parte da manhã
seguinte nas cercanias da Freguesia do Ó, um povoado maior
com comércio lucrativo. Além disso, Tietê acima os remadores
precisavam remar contra a correnteza.
A Freguesia do Ó, conhecida anteriormente como Sítio
do Jaraguá, foi fundada em 1580 pelo bandeirante e
proprietário de terras Manuel Preto, 26 anos depois da
fundação de São Paulo de Piratininga. Na época, aventureiros
e heróis começavam a partir para desbravar os nossos sertões
em busca de riquezas. O local foi escolhido para servir de base
para algumas das bandeiras que seguiam Tietê abaixo,

principalmente devido à proximidade do Morro do Jaraguá,
uma das primeiras reservas de ouro exploradas.
Em 1615 foi erguida a capela da Nossa Senhora da
Esperança, atual igreja matriz, nas terras de Manuel Preto.
Há muito folclore a respeito da designação Ó, dada à
Nossa Senhora, e que resultou no conhecido bairro Freguesia
do Ó. O mais plausível refere-se às novenas dedicada à Nossa
Senhora da Esperança, em que as antífonas do Breviário
Romano são iniciadas pela interjeição Ó, sete vezes.
No tempo de seu Joaquim, a Freguesia do Ó era uma
das poucas passagens obrigatórias para os viajantes que iriam
para Campinas, e daí sertão afora.
Por isso seu Joaquim e, muitas vezes, o capitão Manoel,
o capataz, ficavam longe da propriedade por mais de quinze
dias.
Nessas ocasiões, a fazenda ficava nas mãos de dona
Filomena, conhecida como Sinhá Mena, mulher do seu
Joaquim.
E assim o tempo foi passando.
Junho de 1812. Todo o povo do arraial ao redor da
fazenda do seu Joaquim estava ansioso pela tradicional festa
de São João, realizada na propriedade.
Quitério e Adelaidinha já tinham completado dezessete
anos. Parecida com a mãe, Adelaidinha era uma linda morena
de estatura média e profundos olhos verdes, a tentação da
rapaziada.
Quitério puxou ao pai. Alto e forte, com quase dois
metros de altura, era o preferido de seu Joaquim. Devido às
funções de sua mãe, Thereza, cozinheira e arrumadeira, ele
tinha acesso à casa-grande.

Na manhã do dia 23 de junho começaram chegar,
vindos de longe, os convidados.
O terreiro estava todo arrumado e decorado com bandeirinhas
de papéis multicoloridos.
O altar para o “casamento caipira” estava enfeitado
com flores campestres. O mastro com a bandeira do santo e a
prenda já estava erguido e lambuzado de sebo. Pilhas e pilhas
de lenha aguardavam para ser acesas. A grande fogueira teria
de arder até o amanhecer do dia 24.
Quase todas as comidas típicas já estavam prontas.
Carnes e lingüiças para o churrasco, farofas de diversos
sabores, batatas-doces e mandiocas para ser assadas,
amendoins torrados, paneladas de arroz, canjicas e pamonhas.
Além de rapaduras, paçocas, pés-de-moleque e montões de
milhos debulhados para virar pipoca. E muitos outros petiscos
doces e salgados.
A bebida tradicional era o quentão. Mas seu Joaquim
sempre reservava vinhos europeus para estas ocasiões. Refrescos
de café e de outros frutos também seriam servidos. Nunca
faltava o famoso suco de capilé, feito com xarope de avenca.
Os grupos que formariam a “quadrilha” já estavam
preparados e ensaiados. A noiva seria Adelaidinha, que se
casaria no meio da bagunça com o feitor, capitão Manoel. O
padre seria escolhido entres os presentes. Aquela véspera de
São João tinha tudo para ser inesquecível. E foi!
Quitério, em seus devaneios, nutria uma paixão secreta
por Adelaidinha. Porém, tinha consciência da realidade – um
romance impossível.
Era quase meia-noite e a festa estava no auge.
Sanfoneiros e violeiros animavam o arrasta-pé.

Todos participavam. Até escravos de lugares vizinhos
tinham vindo para a grande festa.
As solteiras, principalmente, preparavam-se para tirar
a sorte e fazer simpatias para se casar antes do próximo São
João. Os mais velhos dirigiam-se à beira do Guarapiranga,
onde seria lavada a imagem do santo. À meia-noite em ponto
se debruçariam sobre as águas do rio para ver as suas imagens
refletidas na água. Caso a imagem não aparecesse, eles não
veriam o próximo São João.
Cantos, rezas e preces seguiam a pequena imagem de
São João, entalhada em madeira, retirada do oratório da sala
de jantar da casa-grande para ser lavada.
Adelaidinha, com o seu vestido de noiva todo remendado,
como manda o figurino dessas festas, caminhava na frente,
levando a imagem para a beira do riacho. O noivo caminhava
ao seu lado e, atrás, uma multidão de brancos e pretos.
Adelaidinha precisava colocar os pés na água, abaixarse
e lavar a imagem, rezando ave-marias.
Embriagado e com uma idéia maluca na cabeça,
Quitério seguia de perto. Ele pretendia cair na água, ao lado
dela, e aproveitar a ocasião para abraçá-la, pelo menos uma
vez na vida. O máximo que poderia acontecer seria um castigo
bem aplicado. Umas cinqüenta chibatadas em suas costas nuas.
Assim que Adelaide se abaixou com a imagem nas duas
mãos, Quitério caiu em cima dela. Foi uma cena simplesmente
patética. O corpanzil de Quitério atracou-se ao da moça,
sufocando-a dentro da água. A imagem desapareceu no leito
do riacho. Apesar da escuridão, iluminada apenas com o luscofusco
de algumas velas, o capitão Manoel pulou na água e se
engalfinhou com Quitério.

Quase afogada, Adelaidinha foi socorrida por diversas
pessoas, enquanto os dois gigantes brigavam como titãs dentro
do riacho.
Num dado momento, Quitério conseguiu apertar o pescoço
do capataz com tanta força, que o fez desmaiar. Inerte e
submerso, o capitão Manoel morreu afogado, para espanto
de todos.
A notícia correu rapidamente.
Seu Joaquim mandou interromper a festa e reuniu os
mateiros para iniciar, naquele mesmo instante, a caça ao
escravo Quitério.
A vingança seria inclemente. Além de sua filha Maria
Adelaide ter ficado gravemente ferida, o capitão Manoel havia
deixado uma viúva com três filhos pequenos.
Porém, a perseguição a Quitério começou mal.
Em meio ao tumulto, a busca teve início pela senzala e
outras pequenas choupanas ocupadas pelos escravos.
Exímio conhecedor da região, Quitério escondeu-se nas
moitas mais altas. Ao escutar a frase “O capitão morreu!” não
teve dúvida, correu a toda velocidade, pelo curso do riacho,
até o porto onde as embarcações ficavam ancoradas, no Rio
Pinheiros.
Escolheu a menor e, como um louco, remou rio abaixo,
quase encostado à margem direita, região que conhecia
melhor.
Para a sua sorte, começou a surgir uma cerração. Mais
uns quinze minutos de remadas rápidas e ele já não conseguia
enxergar um palmo à sua frente. A névoa tinha coberto tudo.
Quitério navegava, por intuição e movido pelo desespero.

Quando ouviu os primeiros trilares, anunciando o
alvorecer, o negro agora fujão parou a barca à margem do rio.
Com esforço, tirou-a de dentro da água e a escondeu na mata.
Deitou-se na relva molhada de orvalho para descansar um
pouco. Sabia que não poderia dormir, pois deveria estar atento
a qualquer ruído. Principalmente de vozes e ladrar de cães.
Quando a cerração começou a dissipar, percebeu que
não estava muito longe da Traição. Lá contaria o caso para outros
escravos foragidos. Certamente eles o ajudariam a fugir.
Embora faminto, não se aventurou a procurar alimento
nem desceu o rio com a barca.
Caminhou, então, rumo ao povoado com todos os seus
instintos voltados aos movimentos do rio.
Não tinha andado nem um quarto de légua quando
ouviu os primeiros falatórios vindos do rio. Deitou-se entre as
ramagens, olhando cuidadosamente para o curso da água
quando avistou, na margem oposta do rio, a primeira grande
canoa de seu Joaquim. Nela estavam alguns feitores das
fazendas vizinhas, todos armados com velhos bacamartes e
longos facões. Logo em seguida, viu a segunda embarcação,
na qual, armado até os dentes, estava o furioso seu Joaquim.
Até o óculo-de-ver-ao-longe, comprado de um mercador lá no
Porto Geral, estava em suas mãos. Ao todo, cinco barcas
abarrotadas de perseguidores.
Quitério benzeu-se, rezando em nagô. Refeito do susto,
subiu numa quaresmeira para certificar-se de que não havia
mais barcos. Com o sol a pino, desceu da árvore e se dirigiu
até a beira do rio. Tirou a camisa de flanela vermelha, pois
chamava muito a atenção, arregaçou as calças até os joelhos
e nadou até o meio da correnteza. Boiando e nadando, começou

a descer o rio, evitando as matas. Naquele momento, todas as
fazendas e povoados da região de Santo Amaro já sabiam do
assassinato do capitão Manoel.
A água estava fria, mas, mesmo assim, Quitério mantinha-
se submerso até que avistou, em uma das entradas do
rio, diversas negras lavando roupas. Aproximou-se com
cuidado e, procurando não levantar suspeitas, perguntou se a
Vila da Traição estava longe.
— “Moiço, nóis num sê daqui”, respondeu uma
negrinha empertigada, olhando aquele homem seminu. Dando
um belo sorriso, indicou a direção onde estavam os homens
do grupo.
Quitério não andou nem dez minutos. Chegou em uma
clareira aberta na mata, onde deparou com mais de trinta
escravos, todos fugidos de seus proprietários. Um negro forte,
o comandante do pessoal, apresentou-se simplesmente como
Azulão. Depois de muitas explicações sobre o destino daquele
grupo, Quitério ficou sabendo que Azulão era um líder
quilombola, cuja função era levar grupos de escravos fugidos
para os pequenos quilombos no interior de São Paulo – aquele
pessoal estava indo para o devastado quilombo dos Campos
de Araraquara.
Quilombo, dialeto quimbundo angolano, significa
muro, paliçada ou aldeia murada.
Os quilombos eram originários de diversas regiões da
África, antes do início da escravidão. As tribos separavam-se,
fugindo das opressões e criando seus domínios – os quilombos.
Aqui no Brasil, a partir do século XVII, os escravos
africanos e índios começaram a fugir dos maus-tratos impostos
pelos senhorios e seus capitães-do-mato. Isolaram-se

principalmente nos sertões, formando verdadeiras repúblicas
compostas de mais de dez mil escravos fugidos.
Havia muitos quilombos. Porém, pelo seu tamanho e
população, o mais notável foi o de Palmares.
É difícil estabelecer uma data para o surgimento do
quilombo de Palmares.
Assim, estipulou-se que esses acontecimentos tiveram
início em 1630. Os receios do então governador de Pernambuco,
Diogo Botelho, para o ajuntamento de negros fugidos na
região que se estendia do norte do curso inferior do Rio São
Francisco, em Alagoas, até as cercanias do Cabo de Santo
Agostinho, em Pernambuco, começaram no início do século
XVII, segundo pesquisas recentes. Um destacamento comandado
por Bartolomeu Bezerra esteve no local, entre 1602 a 1608,
para exterminar o agrupamento rebelde. Mas foi derrotado.
O assombroso crescimento de Palmares aconteceu
efetivamente em 1630, quando as guerras contra as invasões
holandesas no nordeste brasileiro desarticularam a economia
advinda das organizações açucareiras, relaxando a vigilância
dos senhores fazendeiros. Mesmo na Bahia as grandes fugas
de escravos, durante as lutas, foram comuns e resultaram na
formação dos quilombos de Rio Vermelho e Itapicuru,
dizimados respectivamente em 1632 e 1636.
Nos Palmares, designação dada pela intensa vegetação
de pindobas, os negros espalharam-se por uma região
acidentada e de difícil acesso, coberta por uma espessa mata
tropical, o que dificultava as investidas dos brancos.
Nessa época, as aldeias de Palmares contavam com
aproximadamente seis mil pessoas, população que se
multiplicaria de maneira espantosa, anos depois.

A natureza, no começo, áspera, facilitava a sobrevivência.
Havia árvores frutíferas em abundância, assim como
animais de caça e rios piscosos, além de água potável. Deste
modo, tinham tudo para se proteger, durante anos. Conhecedores
de agricultura, derrubavam árvores e aravam a terra,
tornando-a apta ao plantio. A madeira era utilizada nas construções
e fortificações.
Entre os produtos agrícolas destacavam-se milho,
mandioca, feijão, batata-doce, bananas e hortaliças. Com a
cana-de-açúcar produziam rapadura e aguardente. As choças
eram construídas com diversas palmeiras. Além disso, faziam
os seus próprios móveis e utensílios. Com a argila, farta,
fabricavam cerâmicas e outros artesanatos. Chegaram a ter
uma pequena e rudimentar metalúrgica para forjar implementos
agrícolas e armas.
As colheitas eram tão generosas nas plantações palmarinas
que o próprio rei de Portugal Dom Pedro II “O Pacífico”
(1675-1706), em despacho referente a uma das expedições
contra os Palmares, recomendava que a data da pretensa
invasão coincidisse com a época da colheita dos negros para
permitir o abastecimento da tropa.
As aldeias que compunham os quilombos eram chamadas
de mocambos – povoados de casas primitivas cobertas
com folhas de palmeiras, protegidas por paliçadas duplas de
madeira. Por volta de 1675, o quilombo de Palmares ocupava
uma área de sessenta léguas, segundo alguns historiadores, com
uma população de vinte a trinta mil habitantes.
Era uma nação heterogênea, composta por negros
oriundos de diversas nações africanas, predominando os da
Costa da Guiné. Além desses, mestiços brasileiros e indígenas.

No mocambo do Engana-Colomim, a maioria era indígena que
lutava fraternalmente ao lado dos negros, uma irmandade
racial nascida do conflito comum com o branco. Seguiam os
rituais religiosos trazidos da África, com todo o sincretismo e
a mistura do catolicismo popular, que resultou, no Brasil, no
candomblé e na umbanda. No mocambo do Macaco existia
uma capela repleta de imagens de divindades católicas, onde
também eram celebrados casamentos.
A união conjugal entre os quilombolas não seguia
regras fixas. Praticava-se tanto a monogamia quanto a poligamia.
O rei Ganga-Zumba, por exemplo, tinha três mulheres.
A colaboração de brancos com os rebeldes de Palmares
ajudou, e muito, a sua manutenção. Os excedentes agrícolas
dos negros sublevados interessavam aos pequenos lavradores
e mascates, que trocavam diversas colheitas por armas e utensílios.
Alguns grandes senhores da região, com medo, e para se
prevenir de ataques, pagavam uma espécie de tributo aos mocambos,
prática veementemente condenada pelas autoridades,
que também puniam o comércio. Domingos Jorge Velho
denunciou o desembargador Cristóvão de Burgos, proprietário
vizinho dos quilombolas, como “colono dos negros”, impedindo-
o de entrar em suas terras após a derrota dos Palmares.
Essa colaboração, considerada trégua, foi assinada, em
certa ocasião, pelo rei Ganga-Zumba e o governador de
Pernambuco. As tréguas refletiam a superioridade do poder
negro na região. Embora não tivessem objetivos políticos, mas
sim a liberdade e o bem-estar, os fugitivos concentrados em
Palmares representavam um poder subversivo da ordem
colonial. Na medida em que adquiriam forças, iam impondo
às autoridades, cada vez mais, os seus anseios. Desta forma

criaram um verdadeiro Estado, nos moldes africanos.
Organizados em tribos, elegeram o seu primeiro rei Ganga-
Zumba, substituído depois de morto pelo seu sobrinho, Zumbi.
Os reis não eram escolhidos por critério de hereditariedade,
mas pela liderança que exerciam entre os comandados.
Entretanto, a existência desse Estado africano, dentro da
Colônia, era absolutamente incompatível com as ordens de
Portugal. Ele deveria ser completamente destruído.
Portugal sabia que o poder pernambucano não seria
suficiente para derrotar Palmares. Assim, foi contratado o
paulista Domingos Jorge Velho, um especialista em exterminar
índios e escravos sublevados, que tinha vínculos profundos com
as atividades comuns no Brasil seiscentista, principalmente no
sertão do nordeste, como sertanista de contrato.
Desde 1670, Domingos e sua tropa bem armada
haviam combatido no Piauí os índios tabajaras, aroazes e
capinharões. Uma carta de 1685 do governador de Pernambuco,
Souto Maior, convidou-o para exterminar os Palmares.
Depois de uma penosa e extensa marcha até as proximidades
do quilombo, a tropa paulista recebeu uma contraordem
do governador geral do Brasil, Mathias da Cunha, para
regressar ao norte e combater os índios janduís, rebelados na
região do Assu. Só em 1687 um emissário de Jorge Velho, o
padre carmelita Cristóvão de Mendonça, foi a Pernambuco
negociar os termos da participação do bandeirante na guerra
contra os Palmares. O acordo só foi aprovado em 1691 pelo
novo governador Marquês de Montebelo. Depois de esmagar
a revolta dos janduís, na qual perdeu muitos homens, e já com
o título de mestre-de-campo, o chefe paulista dirigiu-se a
Palmares, em 1692, com mais de mil homens, na maioria, ín75
dios armados. Esses combatentes faziam jus ao exemplo do seu
chefe. Violentos e cruéis, eram detestados até pelos senhores de
terra. Mas os grandes fazendeiros precisavam deles.
A grande luta contra os negros rebeldes atraía os
paulistas por razões simples. Os escravos capturados seriam
vendidos ao preço de mercado, e as terras dos Palmares e
outras sesmarias do nordeste seriam divididas entre os
vencedores, conforme acordos firmados com o governador
Souto Maior e ratificados, posteriormente, pelo Marquês de
Montebelo. Além de ganhar armas e munições, seriam
perdoados pelos crimes cometidos.
Em dezembro de 1692, Domingos Jorge Velho atirouse
galhardamente sobre os mocambos, esperando uma vitória
fácil. Mas não contava com a resistência heróica dos homens
de Zumbi. Depois de muitos revezes, devido à falta de
alimentos, armas e munições e, principalmente, à debandada
de índios, os paulistas viveram de escaramuças contra as
fortificações dos quilombos por quase dois anos.
Em janeiro de 1694 o bandeirante recebeu os reforços
necessários, inclusive artilharia, para prosseguir em sua luta.
Os atacantes, bem armados, chegavam a quase três mil
homens e eram comandados por Zenóbio Accioly de
Vasconcelos, Sebastião Dias e Bernardo Vieira de Melo.
Depois de combates violentos contra as fortificações
de Palmares, durante fevereiro de 1694, Zumbi fugiu com os
poucos homens que restaram do massacre.
Depois de 65 anos de lutas, o glorioso reduto da
liberdade negra foi derrotado.
Zumbi jamais se entregou. Continuou na região,
lutando em pequenas guerrilhas. Em novembro de 1695, um

mulato, seu auxiliar, depois de muitas torturas revelou o
esconderijo do rei. E assim Zumbi foi morto, junto com vinte
valentes combatentes. O rei negro que violou seriamente as leis
e as ordens imperiais foi decapitado e sua cabeça, exposta em
uma praça de Recife, onde aguardou com trágica serenidade
até virar caveira, enquanto os brancos se digladiavam
violentamente pela propriedade das terras conquistadas.
Calcula-se que entre o Rio Grande do Sul e a Amazônia,
o Brasil teve cerca de 250 quilombos, a maioria instalada
entre Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Santa Catarina teve o
menor número de quilombos por região, apenas três.
Ainda hoje existem diversos agrupamentos oriundos de
quilombos, Brasil afora. Seus habitantes, descendentes de
escravos negros, vivem completamente à parte da realidade
política e social.
Em maio de 2005, a menos de cem quilômetros de
Salvador, capital da Bahia, a superintendência regional do
Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, descobriu uma
comunidade de quilombolas vivendo isolada, como se ainda
estivesse no século XIX, quando a escravidão foi abolida.
Quase trezentas pessoas que vivem no povoado de
Acupe, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano,
região de inúmeros engenhos de açúcar no passado, sobrevivem
da agricultura e de algumas frutas. O pouco excedente
desses produtos é vendido na região.
Em locais como esse, o Estado brasileiro não se faz
presente. Por exemplo, os habitantes de Acupe não aparecem
em registros oficiais do país, pois não têm certidões de
nascimento, carteiras de identidades, títulos de eleitor e
cadastros de pessoas físicas.

Além disso, poucos têm certidão de batismo. Foram
contatados pela primeira vez pelo INSS devido a uma festa
em Santo Amaro, em que um grupo de quilombolas foi
apresentado a uma coordenadora do Programa de Educação
Previdenciária.
Ignoram escrituras e registros de terras, e também não
sabiam da existência de um Instituto de Seguro Social. Muitos
já poderiam estar recebendo aposentadorias por idade.
E, como os quilombolas de Acupe, muitos outros ainda
vivem nas mesmas condições. Só no Estado de São Paulo, no
Vale do Ribeira, existem as comunidades negras quilombolas
de Ivaporanduva, Sapatu e André Lopes.
Mas voltemos aos nossos andarilhos que se preparavam
para seguir até o quilombo dos Campos de Araraquara.
Caminharam até chegar ao encontro do Rio Pinheiros
com o Tietê, ao anoitecer, onde então passaram a noite.
Ainda não havia amanhecido quando Azulão o acordou
e comunicou:
— Vamos seguir o curso do rio pelas duas margens.
Caminharemos somente à noite. Durante o dia descansaremos
e montaremos sentinela para nos prevenir dos caçadores de
escravos e outros importunos.
Azulão chefiava o grupo do lado direito e, para
comandar o lado esquerdo, nomeou Quitério. Com o pessoal
subordinado a Quitério estava Dindinha, uma negrinha de
aproximadamente quinze anos que, depois de ver Quitério
pela primeira vez, nunca mais conseguiu tirar os olhos dele.
E assim distribuídos seguiram em marcha pelas frias
madrugadas brumosas daquele inverno de 1812. Durante o
dia, em absoluto silêncio, dormiam em grupos revezados. A
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alimentação era basicamente composta de peixe e mandioca
assados em telhas aquecidas por tições de lenha, guardados
em panelas de ferro para evitar fumaça. Almoço e jantar de
vez em quando quebrados por frutas encontradas no caminho.
Água eles tinham em abundância!
Passaram pelos povoados de Santana do Parnaíba,
Pirapora e Itu, até se agrupar numa margem lá pros lados de
Porto Feliz. Essa caminhada custou aos fugitivos exatamente
dezessete dias.
Em 1693, nas terras de Antônio Cardoso Pimentel, à
margem esquerda do Rio Tietê distante de São Paulo cerca de
cem quilômetros, surgiu um pequeno povoado, Araritaguaba,
que significa “onde as araras comem areia”. Este nome foi dado
pelos índios guaianazes que habitavam a região. Porém, as
notícias sobre a descoberta de ouro, pedras preciosas e muitos
índios para serem escravizados nas terras recentemente desbravadas
pelos bandeirantes, Mato Grosso e Goiás, os portos
localizados às margens do Tietê, utilizados para as partidas
das Entradas e Bandeiras tiveram novamente uma enorme
procura.
Araritaguaba passou a ser chamada de Porto Feliz,
pois todas as monções que de lá partiam para o sertão eram
recebidas com festas que duravam vários dias, quando
voltavam.
Azulão foi até a cidade comprar rapadura e mandioca
e, durante três dias e três noites, negociou suas mercadorias e
fez contatos com outros quilombolas, disfarçados de escravos.
Na primeira noite de folga, Quitério e Dindinha
acasalaram-se, à fraca luz de uma lua quarto crescente,
escondida entre as nuvens, jurando eterno amor sob o olhar

de diversas corujas. Quitério e Dindinha passaram a ser os
únicos “casados” entre aqueles alegres negros fujões.
Azulão voltou contente com as notícias recebidas sobre
os caçadores de escravos. Ultimamente não se via nenhum
naquelas paragens. E ficou mais alegre ainda ao saber do enlace
entre os dois quilombolas.
Foi logo dizendo, sem preâmbulos:
— De hoje em diante Quitério será Nhô Quitério e
Dindinha será chamada de dona Dindinha.
E esbravejou:
— O primeiro padre que aparecer em nossa frente
benzerá essa união, com a graça de Deus e de São Benedito.
Em seguida, distribuiu mantimentos e roupas aos seus
comandados e decidiu retomar a longa caminhada até o
quilombo previsto, assim que a noite caísse.
Devido às notícias e ao alívio das tensões, todos
continuaram, seguindo a margem direita do Tietê.
Caminharam durante vários dias até chegar à foz do
Rio Piracicaba, hoje município de Botucatu.
Assim que começaram a andar pelas margens do
Piracicaba, quase ao anoitecer, Azulão ouviu piados diferentes.
Estavam se preparando para passar a noite quando os
piados começaram.
— Deve ser macaco e não pássaro, comentou Quitério.
— Não, exclamou Azulão, pedindo silêncio.
Em poucos minutos o grupo foi cercado por dezenas
de outros negros, armados com facões e bacamartes.
Mas, para a tranqüilidade de todos, o negro que se destacava
como chefe dirigiu-se a Azulão, dando-lhe um longo
abraço.

Depois de mais de três meses de árduas caminhadas,
Quitério e Dindinha estavam a poucas léguas do que restou
das paliçadas e palhoças do quilombo dos Campos de
Araraquara, às margens do Rio Piracicaba.
No início de 1700, um grande número de negros fugidos
das Minas Gerais e alguns da Capitania de São Paulo formaram
dois grandes quilombos à margem do Rio Tietê, no caminho
de Cuiabá, na esperança de encontrar ouro que, acreditavase,
era abundante na região. Belicosos, não se amedrontavam
em atacar e saquear as pequenas bandeiras que seguiam para
os sertões.
Em 1766, o capitão-general de São Paulo, Dom Luiz
Antônio de Souza Botelho Mourão, soube que às margens do
Rio Piracicaba – em tupi-guarani, “lugar onde o peixe pára”
– perto de uma bela cachoeira, já havia alguns posseiros, e que
o rio servia de apoio para as bandeiras que desciam o Tietê.
Assim, incumbiu Antônio Corrêa Barbosa de fundar um
povoado na foz do Rio Piracicaba. No entanto, o povoado foi
fundado a noventa quilômetros da foz, à margem direita do
salto, lugar habitado pelos índios paiaguás.
Piracicaba, como era conhecida, foi elevada à categoria
de vila em 1784, com o nome de Vila Nova da Constituição
em homenagem à promulgação da Constituição Portuguesa,
ocorrida naquele ano.
Em 24 de abril de 1856, Vila Nova da Constituição
tornou-se cidade. Em 1877, por petição do então vereador
Prudente de Moraes, mais tarde primeiro presidente civil do
Brasil, o nome da cidade foi oficialmente mudado para
Piracicaba.

Em 1767, por ordem do governador da Capitania de
São Paulo, Dom Luís Antônio de Souza Botelho, o Morgado
de Mateus, os capitães André Dias de Almeida e Vicente da
Costa Taques Góis e Aranha organizaram uma poderosa
bandeira com mais de oitocentos homens para exterminar os
focos de quilombolas, entre os vales do Rio Tietê e Moji-Guaçu.
Mas estas bandeiras não conseguiram exterminar de
vez os quilombos da região.
Ao longo de 1802, outro quilombo formou-se, às
margens do Rio Piracicaba, composto principalmente por
negros fugidos das Minas Gerais. Tiveram início, mais uma
vez, os assaltos e depredações nas lavouras existentes.
Em abril de 1804, o capitão Carlos Bartolomeu de
Arruda Botelho foi incumbido, pelo capitão-general, de atacar
e arrasar esse quilombo. Bem sucedido na missão, prendeu um
grande número de negros que ali habitava.
Porém, muitos sobreviventes fugiram para as beiras dos
córregos – Quilombo, Corumbataí e Jacaré-Pepira.
Depois de vários dias escondidos nas ruínas do velho
quilombo, Azulão dividiu seu pessoal em quatro grupos. Três
partiram, cada um para uma região diferente, enquanto o
grupo composto pelos mais velhos permaneceu no local.
Sob o comando de Nhô Quitério seguiram os negros
mais jovens, adolescentes ainda, com ordens de subir as
encostas da serra e procurar vestígios de outros quilombos,
planalto acima.
Com a experiência de suas viagens fluviais, quando
criança, e as lições aprendidas durante a fuga, Nhô Quitério,
líder nato, não teve dificuldades para comandar os seus
subordinados.

Depois de várias semanas de buscas inúteis, resolveram
acampar às margens do rio Jacaré-Pepira, abundante em
peixes e com terras férteis para uma boa roça.
Caminhando diversas vezes rio abaixo, Nhô Quitério
descobriu que o ribeirão por ele escolhido era afluente do
grande Rio Tietê. Assim, com a ajuda de uma velha bússola,
trocada por mantimentos com um outro fugitivo, Nhô Quitério
estabeleceu uma rota, partindo da foz do Jacaré-Pepira rumo
ao norte, voltando depois de várias léguas para uma variação
de graus entre sul e sudeste, até encontrar o local em que sua
mulher, grávida, o aguardava com os outros companheiros.
Assim, trilhas foram marcadas para que o restante de seu povo
pudesse caminhar sem o auxílio de sua única bússola.
O tempo foi passando. Simão, filho de Nhô Quitério,
estava com cinco anos e já era o seu melhor companheiro.
Os habitantes dos municípios perto das terras
cultivadas pelos quilombolas de Nhô Quitério começaram a
se infiltrar nas plantações, ameaçando-os de expulsão.
Em 1817, os líderes daquele acampamento decidiram,
em uma reunião, deixar o local e subir o Rio Tietê, em busca
de outros locais ainda selvagens. Preparativos que consumiriam
quase um ano.
Quando tudo parecia estar em ordem para o início da
caminhada de mais de duzentas pessoas, começou a estação
das fortes chuvas – o verão de 1818.
Por caprichos da natureza, as chuvas foram torrenciais.
O rio subiu muito além do que eles estavam acostumados. Roupas,
mantimentos e utensílios foram arrastados pela correnteza
e eles foram obrigados a esperar a estiagem para prosseguir

com a fuga. E foi numa dessas estiagens que aconteceu o
inesperado.
Amanhecia. O rio estava bem mais baixo e a correnteza
não era tão forte. Como num passe de mágica, ofuscados
pelos primeiros raios de sol, foram envolvidos por dezenas de
brancos, uns fardados, outros, não, que desciam de suas
barcaças, fazendo o maior alvoroço.
Dando gritos de guerra, em poucos minutos todos os
comandados de Nhô Quitério estavam prontos para fugir. Mas
a presença de crianças e outros tropeços impediram muitos de
escapar. Entre eles Nhô Quitério, que ficou sem saber de sua
família.
Durante quase uma semana a tropa permaneceu nas
redondezas, na esperança de capturar outros negros. Depois
de várias escaramuças, o capitão ordenou que no dia seguinte
retornassem a Itu com os prisioneiros. O capitão, cujo nome
Nhô Quitério nunca soube, certamente estava satisfeito –
afinal, voltava com mais de cem prisioneiros.
O caminho de volta para Itu foi um calvário para
aqueles negros.
Atendendo às ordens do capitão, só os remadores e
alguns soldados voltaram pelo rio. O grosso da tropa, depois
de amarrar os escravos capturados uns aos outros, deixando
os pés com folga para dar apenas um passo, seguiram pelas
trilhas, margeando o Rio Tietê. Comiam apenas uma vez ao
dia e bebiam água dos rios e riachos, agachados como animais.
Qualquer mal-entendido resultava em chicotadas,
desferidas pelo capitão nas costas feridas daquelas miseráveis
criaturas.

Depois de caminhar durante quase um mês, a tropa
entrou na Vila de Itu sob os olhares tristes de seus habitantes.
A construção de uma capela – obra de Domingos
Fernandes e seu genro, Cristóvão Diniz, proprietários daquelas
terras doadas em 1604 pela Coroa Portuguesa – em homenagem
à Nossa Senhora da Candelária, onde hoje localiza-se a
Igreja do Bom Jesus, deu origem à Vila de Itu, em 1610.
Até 1750, essa vila permaneceu como um pequeno
núcleo, com menos de cem casas, concentradas em volta da
antiga igreja.
Em 1760, já existiam mais moradias espalhadas pelas
redondezas. Nessa época, a Vila de Itu firmou-se como
entreposto de comércio na rota entre o sul do país e as regiões
mineiras de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Alguns anos depois, o crescimento das lavouras de
cana-de-açúcar e algodão levaram ao crescimento da vila.
Outro fator de desenvolvimento foi o trabalho dos artesãos –
sapateiros, ferreiros, latoeiros, carpinteiros, tecelões, costureiras
e fiandeiras.
A partir de 1777, a Vila de Itu cresceu de modo
expressivo devido às exportações de açúcar para a Europa.
O número de escravos, agora vindos da África e não mais do
sertão, multiplicou. Nesta época, era a vila mais rica de toda
a Província.
Devido à sua próspera economia, a Vila de Itu ganhou
o status de cidade em 1857.
Em 1860, ocorreu uma enorme crise no mercado
internacional do açúcar. O plantio de cana entra em
decadência, causando conflitos entre políticos e fazendeiros
ituanos contra o governo imperial. Cresce assim, em Itu, o

movimento republicano que resulta, em 1873, na primeira
convenção republicana no país.
Foi nessas paragens que Nhô Quitério chegou, em
março de 1818.
Desolado e sem saber da família, foi arrematado em
um leilão de escravos por um rico fazendeiro plantador de
algodão.
Em abril de 1821, sabendo que na Vila de Itu haveria
um leilão de escravos, a maioria capturada nos sertões paulistas,
seu Joaquim em pessoa, ainda com o ardor da vingança
no peito, resolveu armar uma tropa com aproximadamente dez
homens fortemente armados e seguiu, na esperança de
encontrar o assassino de seu compadre.
Quem procura acha!
Apesar da força física, o rendimento de Nhô Quitério
não era o esperado, devido à saudade de sua mulher e filho.
Por isso, era castigado constantemente.
Parece que esse negro quer morrer – comentavam os
feitores com os compradores.
Mesmo assim, Nhô Quitério foi posto à venda junto
com outros desafortunados.
No segundo dia de leilão, seu Joaquim já estava
perdendo a esperança de encontrar o seu pior inimigo quando
um de seus capatazes, que conhecia Quitério muito bem, veio
lhe dar a grata notícia. Mas sem alarde, pois se denunciasse o
assassinato, Quitério seria preso e transferido para a comarca
de São Paulo, onde seria julgado. Porém, tudo isso levaria muito
tempo, e seu Joaquim queria que seu povo visse o negro
pendurado na forca.

Não foram necessários muitos lances para Quitério se
tornar, novamente, escravo de Seu Joaquim. É desnecessário
detalhar o martírio que sofreu nas mãos dos seus algozes até
chegar à fazenda, em Santo Amaro.
Abatido pelas chicotadas, o negro, já não tão forte, foi
colocado numa jaula de madeira, vigiada dia e noite pelos
capatazes.
Uma vasilha com água e pedaços de pão velho e duro
foram as suas refeições até junho de 1821, quando colocaram
o engradado em cima de uma carroça e o levaram para ser
entregue à Justiça.
Em novembro de 1807, durante a guerra entre franceses
e ingleses, a França invadiu Portugal sob as ordens de Junot.
No dia seguinte, a bordo na nau capitânia Príncipe Real, dona
Maria I e seu filho Dom João, e grande parte da corte portuguesa,
fugiram para cá, onde estabeleceram o reinado luso.
Com a morte da rainha, em 1816, Dom João foi
coroado, no Rio de Janeiro, o 27.º rei de Portugal e o primeiro
do Reino Unido. Recebeu o título de Dom João VI.
Um movimento iniciado em Portugal, na cidade do
Porto, em 1820, resultou na promulgação de um decreto que
determinava o regresso do rei para Portugal e convocava os
procuradores eleitos pelas câmaras do Brasil, Açores, Madeira
e Cabo Verde para uma junta de cortes. A adesão das tropas
ao movimento levou Dom João VI a prestar juramento à
futura Constituição portuguesa, em fevereiro de 1821, pouco
antes da nomeação de Dom Pedro, seu filho, como príncipe
regente do Brasil. Em 26 de abril de 1821, Dom João e sua corte
deixam o Brasil, retornando a Portugal.

Em 1776, a Declaração de Independência dos Estados
Unidos – da Inglaterra – guerra que durou até a derrota dos
ingleses, em 1781, foi um dos principais motivos que levou o
Brasil a também lutar por sua independência.
Portugal fazia o possível para que esta conquista não
fosse realizada.
Nas vésperas da independência política do Brasil,
muitos motins e revoltas agitaram o governo do príncipe
regente Dom Pedro.
São Paulo vivia sob o governo provisório e era a
província mais entusiasmada pelos ideais da independência.
E, por isso, a mais perseguida.
Uma dessas sublevações aconteceu na cidade de
Santos.
Insatisfeitos com a política adotada por Portugal – não
equiparar os soldos dos militares brasileiros com o dos
portugueses aqui no Brasil – o Batalhão de Caçadores de
Santos rebelou-se.
Como líderes desta revolta foram apontados o cabo
Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, e o soldado Joaquim
José Contindiva
Chaguinhas era um menino conhecido da São Paulo de
então, uma cidade provinciana e ensimesmada. Nasceu na Rua
das Flores, atual Silveira Martins, perto da igreja do Carmo.
Pobre, sem profissão definida, estava sempre à disposição para
trabalhar para quem quer que fosse. Ao ter idade necessária
para prestar o serviço militar que, acreditava, melhoraria suas
condições de vida, alistou-se e foi servir no fatídico Batalhão
de Caçadores de Santos.

Sua condenação à forca junto com o outro soldado
chocou a cidade.
Ao raiar do dia 20 de setembro de 1821, dezenas de
soldados cercavam o Largo da Forca, enquanto o público
acomodava-se, procurando um ponto melhor para assistir às
três execuções – Chaguinhas, Contindiva e o escravo Nhô
Quitério.
Trazidos aos pés da forca, os condenados escutaram
a sentença lida, como de costume, por um oficial judiciário.
O primeiro a subir ao patíbulo foi o soldado Contindiva.
Sua cabeça foi coberta por um capuz preto e o laço fatal,
colocado ao redor do pescoço. A tábua que apoiava os seus
pés foi solta. Em poucos segundos seu corpo ficou balançando.
A primeira execução tinha sido consumada.
Depois de retirado o primeiro corpo, chegou a vez de
Chaguinhas.
O mesmo procedimento foi feito com ele. Solta a tábua
de sustentação, seu corpo vibra no ar e, como por milagre, a
corda arrebenta. Chaguinhas levanta-se do poeirento chão
enquanto o povo grita: “Liberdade! Liberdade!”.
Os executores não dão ouvidos para as exclamações
populares e recomeçam a execução.
Quando Chaguinhas fica pendurado, novamente a
corda estica em volta do seu pescoço e arrebenta, causando
uma grande comoção popular, pois ao retirar o capuz que
envolvia a sua cabeça, surge um rosto bondoso e sereno.
Gritando “milagre... milagre!”, o povo pede a sua
libertação.
Depois da terceira tentativa, vã, pois a corda partiu
novamente, o comandante da tropa lá estacionada, temendo

uma revolta popular, exige de um condutor de carros de bois
as correias de couro para enforcar Chaguinhas.
Assim, aos gritos de “Liberdade!”, na quarta tentativa
o infeliz morreu, sob o olhar de Nhô Quitério, o terceiro
condenado, morto com as mesmas rédeas de couro usadas para
enforcar Chaguinhas.
Depois que a multidão deixou o local, ainda gritando
impropérios contra as execuções daquele dia, alguns soldados
levaram os corpos para ser enterrados no cemitério dos
Aflitos, cerca de duzentos metros abaixo do Largo da Forca,
hoje Praça da Liberdade, onde, desde 1821, existe a sinistra
capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados ou,
simplesmente, Igreja das Almas, dia e noite iluminada por
centenas de velas.
Saindo da Praça da Liberdade, na Rua dos Estudantes,
do lado direito, no meio do primeiro quarteirão, está o Beco
dos Aflitos, uma rua sem saída na qual localiza-se a capela da
Nossa Senhora dos Aflitos, a mesma antiga capela do cemitério
dos Aflitos, para onde Nhô Quitério, Contindiva e Chaguinhas
foram levados.
Ao entrar na capela, ao lado esquerdo do altar-mor,
há uma porta de madeira sempre fechada, quiçá para o além,
onde os fiéis, depois de acender velas, batem três vezes em seus
nós, pedindo graças e proteção para Chaguinhas.
Estas capelas estão no chamado Centro Velho de São
Paulo. E é de bom alvitre visitá-las para homenagear todos
aqueles que morreram injustamente,marginalizados peça nossa antiga sociedade colonial.



"Este Conto está publicado no livro "VARAL DE LEMBRANÇAS" de Roberto Stavale, lançado pela FACTASH EDIDORA, em 2006, e o Copyright do Autor reza: Proibida a reprodução dos textos originais, mesmo parcial, e por qualquer processo, sem a autorização do Autor.
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