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Contos-->Os Segredos da Pasta Rosa (Cap. II - O CANDANGO) -- 22/12/2000 - 14:01 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


“- Foi naquela viagem, meu rapaz... que tomei conhecimento de uma história que mudaria o rumo da minha vida. Desde o primeiro momento, fiquei curioso para conhecer um certo Candango. Pessoa indicada para me confirmar à descoberta de um peixe raro nesta região”.
Devo informar que então, era apenas um curioso. Um curioso tal qual você. Desejoso de viver uma aventura que valha a pena de se viver.
Para minha alegria, dois dias depois, eu já havia localizado o Candango Tenório.
No primeiro contato que mantive com o Candango, ele negou, por diversas vezes, ter conhecimento da história que lhe contei. Quando afirmei que fora Veruska, sua neta, que me informara que era conhecedor da localização do habitat natural do peixe; fez-se de surdo. Ficou arredio. Deu-me a entender que tudo não passava de boatos e invencionices; tamanho era o despropósito da minha busca.
Procurei demovê-lo de sua visível repulsa ao tema. Busquei outras formas de convencimento. E, felizmente, após tomar conhecimento da pureza das minhas intenções, concordou em falar sobre o assunto. Advertiu-me, no entanto, de que só me revelaria maior detalhe sobre o local, se eu lhe jurasse, por tudo que me era mais sagrado, guardar segredo sobre sua pessoa.
Não tive como não concordar.
No segundo encontro que mantivemos, sempre amável e solícito, convidou-me para saborear uma buchada de bode na Feira da Cidade Livre - cidade pioneira da construção da nova Capital. O convite era irrecusável, e, uma boa oportunidade para tomar conhecimento dos “causos” e segredos que ele se propusera a me revelar.

E foi assim, que naquele incerto domingo de um fevereiro de poucas chuvas e dias ensolarados, que esta história aconteceu. Informo que então, não fui pontual. Cheguei no local combinado quando o sol cruzava a linha do meio-dia. O Candango aguardava por minha chegada na porta do botequim. Recebeu-me com um largo sorriso e me convidou para tomarmos um aperitivo.
Uma cachaça de alambique.
Ingeri o líquido de um só gole, satisfeito com a boa acolhida.
E mal havíamos trocado dois dedos de prosa e saboreado a primeira dose daquela bebida dos deuses...

- Arre, tchê! Vê se desempaca e contas logo esta pendenga pro moço... Se não, vai pensar que estás com fricote! - gritou o dono do botequim.
- Oxente, gaúcho! Vosmicê não quer que faça intróito pro dotô?! Depois, eu conto o causo! - respondeu meu confidente.
- Enquanto o dotô escuta, não dá pra descer mais uma pinguinha? - interveio um outro parceiro de mesa.
- Caramba, tchê!, já ia me esquecendo. Deixa eu sapecar uma caninha, de rosário, que nesta peleja vai sair fogo!
- Autoridade!, posso participar da palestra? - cheio de ginga, entrou na conversa um recém-chegado.

Ele nem sequer esperou para receber minha permissão. Sorridente e brincalhão cumprimentou a todos; e depois, com a intimidade de um velho amigo, convidou-me para um abraço.
Agradei-me daquele seu jeito bonachão e da sua inconfundível mania de encerrar algumas palavras com um chiado. Pareceu-me que para ele, todas as palavras terminadas em “s” eram intermináveis.

- Se o dotô der licença, vosmicê pode se achegar! Afinal, vosmicê também é candango, e o confessório vai ficar mais real.
- Por mim, tudo bem, tudo bem; eu sou só ouvido!! Não vou desprezar a presença de mais um ilustre candango. - retruquei com ar de bom amigo.
Com um longo gesto zombeteiro, o carioca puxou uma cadeira e veio sentar-se à nossa mesa, ao meu lado. No minuto seguinte já éramos íntimos e amigos de longa data.

Desejando que minhas dúvidas fossem esclarecidas, com muito gosto, concluí que a participação do recém-chegado me seria benéfica.
Dentre os membros daquela confraria o carioca era o mais brincalhão e eloqüente.

- Desce uma loura suada! - gritou para o dono do botequim. E para nós, com as mãos, desenhou uma silhueta feminina no ar.
- Ô carioca! Para participares da tertúlia, tens que tomar primeiro uma caninha. - advertiu o gaúcho.
- Ah!, é briga de cachorro grande? Então, mandas a que matou o padre. - e falando assim, sorriu; um sorriso gostoso.
- Pois é, seu dotô... Naquele tempo a coisa aqui era diferente; não havia este montão de carro fazendo fumaça. Aqui era um lugar tranqüilo pra si viver!
- Eu entendo... isso sempre acontece, é o progresso!
O candango Tenório concordou comigo, fazendo um leve gesto com a cabeça.
- Mas os governantes adotaram medidas para a proteção e preservação do meio ambiente, não adotaram? – quis saber.

- Que nada seu dotô, no começo até que a coisa não era tão má! Mas o troço desandou, tão acabando com o tiquinho que restou!
- Mas assim; não é possível... Aqui não é a Capital Federal?! Se nem mesmo aqui respeitam o meio ambiente, o que vai ser do resto do país?
O mineirinho que, naquele exato momento, ascendia um cigarro de palha, gritou:
- Uai, seu moço! Tô de acordo. O exemplo tem que começar de cima, não é memo?!
- Autoridade? - interveio o carioca. - Podes crer! Logo que cheguei nestas terras eu tomava banho no rio junto com as capivaras.
- Vamos com calma; carioca! Esta história de tomar banho junto com capivara já é exagero de sua parte...
- Que nada! É a mais pura das verdades. Naquele tempo o caminhão de pau-de-arara vivia atropelando tatu nas estradas. Não é verdade, mineirinho?
- Uai, sô; tô de prova! O carioca não está mentindo não! Eu campeei muito estas estradas, e, cansei de cruzar até com onça.
- Senhor Tizico; o carioca fez uma colocação curiosa... Diga-me uma coisa: esse tal de pau-de-arara existia mesmo?
- Uai, sô! Num só existia como existe! Não é memo, compadre Tenório?
- Oxente, seu dotô! O pau-de-arara é o meio de carregar os retirantes. Eu mermo vim pendurado num! Viajei do sertão do Pernambuco até aqui.
- Mas isso foi uma loucura, senhor Tenório! O amigo se colocou em situação de extremo perigo.
- Que nada, seu dotô! Avião de retirante é pau-de-arara mermo.
- Tudo bem, quem sou eu para duvidar... Mas me explique uma coisa: se a cidade foi planejada como vocês dizem, e, diga-se de passagem, tão bem planejada; não ficou definida nenhuma área de preservação ambiental?
- Oxente, até que foi! Mas a cidade desandou tanto a crescer, que hoje em dia já tão construindo nas cabeceiras dos riachos.
- Arre, tchê! É a mais pura verdade! Abriram a porteira do curral! E do jeito que a coisa galopa, quando acordarem, a única água boa pra se beber vai ser minhas caninhas... – zombou o gaúcho. - resto; vai ficar carregado daquele tal de coliforme fecal! – concluiu, com gracejos.
- Mas isso; é inaceitável! - gritei de ímpeto, deixando os candangos assustados.

O senhor Tenório compreendeu a motivação de minha revolta, mas, não quis intervir no meu comentário. O gaúcho que me provocara aquele acesso de indignação; serviu mais uma rodada de bebidas.
Ainda possesso, desandei a fazer críticas à falta de controle no processo de urbanização. Se por um lado à criação de novos centros populacionais era extremamente prejudicial à qualidade de vida da cidade. Por outro, a fixação desordenada do homem no solo além de poluir as nascentes, dizimaria a fauna e flora da região.

- Ninguém está preocupado com isso? - gritei.
- Que nada, tchê! Isso não rende votos e muito menos dinheiro, que é o que eles querem. - informou o gaúcho enquanto limpava a mesa.
- Mas se for assim... Não poderei comprovar a veracidade da descoberta!
- Fique calmo, seu dotô! Vosmicê veio de longe pra conhecer este bicho. E pode ter certeza, nem que nós tenhamos que varrer todo o leito do riacho, nós vamos encontrar o pisado dele. Pode ter certeza que vamos!

Como o tom de voz do candango, pernambucano da mais nobre linhagem nordestina, demonstrou firmeza de proposta, tranqüilizei-me. Finalmente a prosa estava começando a surtir o resultado que eu tanto esperava. Pois, até aquele momento, de bom mesmo, só a cachaça que o gaúcho nos servia.
Êta pinguinha boa, sô!

Sem querer ser enfadonho ao descrever as coisas que ocorreram naquela reunião inesquecível; não posso deixar de frisar que em meio ao discurso de apresentação; entre apartes, réplicas e tréplicas; fui informado pelo senhor Tenório de que toda aquela epopéia teve início com o sonho do visionário. Ou melhor, do profeta dos novos tempos.

Neste ínterim, o Tenório fez questão de ser loquaz em sua explanação. Passou a descrever com minúcias de detalhes o sonho profético que um certo padre Salesiano tivera com a América do Sul e com o destino da nova Capital brasileira.
Não esqueceu de informar que o feito ocorrera na Itália, no dia 30 de agosto de 1883.
Quando finalmente encerrou narrativa do sonho-visão, ele emudeceu. Hesitante, procurou apoio na mesa e se sentou. Encontrava-se tão exausto que mal podia respirar. Como se todas as suas energias houvessem sido consumidas naquele minucioso relato.
Verifiquei, no entanto, que seus olhos emitiam um brilho sem igual. As pupilas de cor verde-água pareciam duas pedras de diamantes recém-lapidadas. E por sobre sua cabeça, a fumaça do cigarro de palha do candango Tizico tomou a forma de um halo fosforescente.

- Pronto foi o suficiente... - sussurrou-me o carioca. - Apareceram loucos e sonhadores dos quatros cantos da terra... Do Oiapoque ao Chuí! Se alguém foi capaz de sonhar que faria um Governo de 50 anos em 5, não lhe faltaram seguidores para dar início à grande obra de construção da cidade.

- Êta, sonho divino, sô! – interpôs-se o mineirinho. - Vosmicê já escutou sonho igual, seu moço?
- Na verdade não, senhor Tizico! Já tomei conhecimento que a cidade foi fundada com as bênçãos de Dom Bosco. Contudo, ninguém havia me revelado o sonho com tanta profusão.
-É que o compadre Tenório fez cartilha na Escola Salesiana... Ele aprendeu a história de cor e salteado. Mas o melhor ele não contou pra vosmicê!
-Eu sou só ouvido, senhor Tizico! Não me deixe sem saber o final da história.
- Se vosmicê quer... e o compadre autorizar; eu conto pro moço!

Confirmei que sim. E cúmplices do mesmo desejo; voltamos os nossos olhos para o senhor Tenório. Mas ele não disse nada. Permaneceu imóvel e calado, varando com seu olhar distante o telhado de zinco.
O mineirinho captou a resposta que necessitava e começou a sua dissertação:
- O mais melhor, seu moço! É que pra se fazer cumprir o profetizado; o Santo escolheu outro santo. E este nasceu na minha Minas Gerais... Lá em Diamantina! - precisou ele, emocionado.

Enquanto o mineirinho falava dos dias de glórias do Governo Juscelino Kubistchek, eu procurava visualizar as imagens daquele tempo de esperança e fomento patriótico. Sorridente, justificou-se que “J.K.”, foi o tratamento carinhoso com o qual o povo imortalizara o saudoso Presidente. O comandante da cruzada que almejava transformar o país na grande potência do novo milênio.
Percebendo que eu anotava as minúcias das suas descrições, ele fez questão de frisar que o “J.K.” era diferente dos outros políticos. Pois, no seu tempo, a porta do Palácio do Governo era franqueada a todos. Do mais insignificante peão-de-obra ao mais graduado auxiliar; com patente ou sem patente.

E concluiu a sua explanação dizendo:
- Ele é o inesquecível Presidente Bossa-Nova, seu dotô! Governou com a batuta da esperança e numa orquestração do “Peixe Vivo”.
- Autoridade! - interveio o carioca. - Desculpe atrapalhar suas anotações... Mas tenho certeza de que o peixe já vive na cidade-de-pé-junto. - e sorriu, como sempre, zombeteiro.

Desta feita, o sorriso foi geral. E, enquanto todos sorriam gostosamente, tratei de guardar as lembranças daquele Governo e conter o meu próprio sorriso.
Não fui feliz no meu intento.

O gaúcho que fora atender outros clientes – turistas de países distantes; retornou à nossa mesa e pôs um fim naquela algazarra:

- Não é pra menos, tchê! Com a devastação das matas nativas, nem o lobo Guará, que é esperto como ele só, deve estar vivo!
- Oxente! Vosmicê está me estorvando a prosa, gaúcho! O Pirá ainda está vivinho... Já o lobo Guará: compadre Tizico enxergou um lá pras bandas do Goiás Velho.

Atento ao debate, o mineirinho fez questão de ser enfático na sua afirmação:
- Uai, sô, Não é que é verdade! Estou de prova, posso lhe pregar minha palavra!
- Mas colegas, colegas! Se o lobo foi esperto e fugiu para as curritelas do Goiás; o que terá acontecido com o peixe? Ele não tem pernas! – gracejou o Carioca, com sua zombaria costumeira.
- Barbaridade, tchê! Outro Pirá, só se for de proveta!
- Por que? - quis saber.
- Ora porquê, tchê! Porque onde o bicho-homem põe o pé nem capim nasce...

Não reprovei a afirmativa do gaúcho. Afinal, ele fora o chefe da equipe de extração de madeira para escoramento das obras. Ao seu grito de: madeira! A motocerra derrubava as árvores frondosas.
Imagino que se não fora responsável pelos seus atos, ao menos dera sua cota de contribuição para que o progresso se instalasse na região e comprometesse o ecossistema local.
O certo é que o progresso chega, traz conforto e consumo fácil, mas sempre nos suprime alguma coisa. De modo que somente as futuras gerações vão sentir os seus efeitos danosos.

Após um breve momento de descontração e comentários de pouca serventia ilustrativa, a conversa mudou de rumo. O Carioca começou a tecer comentários sobre o problema das queimadas.
Aprovei o tema de imediato. Previ que ele me seria muito esclarecedor. Sempre quisera compreender qual era a real natureza das queimadas, e, por quais motivos se tornavam tão freqüentes nas frentes de desbravamento das novas fronteiras.
Prevendo que o debate seria longo e controverso, apalpei o bolso da camisa procurando a companhia inseparável do maço de cigarros.
O Candango Carioca percebeu minha intenção. Efetuou um gesto enérgico e interrompeu o movimento que estava preste a executar.

- Não faz bem à saúde, autoridade! E muito menos, ao bolso do amigo. - advertiu-me; como se me fizesse um favor.

Não aprovei sua atitude. Para um tabaquista compulsivo como eu, aquela era uma postura repressora do meu direito de escolha; mas não me atrevi contrariá-lo. Fiquei no aguardo que na sua explanação fosse mais democrático.
Satisfeito por constatar que seu pedido fora aceito, o Carioca me lançou um sinal de agradecimento. Com a eloqüência costumeira, deu inicio a um longo discurso para dizer, que, no seu entender; haviam dois culpados pelas rotineiras queimadas no cerrado. Os quais para ele eram: o cigarro dos fumantes e os balões dos festejos juninos.
Julgava como um indício muito revelador o fato dos incêndios se iniciarem sempre às margens das rodovias ou, logo após a queda de um balão colorido.
Utilizando-se de uma encenação caricata, simulou o início de uma queimada usando como material didático os tocos de cigarro do candango Tizico. Em tom professoral, informou que conhecia em profundidade a mente dos adeptos daquelas atitudes incendiárias. Já fora praticante de ambas.

- Já fui fumante e baloeiro, autoridade! Posso afirmar que os fumantes são uns mal-educados e sem senso do perigo que representam para a natureza. Não é preciso andar muito para constatar esta realidade. Os fumantes praticam a insana mania de jogar o cigarro fora, ainda aceso. E em qualquer lugar! Até quando estão dirigindo veículo nas estradas! Já os baloeiros! Porque os balões são bonitos quando sobem... mas, são um perigo quando caem. Principalmente quando caem no meio do cerrado. Aí, já dá pra imaginar! O fogo logo aparece consumindo a vegetação...

Na outra ponta da mesa o Candango Tizico balançava a cabeça em sinal de desaprovação. Sua irritação para com as colocações do carioca era visível. Por várias vezes, sussurrou-me que aquela era uma versão rancorosa e infundada. No seu entendimento, os incêndios eram fenômenos naturais da região, e, em sua maioria, decorrentes da baixa umidade relativa do ar.
Ficou muito mais ofendido por constatar que seu vício era uma das principais causas enumerada pelo Carioca. Ascendeu seu pito e deu uma longa baforada; deixando a fumaça sair da boca tomando forma de círculo.

Mas não se conteve e, esbravejou:
- Ô, Carioca! Vosmicê podia me poupar de suas bobices...
Depois, tomando de assalto a reunião, buscou ser mais eloqüente e convincente que o amigo.
Fez um longo e caloroso discurso para defender sua tese: no cerrado, o fogo pode surgir com o simples roçar de um galho no outro. Tamanha é a falta de umidade no ar.


- Escute bem, seu dotô! O Carioca não é um mateiro curtido pelo tempo para saber que por essas bandas o fogo pode brotar até na terra limpa. Aqui têm lagarta de fogo, têm marimbondo de fogo, e têm mato que queima feito fogo. Sem falar nos pedregulhos que no sol do meio-dia alumiam e soltam faíscas de fogo... Quem ele pensa que é, para dizer que meu pito é culpado?

O Carioca acusou o golpe. Mas preferiu não dar ouvidos ao que o outro estava falando. Por mais convincente que fossem os argumentos do oponente não mudaria sua opinião, disso estava certo. Como eram amigos, era sua vez de ouvir as lorotas que o outro contava.

O senhor Tenório que permanecera calado até aquele momento, pediu a palavra e mediou o debate. Para ele, os incêndios eram praticados por agricultores, que, na ânsia de abrir novas áreas de cultivo e pastagens, ateavam fogo na vegetação ressequida. Depois, concordou em parte com as colocações do mineirinho. Mas discordou que o fenômeno natural fosse o simples roçar de um galho no outro. Um relâmpago seria o motivo mais provável. Demonstrando possuir grande conhecimento da flora do cerrado informou que ela, quase na sua totalidade, era formada por árvores e arbustos que possuíam uma casca grossa que se assemelhava à cortiça.
Uma verdadeira obra de engenharia da natureza local. Protege o caule do fogo e têm ação moradora nas altas temperaturas.


= ~ = ~ = ~ = ~ =

Após concluir essa narrativa o ermitão me dirigiu a palavra.
- Meu jovem, Jacque... Não é esse seu nome? Que avaliação tens desta passagem com os Candangos?
- Me parece, no todo, construtiva. Mas sou mais favorável à posição do Candango Carioca.
- Ótimo! Mas naquele momento, de posse de opiniões tão divergentes e, ciente de que todas eram possuidoras de grande poder de convencimento; não tive como não concordar com todos eles. E, para não perder amizade, não quis tomar partido...

Aproveito a pausa do narrador para indagá-lo quanto à fábula do peixe pirá-brasília e de um certo lobo guará. Ele sorriu, como se minha indagação já lhe fosse esperada.

- Tudo me leva crer que o Capitão andou falando mais do que deveria. – disse-me então.
- Se não quiser tocar nesse assunto...
- Pelo contrário, apenas imaginei que não lhe fosse de grande valia. Afinal, a história não passa de uma... Digamos...
- Uma autocrítica? – intervir, como se soubesse o fardo de desilusões que acalentava na alma.

Oinotna sorriu, como prova de amizade e estima. Puxou para si o velho cajado que descansava ao lado do saco de dormir e, levantou-se sem precisar esforçar-se para assim fazê-lo.

- Você está coberto de razão, meu rapaz... Talvez a fábula exista mais em função dos meus pesadelos do que em decorrência dos acontecimentos de então. – falando assim, afastou tomando a direção da fogueira.

Faço uso da ausência do anfitrião para proceder a uma breve análise de tudo que até aquele momento vivenciara. De certo, que ele não era nenhum lunático como muitos me falavam. De tudo de que ouvira dizer e, de todos tratamentos poucos amigáveis com quais a ele se referiam, não posso negar que a alcunha de lobo lhe era perfeita. A exemplo de seu predecessor era arisco e de hábitos noturnos.

Aquela era uma noite clara, com poucas que já presenciei. Uma lua redonda brilhava com tamanha intensidade que parecia estar pairando a poucos metros do chão. Minha visão me levou crer que se me encaminhasse na sua direção, poderia toca-la com os dedos.
Pus-me a observar outros acontecimentos ao meu redor. O silêncio da noite estava tão profundo mórbido que podia escutar os sons do meu próprio corpo. Não mais se ouvia a cantoria dos grilos. A coruja já não emitia seu corrugar. Mas, do meu canto, podia divisar seus olhos grandes e aterradores a me vigiar. O capim que farfalhava ao sabor do vento estava estacado. As folhas não mais me proporcionavam o panorama de ondas lacustres que se movem em todas as direções.
Percebi-me parte daquele mundo; e prisioneiro dele.

Após seu longo ausentar-se meu anfitrião ressurgiu no meio da vegetação. Numa das mãos trazia um recipiente semelhante a uma cesta de piquenique, e na outra, um braseiro de onde luziam pedras de carvão incandescentes.
Veio ter comigo.

- Espero que aprecie chá à moda dos sertanejos?
- Nunca imaginei que os sertanejos apreciassem chá, senhor Oinotna...
- Eu também não... Contudo, reproduzirei seus costumes no trato do café para preparar nosso chá.
- Seria então... um chá-fé? – indaguei, com um sorriso pálido.

Sei que o Lobo sorriu da minha tirada hilária. Mas seus olhos amendoados não me permitiram descortinar cumplicidade e, o desalinho da farta barba donde os cabelos grisalhos eram os mais visíveis, não me permitiam colher nenhum traço de riso.
Compenetrado em produzir o chá; deu início ao cozimento como se fosse um ritual secreto. Depositou a chaleira de bico chato no solo; balbuciou palavras em língua desconhecida. Encheu o recipiente com três quartos de água, duas porções de raspa de resina, sete pitadas de ervas, e quatro pedregulhos aquecidos no carvão incandescente. Ficou silêncio; como se meditasse. Pouco depois; ergueu os braços em forma de arco, desenhou um crucifixo no ar, e emitiu um som que mais parecia um grunhido.

Adverti-me de que aquela cena era cômica, e a mistura; por demais exótica. Certamente aquela bebida haveria de me proporcionar sensações alucinantes. Era um bom motivo para apreciá-la moderadamente.

Procurei conversa para não me deixar seduzir pelo aroma que o chá exalava.
- Senhor Oinotna... É verdade que o peixe pirá-brasília ainda pode ser encontrado nesta região?
- Seja paciente meu rapaz... A noite é longa, e cabeça trabalha melhor quando o estômago não reclama por alimento. – disse-me ele, com brandura.

Concordei que sim. Ele ofereceu uma caneca de chá fumegante.
- Quantos anos o jovem amigo, têm?
- Trinta e cinco.
- É uma bela idade... Contudo, crítica.
- Crítica? Não percebo nada de crítico na minha idade! – retruquei, sem entender o motivo da sua colocação.
- Eu sei... Mas imaginemos que esta idade representa um ciclo da vida onde a razão supera a emoção.
- Bom... analisando por este ângulo... – assumi uma posição defensiva; para no momento seguinte estampar meu descontrole. - Posso afirmar que ainda me emociono!
- Eu sei... – ele não deixou se intimidar pela arrogância da minha resposta.

E partir de então, entre um gole e outro de chá, meu anfitrião passou a discorrer sobre a fábula. Em certos momentos me levou a sorrir, e em outros me levou a turvar os olhos de indignação.

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