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Contos-->Os Segredos da Pasta Rosa (cap. IV - A EXPEDIÇÃO) -- 25/12/2000 - 23:49 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Naquele dia, após uma nova rodada de bebida e petiscos, a reunião ficou amena. Cada membro da mesa emitia comentário sem ser interrompido. Absorvido em coletar relatos mais picantes, não dei atenção ao zumbido de abelha querendo pousar na flor do meu ouvido. Dei um, dois, três tapas, mas pelo jeito, não fui feliz no meu intento. Teimosa e insistente ela continuou a me azucrinar.

- Dotô! Dotô!

Quando despertei com aquele duplo zumbido, acordei com o Candango Tenório balançando o meu corpo pelos ombros.

- Senhor Tenório! - respondi, assustado. - Desculpe-me a distração, estava absorvido em pensamentos!
- Pode cochilar, seu dotô! Eu só queria saber se vosmicê vai mermo querer conhecer o Riacho Fundo! - perguntou-me ele, num sorriso meio infantil.
- Claro amigo! - apressei-me em responder. - Por enquanto eu só tenho uma tomada aérea da paisagem! - apontei para o céu, e ele compreendeu meus argumentos.
- Pelo tamanho das botas... o dotô veio preparado pra enfrentar até cascavel! - pilheriou o gaúcho.

E o fez de maneira tão espalhafatosa que todos que se encontravam no recinto voltaram os olhos na minha direção. E é claro, para as minhas botas.
- Oxente, não é que é verdade! Eu não tinha reparado, seu dotô. Mas não se apoquente não; se aparecer alguma surucucu, eu piso no cangote dela com minhas precatas.
- Espero que não seja necessário! - e sorri, principalmente da valentia que o candango buscava demonstrar.

Ansioso para iniciar nossa viagem; tratei de acomodar o bloco de rascunhos na pasta que peguei emprestado no gabinete do amigo Senador. Era uma pasta resistente, que muito semelhava às que costumava usar, no meu tempo de Assessor Parlamentar. Recordo-me que Rosa, a secretária de curvas generosas e seios fartos, entregou-me a pasta com um sorriso pidão. Mas não aceitei a cantada; sabia que ela era caso antigo do Senador. Fiquei muito agradecido de sua gentileza e, curioso ao notar que apesar do tempo, ela se mantinha jovem e fresca, quando a vi pela primeira vez.
O candango percebeu minha pressa; mas não demonstrou comungar meu sentimento. Tomou mais um gole de bebida e, aproveitou para lustrar a sandália de couro batido. Como não poderia deixar de ser, habilmente tingida de branco.
Não houve despedidas dos demais companheiros e parceiros de mesa. Todos nos deram a desnecessária garantia que iriam ficar aguardando o nosso regresso enquanto bebiam o estoque de bebidas da adega do gaúcho.
Quando finalmente atingimos o estacionamento, o senhor Tenório me convidou para tomar o lugar do carona de um Jipe. E quando assim o fiz, o Candango soltou o freio de mão e deu um leve empurrão no veículo. Correu e acompanhou o deslocamento do veículo. Deu um salto ágil e tomou lugar na direção para logo em seguida pisar na embreagem, engrenar a segunda marcha e liberar o pedal.
Escutei o ruído das peças mecânica entrando em atrito. O tranco do motor foi tão violento que quase me atira em cima do pára-brisa.
O candango fez um sinal de positivo confirmando que estava tudo bem. O Jipe-69 saiu aos solavancos; como se estivesse desgovernado.

- O bicho é pior que burro xucro, seu dotô! Primeiro coiceia, mas depois, obedece ao cavaleiro.
- Ele é uma raridade! - comentei, procurando conversa. Mas não me escutou.

Tomamos a via em velocidade reduzida. O transito lento não nos permitia trafegar na velocidade desejada. Notei que o motorista estava um pouco ébrio, e, fiquei feliz por constatar que mesmo assim, era prudente.
Não muito distante do local de partida nos deparamos com um trevo rodoviário. O veículo fez o contorno sem desgarrar as rodas. Tomou nova direção ganhando velocidade.
O candango não me deu nenhuma explicação quanto ao destino que tomara. Mas não por muito tempo. Após cruzar uma pequena ponte reduziu a velocidade e parou. Passou a mão na barba rala e disse-me:

- Doto!, não sei onde vai acabar essa viagem... Mas, é aqui que ela começa.

Fiquei entusiasmado. Nunca havia imaginado que o Riacho Fundo estivesse tão próximo. Entretanto, ali estava ele, com sua água rala e suja. Um odor azedo penetrou nas minhas narinas e me casou mal estar.
Evitei fazer comentário. Não me pareceu o momento oportuno para iniciar uma bravata contra a política urbana local.

O Tenório voltou a falar:
- Seguindo o curso das águas o riacho vai se encontrar lá adiante com o Córrego Vicente Pires. Um pouquinho mais adiante... desemboca no Lago do Paranoá. Então, como vosmicê não quer ver lago; nós vamos tomar outro rumo... Vamos pras bandas da nascente! - anunciou, satisfeito com a própria decisão.
- O senhor é quem manda, senhor Tenório! - concordei, e não havia como não concordar.

Ciente da minha aprovação ele efetuou uma manobra rápida e retornou ao trevo rodoviário. Contornou-o novamente e seguiu no sentido do trajeto inicial: pela Avenida Contorno. A avenida marginal corta a cidade de um lado a outro e é a principal via de acesso ao setor rural.
Como da primeira vez, o caminho que nos levaria ao riacho não ficava longe. A pouca distância do trevo rodoviário, o veículo tomou o piso de uma via secundária e começou a transitar pela zona rural.
Atento aos detalhes da paisagem, observei que as propriedades estavam guarnecidas por cercas de arame farpado. E por trás delas, correndo em linha paralela, havia uma frondosa plantação de bananeiras que nos impedia de observar o seu interior. Somente quando o muro de folhas verdes se desfez, eu pude observar o que elas produziam.
Aquela era uma região rica na produção de hortaliças. O solo estava tomado por tabuleiros especialmente preparados para o cultivo de folhagens e legumes. Em algumas propriedades os agricultores já haviam adotado a irrigação mecanizada. Em outras, esta cansativa tarefa era executada por empregados: crianças, na sua maioria.
Aquela descoberta não me foi de bom grado. Não era o tipo de imagem que estava à procura e que deseja encontrar. Fiquei indignado com o que presenciava. A constatação de que em plena Capital ocorria a exploração da não de obra infantil era um fato deprimente. No entanto, contive-me. Adverti-me de que sempre fora sabedor de que as promessas dos nossos governantes não passavam de um engodo eleitoral. O problema nunca terá solução.
A irrigação manual era efetuada de duas maneiras: por grupos que carregavam grandes e pesados regadores; ou por esguichos de água das mangueiras que abasteciam os regadores. Pareceu-me que as crianças que se ocupavam deste último procedimento eram as mais velhas. Com toda certeza, elas já praticavam a hierarquia do mais forte.

O candango não concordou com minha visível repulsa à cena. Defendeu a idéia que era muito melhor vê-los trabalhando no roçado há deixá-los à mercê das más companhias e da escola da malandragem.
- Um pouco de trabalho nunca é demais, seu dotô! - filosofou então.

Após ouvir a buzina tocar, um dos agrícolas interrompeu o trabalho e tomou a direção do Jipe. Sorridente, veio atender nosso chamado.
Enquanto caminhava ao nosso encontro, notei que trazia no rosto algumas listras de cor negra. Somente quando se aproximou o suficiente, percebi que aquela estranha pintura tinha a mesma tonalidade da terra que predominava naquela região. Era um solo negro como betume.
Este detalhe me levou julgar que estava revolvendo a terra com as mãos. E daí então, para evitar a picada de algum inseto, passou a mão no rosto; deixando-o com aquelas listras negras a lhe realçar a pele morena queimada pelo sol.

- Dotô! O caboclo tá teimando que não dá pra ir de carro até a beira do riacho. O terreno está muito fofo... Só dá pra ir a pé!
- Não tem problema, senhor Tenório. Eu só pretendo tirar algumas fotografias.
- Fotografias? Pra que serve fotografias, seu dotô?
- Ora, seu Tenório... para registrar os fatos!
- Não existe melhor registro que os nossos olhos, seu dotô...
- Estou de pleno acordo! Contudo, a fotografia tem o poder de mover montanhas.
- Se o dotô acredita nisso... que seja! – concordou, contrafeito.
- Pelo que vejo; não fica assim tão longe. - disse-lhe, buscando reforçar minhas intenções.
- Gostei da atitude de vosmicê. Eu também sou assim, comigo não tem tempo ruim e nem barreira. - elogiou-me ele, à sua maneira.
- Se a montanha não vai a Maomé; Maomé tem que ir até a montanha, seu Tenório...
- Então vamos lá, seu dotô... Vai ser um pé lá, e outro cá! – sentenciou ele.
Aquele foi um passeio rápido. Tirei algumas fotografias e voltamos logo em seguida. Ambos estávamos decepcionados com o que presenciamos. A vegetação nativa estava completamente comprometida. As poucas árvores que ainda resistiam já não encontravam no solo a fertilidade de outrora. Grande parte da massa de terra fora arrastado pelas águas das chuvas; descaracterizando o leito original do riacho. Em alguns trechos o riacho havia tomado outras direções formado ilhotas de areia e cascalho; tamanha era a destruição do equilíbrio natural. Qualquer um podia prever que em poucos anos tudo estaria ameaçado pela erosão.

O caminho de volta foi realizado em silêncio. Quando chegamos no Jipe tomei o meu lugar de carona e esperei a partida do veículo.
Estava convicto de que, desta feita, não se faria necessário empurrá-lo. A bateria estava com carga.
O Tenório estava tenso. Descortinei no semblante uma ponta de amargura. Seu olhar estava duro e distante. Previ ser melhor esperar que o tempo lhe devolvesse a alegria costumeira.
Entediado com a toada que ele adotara em nossa viagem; comecei a fotografar a paisagem: as residências dos agrícolas, as crianças efetuando o trabalho de roçado e colheita de hortaliças, e o cachorro vira-lata que corria atrás do veículo.
Quando a estrada se encontrou com outra de piso asfáltico, o candango estacionou e quebrou o silêncio que havíamos adotado até então...

- Essa estrada vai dar na Metropolitana, seu dotô. Foi o primeiro alojamento dos dotô engenheiro! - apressou-se em me informar.
- O alojamento ainda existe?
- Que nada seu dotô... Já não tem mais nada que nos lembre o passado.
- Se é assim... não estou interessado em conhecê-lo.
- Então, seu dotô. Vamos seguir a viagem pelo lado de cá. Vou cortar a cidade e varar do lado de lá!
- Por mim tudo bem, eu não quero ver cidade. Prefiro a natureza!
- Natureza é que não nos falta, seu doto!
- É... mas pelo que vejo, não restou muito. Só sobraram os pés de quaresmeiras. - dei vazão à minha insatisfação.
- É verdade! Mas como vosmicê queria conhecer toda a barrigada do riacho, eu não podia deixar de passar por aqui... Estou certo? - interrogou-me, também insatisfeito.
- Desculpe-me amigo; você está coberto de razão. Mas espero que me mostre algo que valha a pena!
- Fique calmo, seu dotô! Já estamos chegando nos finalmente da cidade. Vou fazer mais uma parada, e depois, levo vosmicê no trecho mais formoso.

A partir deste momento, o Candango passou a dirigir com prazer e, em velocidade desaconselhada para o tráfego lento da rodovia urbana. Contornou uma pequena rodoviária e tomou a direção que me fora indicada. Sempre em sentido contrário ao curso das águas.
Após efetuar manobras ousadas, aproximou-se das margens do riacho. Procurou uma sombra e estacionou.

- Vamos esticar um pouco as pernas, seu dotô?
- É uma boa idéia! - respondi, com visível insatisfação em atender o convite.

À nossa frente havia um descampado que algum dia já fora um campo de futebol de várzea. Aproveitando-se do que restara da antiga cobertura de grama uma parelha de cavalos e uma vaca magricela pastavam tranqüilamente. As pessoas também faziam uso daquele campo. Algumas crianças ocupavam aquele espaço desolado para brincar de super-herói e soltar pipas coloridas.
Adverti-me de que a devastação naquele trecho era ainda maior do que nos outros lugares pelos quais havíamos passado. Do lado do qual nos encontrávamos o campo fazia divisa com o riacho e, na outra margem, o mesmo episódio ocorria com as casas. Elas foram construídas tão próximas o leito do riacho que se ocorresse uma enchente de grandes proporções certamente iriam ficar inundadas.

Pensei em fazer algumas indagações ao candango, mas, ele já havia tomado uma boa distância de mim. Estava na beira do riacho olhando fixamente para o leito raso e de águas turvas.
Quando me aproximei dele:
- Dotô, guardo boas lembranças deste pedacinho de chão! - disse-me ele, com voz de tristeza. - Eu era dono de um roçado que ocupava todo este baixio. Naquele tempo aqui parecia um paraíso! Com essas mãos que a terra há de comer, eu zelava, eu cuidava, eu evitava que alguém o destruísse... Tá vendo aquele areal no meio do rio? Ali mermo, naquele lugar! Com uma varinha de bambu cansei de pegar piau, fisgar cará e arrastar mandi-chorão e bagre!
- Parece que não sobrou muito daquele tempo, seu Tenório... O riacho já não está para peixe!
- É o progresso, seu dotô... O progresso!

Notei que a voz do candango, sempre grave e firme, possuía uma sonoridade melancólica e irregular. Observei que seus olhos ficaram marejados. Mas não presenciei nenhuma lágrima. Mas com toda certeza, elas deveriam estar presentes.
Tratei de mudar o rumo da conversa. Cheguei a pensar em encerrar a viagem e voltar para a companhia dos outros candangos. Seria a opção mais acertada naquele momento, pensei.

- Que tal retornarmos ao botequim do gaúcho, seu Tenório? - não obtive resposta. - Estou com saudade daquela cachaça maravilhosa! - insisti, tentando afastar seus pensamentos sombrios.
- Que nada, seu dotô. Nós vamos varar o paredão e logo vamos nos embrenhar na antiga Fazenda Sucupira.
- Varar! Não seria melhor contornar?
- Pouco importa... O que importa é chegar lá, seu dotô.

Pus-me a admirar o paredão do aterro. Ele deveria ter aproximadamente vinte metros de altura. No seu topo, era possível perceber o brilho metálico da linha férrea. Após perder alguns minutos contemplando a montanha de terra e cascalho que alterara a paisagem natural, concordei com as suas ponderações. Pouco importa se vamos varar ou contornar o paredão... O que nos interessava era atingir nosso objetivo: a nascente do Riacho Fundo.
Retornamos ao Jipe. Quando o candango tocou na chave de ignição o motor ligou, instantaneamente.
Pareceu-me que quanto mais o veículo era utilizado, ganhava força, potência e ficava macio e silencioso.
O candango acelerou como se fosse um ás do volante e guiasse um carro de corridas. Contornou a cidade. Trafegou pela rodovia interestadual BR-060; mais conhecida como Brasília-Anápolis. Depois de alguns quilômetros; retornou ao transito das vias secundárias. Quando dei por mim, já estávamos do outro lado do paredão. Foi quase um passe de mágica. Como se houvéssemos saltado de um lado para o outro do paredão.

- Esta região é a menos pior, seu dotô. No trecho à direita tem muita pedra e não presta para o cultivo. Somente naquele baixio a terra é de bom cultivo.
Observei que o solo arenoso estava coberto por vegetações nativas do cerrado: gramíneas e arbustos retorcidos. A chamada zona do envoltório.
- Que construção é aquela, seu Tenório?
- É o matadouro! - informou-me com certo desprazer. - Tão dizendo que foi fechado, mas pelo cheirume que tem o rio; ainda deve de está funcionando.
- O senhor tem toda razão. Pela movimentação que se pode observar, ele não foi desativado...

O candango não quis dar vazão a sua indignação. Ficou calado. Nem sequer fez menção de parar quando passou na porta do velho frigorífico. Deu prosseguimento à viagem como se nada houvesse de importante para ser registrado pela máquina fotográfica.
Esbanjando audácia, levantei meio corpo do banco e tirei algumas fotografias. Meu ato me custou uma severa advertência do motorista. Constrangido me vi obrigado a admitir que, se tivesse avisado, ele teria parado. E assim, não necessitaria ter efetuado aquele esforço arriscado e desnecessário.
Fiquei certo de foi uma atitude irresponsável, da minha parte. Mas se o fiz, foi por não querer incomodá-lo. Ele deveria ter seus motivos para não querer parar. E eu os meus, para registrar a existência do matadouro e os de casebres construídos ao seu lado como se fosse uma extensão dele.
Pareceu-me o surgimento de mais uma favela.

- Agora, seu doto: nós vamos entrar num grande cultivo. Se vosmicê reparar bem... vai ver que mata está mais formosa.
- Estou começando a gostar, senhor Tenório. - concordei, satisfeito.
- Vosmicê não viu nada. Nós vamos contornar os plantios e vamos chegar na nascente. Lá é que é bão!
- Se o senhor é quem diz... Não sou eu quem vai descordar.
- Se o moço quiser espichar as pernas... eu paro. Senão quiser... vou seguir minha toada.

Como não emiti opinião, o jipe seguiu em frente.
Pouco a pouco, a galeria de mata ciliar foi ganhando forma e ficando compacta. As lavouras já não ficavam tão próximas às margens do riacho. Tudo me parecia perfeito até que, descortinei plantações de eucaliptos e de bambus entre a vegetação da mata nativa.

Pensei em indagá-lo sobre a real necessidade da implantação daquele tipo de vegetação; mas não foi preciso. Como se houvesse lido meus pensamentos, respondeu-me:

- Foi a japonesada que plantou, seu dotô! O eucalipto faz o terreno ficar menos encharcado... Já o bambual, além de evitar o desbarrancamento, serve pra se comer!
- O senhor já experimentou?
- Ainda não, seu dotô! Ouvi dizer que é coisa fina, coisa muito gostosa... Mas não tive coragem de provar.
- O senhor não sabe o que está perdendo, seu Tenório. O broto de bambu é um prato saboroso; um verdadeiro manjar!
- Pode até ser... mas não sei comer com aqueles pauzinhos.

Ante a objetividade daquela resposta, tive uma crise de risos. O candango também sorriu; de si mesmo.
- Onde anda a japonesada que senhor tanto me fala? - indaguei, para conter o sorriso.
- Agora tem muito pouco, seu dotô. Mas nos antigamente, aqui era uma colônia desse povo de olho puxado!
- Eram tantos assim?
- Vosmicê não é capaz de imaginar! Tinha tanto olho puxado que até escola tinha. Escola para a os tal Nisei e os Sãoseis!
- Sãoseis...? Não é Sansei? - indaguei, ressabiado.
- Bão, isso eu não sei... Mas sei que tinha esses outros. Isso sei que tinha!
- E onde fica a escola? - quis saber, contendo um sorriso com a mão.
- Fica lá adiante... Eu passo na porta dela. É só subir esse pé de morro que a gente já chega... A gente já tá chegando! É só mais um morrinho, seu dotô!

A distancia não me pareceu longa. No entanto, a irregularidade do terreno me fez ficar com dores nas costas. O jipe pulava como se fosse um burro bravo. E o candango não estava muito preocupado em tornar nossa viagem confortável.
Quando finalmente atingimos a parte alta do terreno; estacionou. Saltou do veículo; saiu correndo; e foi fazer suas necessidades fisiológicas. Tirar água do joelho; como me informara.

- Aquele casarão é a escola... Se o dotô se adiantar, eu não me demoro. - gritou, fazendo xixi.
- Ah! a Escola KANEGAE! Vou me adiantar para tirar algumas fotografias, seu Tenório.
- Fique a vontade, seu dotô... já estou indo!

Depois de um certo tempo, ele se aproximou sorridente. Esticou os olhos para deixá-los longos, e correu para o lugar que eu lhe indiquei.
Após consumir o rolo de filme, comecei a me sentir recompensado com aquele momento. Recuperei o ânimo para seguir a viagem.

- Seu dotô, a cabeceira do riacho fica ali, naquelas bandas de lá! - apontou a direção. - Lá, com toda certeza, ainda têm vegetação antiga... É a única parte que não foi totalmente desmatada! - tratou de informar
- E a fazenda? Onde fica a fazenda Sucupira?

Ele meditou alguns minutos... Talvez, querendo rememorar todos os detalhes das paisagens do passado. Quando se deu por satisfeito, começou a descrevê-la:

- Toda esta região... baixios e morros; era a Fazenda Sucupira. Ela começava não sei donde, mas se estendia até o outro lado do riacho... que fica lá naquela corcova! Pelo que sei, todo esse mundão de terra era da Sucupira. Com o passar do tempo, e a mudança de Governo, foram cortando um pedaço daqui, um pedaço dali... E hoje já não se sabe onde começava ou findava.
- E a granja que o senhor me falou?
- Que granja, seu dotô?
- Aquela que já foi residência dos Presidentes!
- Ah!, a Granja do Riacho Fundo... Vosmicê está se coçando pra saber dessa história, não é mermo?
- Claro, senhor Tenório! Achei muito intrigante o fato dos nossos Mandatários morarem numa granja.
- Intrigante por quê?
- Ora porquê... Porque na minha terra granja é criatório de galinhas!
- Que mal tem nisso, seu dotô?
- Nenhum... Eu apenas tirei a seguinte conclusão: o brasileiro é um bando de galinha... - e sorri, da infantilidade de minha piada.
- Vosmicê é muito danado, seu dotô... Só que faz muito tempo que o galo não canta neste galinheiro! - e sorriu, da anedota.
- Não me comprometa, senhor Tenório. É o senhor que está dizendo!
- Eu sei, seu dotô... Mas, acho melhor por o pé na estrada. Se a gente ficar de proseio; não vai dar tempo de encontrar o peixe.

Concordei mais uma vez com o candango. Era só olhar ao nosso derredor para atestar que o processo de urbanização daquela região já estava em ritmo acelerado. Aqui e acolá era possível observar o surgimento de novas moradias. Neste caso, destinadas a abrigar pessoas de alto poder aquisitivo.

Recordei-me então, que o carioca me informara que todo aquele processo especulativo estava ocorrendo por culpa do Governo. Se por um lado o Governo local criou novas regiões habitacionais para atender a imensa demanda populacional; de outro, empresários desonestos lotearam as áreas consideradas exclusivamente de agricultura ou de preservação ambiental.
Dissera-me ainda que tudo estava sendo feito na mais perfeita e harmônica parceria. Tudo em favor da democracia. O voto é claro!

Enquanto o jipe transitava em declive tomando o rumo da cabeceira do riacho; notei que à minha direita, a encosta do morro tomava contornos de uma de serra.
Para mim, aquela era uma paisagem inesperada. Nunca imaginei que a região produzisse relevo daquele porte. Todavia, contrariando minhas expectativas; ele existia. Não me permitindo tecer julgamento negativo; mesmo que assim o quisesse.
Assoberbado com a paisagem previ que fosse uma ramificação da Serra dos Pirineus -cadeia rochosa que corta o Planalto Central-, mas não tive certeza. E o candango também não soube me oferecer informação precisa.


= ~ = ~ = ~

- Tive a mesma impressão, senhor Oinotna! – interpus-me, na narrativa do ermitão. - Garanto que esse acidente geográfico é desconhecido!
- Esse acidente geográfico, como você diz, meu rapaz... É uma abrupta depressão do solo.
- Depressão?
- Sim... Posso afirmar que este acontecimento é muito comum na região. Todavia, neste trecho, suas proporções são inacreditáveis.
- Inacreditáveis e assombrosa!
- O mais inacreditável e assombroso, meu rapaz. É saber que tudo não passa de mera ilusão visual.
- Ilusão?
- Sim... Porém, antes de explicar essas coisas; deixe-me contar como seu deu meu primeiro contato com essa região...
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