Tenho um monte de cartas para escrever, mas cadê coragem ! Alguns ex-amores ainda me escrevem, duas ou três vezes por ano, esporadicamente é verdade, mas escrevem. Essa lembrança em forma de missivas, não posso negar, inunda-me de uma beata alegria. Geralmente não respondo. Tudo isto foi a tanto tempo. A maioria delas falam de uma época soterrada, da ausência de acontecimentos importantes, da solidão, do suicídio da vizinha, do custo de vida e do amertume de viver : tanta coisa sem importância. No final das contas, essas cartas, caídas na minha caixa postal, deixam-me indiferente : é como se realmente elas nunca tivessem existido e essa correspondência viesse parar nas minhas mãos por culpa dos excessivos extravios dos correios.
Uma delas escreve-me depois de dois anos de ausência :
"Tuas cartas são plenas de ternura e erotismo e isto produz um bem enorme na percepção do meu mundo. Como invejo essas tuas idas e vindas de uma cama para outra, de um sentimento para outro, desta dança erótica endiabrada e meio louca da tua vida. Essa semana veio, de repente, uma vontade inexplicável de te beijar. Melhor, muito melhor, uma vontade de ficar contigo até a exaustão. Rememorei alguns detalhes -senti novamente as tuas mãos acariciando o meu corpo e o teu sexo dentro da minha boca- e quase tive um orgasmo. Durante todo o dia, essa imagem erótica, acompanhou-me pelas ruas da cidade. Fui trabalhar feliz e erotizada.
Quando dizes que o passado não volta mais, acredito mesmo que temos percepções diferentes : é verdade que não podemos mais nos tocar, nem trocar longos beijos e carícias, mas existe em qualquer parte de mim essa sensualidade, este carinho e esta amizade profunda por ti e não posso deixar que o tempo destrua tudo isto, como se nosso amor fosse um velho navio abandonado que se deteriora lentamente num cais qualquer.
Depois da tua partida, fiquei sem coragem de recomeçar tudo de novo com um outro homem, mas ao tocar naquele novo corpo suave, sentí-lo dentro de mim, sua boca a beijar com avidez a minha boca, novamente todo o universo erótico e desconhecido se revelou no meu mais íntimo ser. Novamente ressuscitei para a vida. Recomeçar tudo de novo, mas sempre com a perspectiva de novas descobertas, novos rumos, novos toques, um oceano de novidades se abria diante de mim.”
Nem todas as cartas são assim; saudosistas, apaixonadas, algumas são cruéis em demasia, mesmo passado vários anos, elas chegam para fustigar o passado, remoendo lembranças, procurando uma provável saída para algo que vive sepultado. E mesmo passado tanto tempo, algumas dessas mulheres, não conseguem se desembaraçar por completo do doloroso fracasso da união. Os pretextos e as desculpas são inúmeras : acusam minha covardia, minha insensibilidade, a ausência de amor, minha falta de iniciativa e tantas outras coisas. Numa dessas cartas uma delas diz:
"Você foi um dos poucos homens que penetrou nas minhas raízes e nunca chegou a me possuir por inteira. Existia sempre qualquer coisa de errado em você, seus atos mesquinhos, palavras ferinas, ausência de sentimentos e tantas outras coisas que impediam minha entrega total. Logo no início, notei que a nossa união, era fundada em algo falso, pegajoso e irremediavelmente findado.
Algumas manhãs sentia dores horríveis em todo o corpo, como se alguém estivesse me operando, sem anestesia, pelo lado de dentro. Cada vez que me sinto desamada, tenho dores insuperáveis. O amor sem controle pode destruir nossas vidas, estou consciente disso, mas contigo era impossível não exigir sempre mais. Na verdade, desejava uma união semi-sagrada e, no entanto, consegui somente inúmeras noites de sexo e duas ou três mentiras constantes vindas na minha direção. Migalhas. Nenhuma mulher suporta a indiferença e a falta de nobres sentimentos. A primeira coisa que me aproximou de você foi a suavidade das tuas mãos; cheguei mesmo a pensar : será que sua alma é meiga e doce como as suas mãos ?
Queria tanto que tivesses sido o elo de união do meu passado com a minha vida futura. O homem que eu poderia amar com todas as forças, o meu único e verdadeiro amor. Somente contigo sentir o desejo como se fosse sal na minha boca, o medo constante dentro do ventre de te perder, a verdadeira descoberta de uma sensibilidade vital, as tuas palavras ressonando dentro da minha cabeça, tua língua na minha intimidade suculenta, revelando os montes e maravilhas do prazer sem limites.
Somente contigo a poesia do viver, o coração fragmentado das sucessivas separações depois do amor. Meus seios que se excitam e os mamilos endurecidos somente na perspectiva das carícias futuras. Minha alma que explode de dor ao suplício da tua companhia e sem poder te abraçar diante de todos. Essa mesma alma que detesta todas as outras mulheres que aproximam-se demais de ti, meu espírito que vacila inúmeras vezes ao momento do adeus, este amor que apenas começou e já é necessário a dor da separação. Uma ferida profunda, no limiar da loucura, uma embriaguês endiabrada, do jamais visto, do jamais ressentido, do veneno, do antídoto, da cocaína pura sob minha alma.”
Responder prá quê ? Tudo isto foi a tanto tempo. Não existe retorno. Tentativas. Tudo evaporou-se na esquina do tempo. Não gosto de ruminar o passado, nem gosto de pensar que, se tivesse uma outra chance, tudo teria sido diferente. Acredito que existe somente uma única chance no amor, depois, são tentativas frustadas, suposições, um quebra-cabeça impossível de realizar durante toda uma vida.
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