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Contos-->Os Segredos da Pasta Rosa (Cap. III - A VISITA DO LUNÁTICO) -- 24/12/2000 - 01:30 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A VISITA DO LUNÁTICO


Conta-se que num certo dia de verão, um lobo peludo, de coloração pardo-vermelha, mais escura no dorso, pés e focinho pretos, com malha branca na garganta; estava sentado no barranco vigiando o exato momento em que o peixe apontaria a cabeça fora d’água. O canídeo estava inquieto e ansioso; cansado daquele esperar solitário quando divisou um vulto reluzente cortando a flor da água fria. Eriçou as orelhas; como se estivesse preparando um bote. E gritou:

- Pirá!
- O que foi, Guará... Qual é o motivo dessa aflição?
- Preciso levar o esqueleto pra casa, amigo...
- Que sina! – ruiu o outro. - Quando a festa está ficando boa você quer ir embora!
- Que nada, amigo...Você sabe muito bem que não posso ficar a vadiar neste pedaço de cerrado.
- Sei não... Tudo me levar crer que já não preza nossa amizade.
- Que nada, amigo... Você sabe que não é verdade. Tenho muito...
- Tem nada seu mentiroso! - atalhou o peixe.
-...Tenho muito chão pela frente, Pira! O fogo pode reaparecer... Já se esqueceu?
- Você está certo, Guará... Não posso exigir que o amigo se exponha ao perigo.
- Então, até breve, amigo... Mas antes de partir, quero agradecer por ter apagado o fogo do meu rabo... Fico te devendo mais uma!
- Larga de ser bobo, Guará! Um dia tudo vai ser diferente.
- Eu gostaria de ter sua fé... Mas tudo bem, a esperança é a última que morre! Não é verdade?
- Até breve, Guará... E volte logo! – gritou o outro, quase suplicando que o amigo ficasse.

Como é de se imaginar; o peixe ficou muito triste com a partida do lobo. Para ele, aquele era o pior momento. O momento de se separar do amigo, e ficar a mercê da própria sorte. Para fugir do último adeus, fingiu que estava procurando algo no meio das folhas secas que cobriam o chão.
Creio que toda despedida deva ser assim; um momento difícil e de forte emoção. Somente quem fica é capaz de dizer a dor que cala no peito. Para quem parte, o peso do fardo só é insuportável até que se dobre a primeira esquina.



Vivendo o vazio da sua solidão, o peixe tratou de procurar alimento para saciar a fome. Manter a dispensa cheia de alimentos era uma labuta que lhe consumia boa parte do tempo do seu dia-a-dia. E naquele ano de seca prolongada a situação estava pior do que nunca. A floração da vegetação não foi fértil e, certamente não ocorreria uma farta frutificação.
Culpa da estiagem. O céu estava carregado de nuvens, mas chuva que é bom...

Com o passar dos dias, o peixe esgotou sua dispensa de migalhas e teve que se contentar em comer folha seca. Prevendo que o período chuvoso tardaria a chegar, resolveu se arriscar numa peregrinação a cercanias da cidade do bicho-homem.
O lobo alertara-o para os perigos que teria de enfrentar. Era uma viagem perigosa; correria risco de vida. Mas o que podia fazer... Enquanto a chuva não fecundasse a terra, iniciando um novo ciclo de farturas; não lhe restava outra alternativa. Teria que tentar. Teria que procurar alimentos no bueiro que desaguava no riacho para não morrer de fome.

E assim fez. Na manhã do dia seguinte, o peixe fez uma rápida viagem aos arredores da cidade do bicho-homem. Não teve dificuldades para encontrar o que procurava. Planejara que estaria de volta ao cair da noite, e tudo transcorreu conforme planejado.
Estava cansado. Mas só se deu conta que algo de mal havia lhe ocorrido quando chegou na sua morada. Percebeu-se febril. Respirando com dificuldades. Já não possuía a mesma vitalidade para superar as corredeiras mais revoltas. A cabeça doía, a respiração falhava, e os olhos lagrimejavam.
Entregou-se ao desânimo. Chegou a pensar que aquele era seu fim.

“Regime de guerra... você tem que fazer um rigoroso regime de guerra!, recordou-se, da conversa com o lobo. É... o Guará está certo. Já não basta apenas apertar o cinto; tenho que fazer um verdadeiro regime de guerra...”

O Riacho Fundo era o último resquício do habitar natural do pirá-brasília. No entanto, qualquer observador poderia prever que sua água cristalina em poucos anos ficaria turva pelos excrementos da civilização. A poluição nas suas principais nascentes era rotineira. Em poucos anos, não mais haveria quem suportasse ali viver. E aquele peixe, era um dos últimos da sua espécie.
A constatação daquela realidade, por ele, jamais imaginada; não mais lhe permitiu ter esperança de dias melhores. Estava cansado das promessas do lobo. Estava abandonado ao sabor da própria sorte. Chegou a cogitar que sua vida já não tinha nenhuma razão de ser; tamanho era seu sofrimento. Em momento de maior desespero, desejou ser capturado pelo bicho-homem. Quem sabe se não seria melhor abreviar o fim. O fim por todos anunciados.
“Só me restou o lobo Guará..., refletiu, ele. É o único amigo que se atreve a me visitar... Também, ele é esperto e ágil; o bicho-homem não vai capturá-lo tão facilmente. Mas o que pode o lobo fazer para me ajudar, se não consegue derrotar o bicho-homem. Será que vai me abandonar como os outros?”, quis saber, aflito.

O peixe estava inconsolável. Não conseguia encontrar uma saída para aquela situação. Se outros habitantes, que, eram maiores e mais fortes se afastaram dali; o que ele poderia fazer? A quem poderia gritar por socorro?
Coçou a cabeça; como quem procura algum pensamento perdido. Sentou-se no barranco. Atirou um pedregulho no riacho. E começou a remexer nas lembranças do passado.
Imagens lhe saltaram aos olhos; em cenas perfeitamente reconstituídas:

- Guará! Guará! Sai do riacho... Hoje, sou eu que tenho uma história pra contar...
O lobo saiu sacudindo água para todo lado; e indagou:
- Não me diga que é história do bicho-homem-caçador?
- Que nada, é história do tempo do meu avô!
- Não poderia ser mais nova? - propôs o outro, sorrindo.

Cantarolando, os inseparáveis companheiros foram sentar sob o pé de quaresmeira. Quaresmeira roxa. Roxa de tanto florir. A exuberância de sua florada só pode ser descortinada nas margens dos riachos. Dos riachos que rasgam o chão do Planalto Central.

- Quer saber de uma coisa, Guará: certa vez meu avô me contou que um bicho-homem-esquisito fincou morada na beira do lago. Foi no tempo que ele morava no Córrego do Torto... Lá onde você disse que mora o bicho-homem-presidente!
- Auto lá, Pirá! - atalhou o lobo. - Eu disse que descansava das viagens na Granja do Torto. Que eu saiba, ele vive viajando do Palácio da alvorada para o Palácio do Planalto.
- Disso eu sei! Como também sei que é um bicho é esperto, vive viajando e mudando de rio... Mas como eu ia te falando: esse tal bicho-homem esquisito passou um tempão remexendo as águas...
- Todo bicho-homem é esquisito, Pirá.
- Disso eu também sei; mas aquele era diferente!
- Diferente... Onde já se viu bicho-homem diferente?
- Que nada, Guará! Pelo que meu avô me contou, aquele era muito diferente. Chegava sorrateiramente; fazia uma caminhada matinal; e depois; ficava por ali espiando. Às vezes, jogava uma teia de aranha no rio. Meu avô ficava com medo; com medo de virar comida de bicho-homem...
- Não é pra menos! – interpôs-se o lobo, sorridente. - Eu é que não quero ser pescaria de bicho-homem!
- Como eu ia dizendo: quando o bicho-homem recolhia a teia; media e pesava suas presas, como se procurasse encontrar algo perdido.
- Será que achou o que procurava? - interveio o lobo, maliciosamente.
- Não sei! Como é que eu vou saber? Meu avô nunca soube me explicar qual era o motivo.
- Mas que motivo?
- O motivo para jogar a pescaria de volta no riacho, ora!
- Está vendo... Não te falei que bicho-homem é esquisito! - gritou o lobo, fazendo careta.
- Sabe que estou começando a acreditar que você está certo, Guará!
- Mas é claro que estou certo! Mas esquece disso seu bobo, vai ver que achou que seu avô não servia para o ensopado dele.
- Que nada! - gritou o peixe, fazendo cara feia. - Ele pode até ser um lunático... Mas, peixe é peixe, e bicho-homem é bicho-homem. Come de tudo! - concluiu, secamente.


= ~ = ~ = ~ = ~ =



Pirá não conhecera o bicho-homem de quem o avô tanto lhe falara; mas, lá dentro, lá no seu íntimo, alguma coisa lhe dizia que aquele visitante era diferente. Talvez um lunático. Sim, um lunático! Somente esse espécime poderá compreender o grande enigma da natureza.

Num belo dia, o chão estorricado pelo sol impiedoso recebeu as primeiras chuvas de verão. E elas, pela dádiva dos deuses, eram possuidoras do poder regenerador; transformaram a vegetação de caules tortos, retorcidos e cheirando incenso de queimadas em um oásis de colorido inimaginável.
Cores, flores; quantas flores e cores!
Os pequizeiros floriram, e, também as quaresmeiras e outras incontáveis plantas miúdas. O capim barba-de-bode brilhava ao sol, nascente ou poente. As manhãs eram cheirosas, cheiro de capim molhado. E tudo parecia ser de verdade, tudo parecia ser um sonho. Tudo era sonho.

A chuva proporcionou uma abrupta mudança no ecossistema local; a cadeia alimentar foi restituída. O peixe obteve o alimento do qual necessitava. Ficou forte, corado e preguiçoso. Já não precisava correr riscos para se alimentar com as sobras do alimento do bicho-homem.
E era muito bom que assim não mais o fizesse. As águas que banhavam a cidade estavam empreguinadas por um líquido viscoso e fedido.
Era uma nova praga. Uma praga muito mais poderosa e devastadora do que as queimadas; do que a pesca predatória; e do que as sobras de veneno das lavouras.
O Esgoto.
Esse autêntico produto da civilização moderna poluía a maior parte dos riachos e do lago. A construção de aterros sanitários e usinas para tratamento do esgoto não surtia o resultado esperado. A situação estava cada dia pior. A cidade crescia muito além do que era esperado e planejado. Favelas surgiam da noite paro dia. O lixo se acumula nas ruas. O esgoto corria a céu aberto. E todo o caldo fétido das águas servidas acabava desaguando nos riachos e córregos da região.


= ~ = ~ = ~ = ~ =

A fábula era uma colcha de retalhos de todas as texturas e cores. O tema ambiental era os remendos maiores e mais coloridos. Em certos trechos a fábula buscava transmitir um ensinamento dos princípios da harmonia da natureza e a necessidade de uma educação ecológica.
Não necessitei tomar conhecimento de todo seu conteúdo para concluir que ela guardava passagens hilariantes e críticas picantes ao sistema político e seus principais representantes. Era tudo uma questão de esperar a bomba que deveria vir pela frente.

- Quem saberá dizer quantas vezes o peixe terá se perguntado: será que o bicho-homem não tem nariz? Será que ele não fica incomodado com esta fedentina?
- Não tenho certeza se ele já obteve respostas para as suas indagações, senhor Oinotna. Mas estou certo de que o bicho-homem tem nariz, mas, não tem educação.
- O que falta ao nosso povo é patriotismo e educação, meu rapaz!
- Principalmente educação ecológica, seu Oinotna! – intervir.
- Corretíssimo! Corretíssimo, mesieur Jacquê. Ecologia deveria ser matéria obrigatória em qualquer currículo escolar. Somente assim, as futuras gerações estarão preparadas para preservar e conviver em harmonia com a natureza.

O ermitão teimava em dar ao meu nome uma pronuncia diferente da usual. Sua pronúncia grave e irregular proporcionava à última sílaba um som fechado: Jacque... onde deveria se Jacgues.
- Não há de ser nada, Oinotna. Uma cultura preservacionista já está florescendo! - adverti-o.
- Espero que sim! Mas posso afirmar que seu florescimento é lento, muito lento. Lerdo! – gritou.
- Qual é a importância das veredas no ecossistema do cerrado?
- Ora, meu rapaz... As veredas são o manancial de recursos hídricos da região! O Planalto Central é o berço das três maiores bacias hidrográficas genuinamente brasileiras... Sem o cerrado, não dou vinte anos para haver escassez de água potável para grande parte da população.
- Isso me parece improvável, senhor Oinotna?
- Não há nada de improvável, meu rapaz. Essa é uma verdade irrefutável.- sentenciou, ele.

Ciente de que até mesmo as previsões menos alarmistas assinalavam que num futuro não muito distante, haveria escassez de água potável nas regiões mais desenvolvidas do planeta; não tive como contestar seus argumentos. E, rememorando cenas das mais puras e cristalinas irresponsabilidades humana, que são retratadas nos acidentes ecológicos que ocorrem nos quatro cantos do globo, reconheci que sua previsão era factível. Não tardaria e haveria muito choro e ranger de dentes. Fiquei apreensivo.
A natureza não mais suporta tamanha destruição. Mas o que fazer; qual o fazer que será preciso?

- Senhor Oinotna: se tudo isso é verdade, tenho certeza que nossos governantes já adotaram medidas de proteção ambiental para preservar os recursos hídricos da região. – procurei ser otimista.
- Ora meu rapaz, não venhas querer ensinar padre rezar missa. – falando assim, levantou e foi reforçar a lenha do fogo.

Não digeri por completo o teor daquela conversa. Tão menos, a reação inamistosa do meu anfitrião. Comecei a duvidar das suas virtudes e espantosa capacidade para pressagiar o futuro.
O Capitão me fora contundente nas suas afirmativas: ele é simplesmente magnífico! Um iluminado!

Sendo assim, imaginava entrevistar um novo “Buda” ou um iluminado que me falasse de viagens astrais, que me falasse de energias cósmica. E, no entanto, encontrei um homem muito mais antenado aos problemas atuais, do que eu.
Não, ele não era o visionário que ouvira dizer que por lá vivia. Só podia ser um impostor. Alguém querendo aproveitar-se de minha boa fé.

Vi o ermitão levantar-se e correr para a fogueira como se fosse um lobo enfurecido. Quando retornou, trazia na mão direita um braseiro, suspenso no ar como se fosse um candelabro luminoso. Com um leve toque de dedos, permitiu que o recipiente metálico ganhasse movimento giratório e, o luzir do carvão em brasa desenhou um círculo de fogo em torno do seu dorso. Protegido pela espessa barba em desalinho seu rosto enfurecido permitiu-me ver que seus olhos refletiam a cor do facho de fogo; como se fossem duas tochas incandescentes.

- Quer dizer que o amigo veio à procura de um mago? – indagou-me, com firmeza. - Um mago que lhe fale de coisas tolas, que lhe fale de coisas que não és capaz de compreender! Um mago que lhe faça acreditar que a verdade não habita a insignificância do nosso dia a dia...

Sua voz me era ameaçadora. Sua voz ecoara como a de um profeta que prega aos quatro ventos um novo mandamento.

-... a única verdade meu rapaz; está dentro de cada um de nós... – continuou ele. – Somos parte deste universo. Um universo em expansão... Um universo onde a ausência de um simples grão de areia pode emperrar a máquina da criação.
- Desculpe-me, não quis importuná-lo com minhas divagações tolas...
- Não há de ser nada, meu rapaz... - disse-me ele, após um leve pestanejar.

O ermitão repetiu o ritual do café à moda dos sertanejos. Temperou mais uma chaleira de chá exótico. Desta feita, com ervas de aroma ácido e volátil; como se fossem possuidoras de elevado teor alcoólico. Do bornal que carregava a tiracolo, retirou um recipiente contendo nossa ceia noturna. Castanha assada de caju do mato.
Passei a saboreá-las; famulento.

Disse então, como se nada de mal houvesse ocorrido.
- Vamos voltar ao tema dos candangos...
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