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Contos-->TEMPESTADE NA ROÇA -- 10/05/2005 - 23:23 (Edson Campolina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
TEMPESTADE NA ROÇA


As nuvens se reviravam com furor. Nuvens escuras, gordas e pesadas como algodões sujos. Agrupavam-se apressadamente tapando o sol e deixando o entardecer a meia-luz.
Severino adiantou a junta das ferramentas e deu uma última espiadela na plantação de quiabos e jilós. Os pés já estavam enraizados, suportariam a enxurrada. A terra estava fofa, absorveria boa parte da água. Mesmo assim se precaveu com as valas que dariam às águas um rumo para fora dos canteiros.
Tirou da capanga de pano, a tiracolo, o vidro de maionese e tomou o último gole do café frio. Esquivou-se do vento para conseguir ascender seu cigarro de palha. Baforou um longo trago e tomou a trilha de volta pra casa distraindo-se com o alvoroço dos pássaros em revoada e o barulho do vento nas copas assanhadas das árvores. Precisava apertar seus passos curtos a tempo de preparar seu quintal para a tempestade.
Surpreendeu-se com a calmaria de seu terreiro. As galinhas recolheram-se sozinhas ao poleiro da coberta de zinco e já estavam com as cabeças escondidas sob a plumagem. Farinha, a cadela albina e magricela, enrolada nas patas, escondia-se no canto de seu canil de lata e madeira, abdicou-se da farra diária com a chegada de seu patrão. Nilce recolhera as roupas no quarador, tombara os bambus do varal, tampara a cisterna , alimentara os porcos e já fechara as janelas. Encontrou em seu quintal uma calmaria que contrastava com o pandemônio que ocorria no céu.
_ Tarde muié.
_ Tarde ômi.
Nilce tomou-lhe a capanga e tratou de logo lavar a marmita e o vidro de maionese.
_ Aproveita a água quente no fogo e toma logo seu banho. Sua janta ta no banho-maria.
Severino retirou a panela de ferro do fogão a lenha e saiu para o banheiro nos fundos da casa. Deitou a bacia que escorava a porta aberta e temperou sua água. Banhou-se e saiu enrolado na toalha velha contemplando mais uma vez o recolhimento das criações.
_ Essa vai ser brava muié, óia as criação!
_ Já mandei chamar os meninos na Vó Zica.
Severino vestia sua roupa no quarto quando ouviu a algazarra de seus filhos chegando em disparada.
_ Limpe os pés cambada!
Nilce mantinha o chão de cimento colorido limpo como um tampo de mesa.
Antes que agarrassem as pernas do pai foram repreendidos pela mãe.
_ Seu pai ta cansado da lavoura e vai jantar ainda. Sossega!
Severino fez sinal de continência aos meninos aproveitando a distração de Nilce e provocando gargalhadas nos gêmeos. Sentou-se no banco de madeira no canto do fogão, apoiou uma lamparina na cristaleira velha e devorou seu jantar em garfadas quase simultâneas. Pausava apenas para olhar o teto quando rompia um trovão, aguardando o clarão do relâmpago e a reação do papagaio, mudo em sua gaiola pendurada no beiral da porta, encolhendo-se de olhinhos cerrados.
Na janela da sala, Claudinei e Claudionor aproveitavam os clarões dos relâmpagos para namorarem as mangas maduras que caíam no terreiro, as distribuindo eqüitativamente pelo menos até o amanhecer. Seria mais uma noite meio escuro, meio clara, como diziam.
_ Feche a janela, senão o vento sopra a poeira pra dentro!
A chuva caiu forte de uma só vez. Nem pareceu ter vindo carregada pelo vento, como normalmente se vê a cortina d’água se aproximando pelo descampado ou descendo a serra ao longe.
Severino separou algumas vasilhas de alumínio penduradas no tripé e dividiu-as com os filhos. Os três correram os cômodos da casa ajeitando as vasilhas no chão e aparando os pingos vindos das falhas do telhado. Em poucos minutos uma sinfonia de gotejamento dava o tom que acalantaria o sono de todos naquela noite.
Nilce retirou brasas do fogão e depositou num latão. Recolheu sobre a cristaleira velha os ramos de palmito e eucalipto benzidos no último domingo de Ramos na semana Santa da paróquia. Centrou o latão no chão da sala e chamou todos à reza do terço. Cumpria uma tradição de sua família, pediriam a Deus misericórdia sob a ira dos céus. O cheiro de mato verde queimando misturou-se com o do querosene das lamparinas e tomou a casa que se iluminava a cada relâmpago.
Os ruídos dos pingos no alumínio desapareciam à medida que a água se acumulava nas vasilhas. Nilce policiava o tom de voz dos meninos e os repreendia com gestos e expressões pedindo mais fervor na oração. Os gêmeos desenrolavam a língua e retomavam os Pai-Nosso e Ave-Maria. O chuá do dilúvio diminuía, mas a chuva continuava intensa. O assobio do vento já não entrava pelas frestas e cumeeiras, mas os trovões e relâmpagos avisavam que a chuvarada cobriria toda aquela noite.
Com alívio e diversão, ao fim da reza do terço, Claudinei e Claudionor ajudavam o pai a esvaziar as aparas das goteiras no latão onde queimaram os ramos. Competindo entre eles, mediam a quantidade d’água nas vasilhas que cada um distribuíra, enquanto Nilce limpava a fuligem dos ramos no chão da sala.
A família se reuniu novamente nos sofás de falso couro e madeira, coberto por lençóis, presentes de casamento dos cunhados, para ouvir as estórias encabuladas do pai. Mulas sem cabeça que passavam carreiras nos homens desgarrados nas noites, onças que comiam criações, lobisomem que perseguia moças namoradeiras, caboclos d’água que sumiam com banhistas nos açudes e rios, postes que viravam gigantes perseguidores de pagãos nas estradas, fantasmas da família que assombravam os mais velhos, cobras tão grandes que engoliam um homem inteiro sem mastigá-lo, cachorros enlouquecidos que assustavam a vila, escravos que ressuscitavam nas madrugadas para a lida nas fazendas e outras tantas. Algumas atiçando a curiosidade dos moleques, outras os amedrontando.
_ Ah, mais uma só mãe!
_ Não, ta na hora.
De beiço e carrancudos, os dois deitavam-se contrariados, mas por pouco tempo. Tentavam adivinhar qual vasilha estava mais cheia pelo som dos pingos e quantos pingos separariam um relâmpago de outro e quantos ninhos de passarinho catariam na manhã seguinte. Até que a persistência do sono os vencia, antes mesmo que a nesga de luz da lamparina dos pais ao lado, que invadia o quarto sobre a parede, apagasse e restasse somente o murmurinho das conversas do casal.
Que saudade!
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