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Contos-->ÁGUA RASA NO RIACHO FUNDO (CAÇADA E FUGA -- 20/12/2000 - 23:05 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



O dia mal amanheceu e o lobo já estava de malas prontas para fazer uma longa viagem. Contrariado com demora do peixe em retornar do banho matinal, balbuciava reclamos:

“- Onde anda aquele nanico... Será que desistiu da fuga?”, perguntava-se ele.

Mas nada podia fazer. Fora ele mesmo que sugerira aquela despedida. E se assim o fizera, era porque não havia como não atender as súplicas chorosas do amigo.
Alheio às suas preocupações e queixumes, o peixe efetuou mais um longo e reparador mergulho. Estava preste a atingir o fundo quando lembrou do dia em que o bicho-homem-caçador fez uma tocaia para pegar o lobo.
Recordou que fora num dia tranqüilo e de chuvas esparsas. Um dia muito parecido com aquele. Estava certo de que fora ao cair da noite; quando o bicho-homem-lavrador abandonara a labuta de arar a terra.
O caçador mal chegara e já fora preparando o terreno. Arriou a carga e armou a arapuca. Eram uns dois ou três. Já não saberia afirmar quantos eram. Podia, no entanto, afirmar que trabalhavam em equipe. Enquanto um armava a arapuca o outro preparava a tocaia e, um outro, fazia a ronda de vigilância. Pelo jeito, não queriam surpresas.

Enquanto assistia a movimentação do bicho-homem-caçador, o peixe concluiu que toda aquela preparação só podia ter um propósito: eles calculavam os movimentos do lobo. Todo e qualquer movimento. Possível ou improvável.

Entrementes, alheio aos acontecimentos daquele dia, o lobo desce a colina tomando o rumo do riacho. Ele estava tranqüilo e andava descuidadamente.
O solo arenoso coberto por uma camada de gramíneas ressequidas proporcionava-lhe a sensação de estar pisando em agulhas. No entanto, elas não lhe causavam nenhum ferimento.
O lobo sorriu, quando as patas tocaram no solo da vegetação ribeirinha. Úmida e fofa.
Ao atravessar a clareira pulou por sobre o tronco do pau-d’óleo que caíra sob a força da ação do tempo. O barulho das folhas secas ao serem esmagadas pelo peso corpo fez um bando de rolinha voar; assustadas.
O lobo sorriu, mais uma vez. Desta feita, pelo resultado da sua traquinagem. Começou a cantarolar.

Enquanto o lobo só era felicidade; o peixe procurava se alojar em um local que lhe propiciasse um melhor ângulo de visão. Não queria perder os acontecimentos. E quem sabe, encontrar uma oportunidade para influenciar no desfecho daquela trama sórdida.
Após hesitar; optou por uma pedra próximo à arapuca. Rastejou por entre a vegetação e se alojou no lugar previamente escolhido.
Não fora feliz naquela escolha. Fizera uma opção por demais perigosa. Ficara na linha de fogo. Seu esconderijo não lhe permitia mover um músculo sequer. A sentinela já estava preparando a mira.

“Que posso fazer... O Guará vai ser covardemente assassinado!”, reconhecendo seu erro e; procurou se justificar.

Olhou para o céu, e viu a lua redonda ser engolida por uma nuvem escura. Teve certeza que era um mau presságio. No entanto, prevendo que o caçador podia localiza-lo, conteve o desejo de bater na madeira; três vezes. A coruja voou após um corrugar triste. Os grilos emudeceram. A lua varou as nuvens e emergiu do outro lado; enfraquecida pelo véu negro.

“Quem me dera ser grande e forte; que nem o lobo ou o boi Zebu!”, desejou ele, então.

Escutou um estalido de galho seco ser quebrado. Sentiu a brisa soprar anunciando mais uma noite fria. E observou as folhas do capim balançarem ao sabor do vento.

- Me dê forças meu Deus! - sussurrou, na ânsia de ser atendido.

Esticou o pescoço, e ficou na ponta do rabo procurando divisar quem era o visitante que se aproximava. Escutou outro estalido. Pareceu-lhe que este ocorreu mais próximo. E logo outros mais também se fizeram ouvir.
“Será que é o Guará que está chegando?” - desejou saber, em aflição.
Levantou os olhos ao céu.
Quis fazer uma prece... Lembrou que não sabia.
Viu o artilheiro engatilhando o bacamarte.
Tentou gritar... Não teve forças.
Recordou dos bons momentos que passara ao lado do lobo.
Pensou em chorar... Não teve lágrimas.
Imaginou um corpo estendido no chão.
Quis correr ao seu socorro... Não teve pernas.
O vulto que rompia as sombras estava mais perto, cada vez mais perto.
O bicho-homem-sentinela apontou a direção, e outro, fez mira com o bacamarte.

O peixe gritou, em grito inaudível: - cuidado Guará...! Cui-da-do...!

Na tocaia o caçador sorriu vingativo. Já comemorava o resultado da caçada prevendo que tudo estava ocorrendo conforme fora planejado.
Lá do alto seu posto, mentalmente, o artilheiro pedia ao seu alvo: só mais um passo... só mais um passo... só mais um passo!

Até hoje nenhum habitante da mata sabe explicar o que aconteceu. Só se escuta dizer, que por algum motivo muito forte o bicho-homem-caçador fugiu apavorado. Quando acabou todo aquele reboliço; encontraram o peixe estendido no chão. Tremendo de frio e pavor; como se houvesse acordado de um pesadelo terrível.

“Será que o bicho-homem-caçador descobriu que fui eu quem desarmou a arapuca... Será que ainda se recorda daquele dia?”, indagou-se, deixando a boca desenhar uma ruga de sorriso.

E como advertência, sentiu uma pontada no coração.

“É, se o deputado foi capaz de fazer uma maldade daquelas com o boi Zebu; tenho certeza que comigo será ainda mais cruel!, advertiu-se. O melhor que tenho a fazer: é fugir enquanto é tempo. E se possível, para bem longe; para um lugar inacessível.”

Entregou-se mais uma vez ao sabor da ação benéfica das águas do riacho. Entregou-se ao sabor das forças da natureza que por toda vida o acolheu no seu ovário materno. Permitiu que ela confortasse suas dores e tristezas.
Após alguns minutos de prazer e gozo; foi emergindo. Foi emergindo suave e lentamente. Tão suave e lentamente que ficou boiando no espelho de água.

Inadvertidamente; escutou um estampido ensurdecedor. Depois gritos e grunhidos de cachorro enfurecido.

- Pega! Pega! Pega!
- Cerca pelo outro lado... Não deixa ele fugir!
- Pega! Pega! Pega!

“Meu Deus!! Estou no inferno ou será que é o fim do mundo!”, quis saber, então.

O estampido ensurdecedor voltou a ecoar na mata; e depois outro, e outro mais. E o ar ficou impregnando com cheiro da fumaça fétida.

- Pega! Pega! Pega! - gritava uma voz estridente.
- Eu quero a cabeça! - gritava uma segunda.
- Eu quero as patas! - uma outra.

O peixe sentiu o corpo ser envolvido pela teia de aranha. Percebeu-se como um mosquito, indefeso. Dedos gigantes estrangularam seu pescoço. O corpo pequeno e frágil foi rapidamente imobilizado.

- Joga no balde, joga no balde!
- Tampa..., tampa! Tampa logo. Ele vai fugir!
- Onde está o outro? - gritou um bicho-homem com feição descomunal. - Onde está o outro? - gritou ainda mais alto.

E foi assim, em meio a um alarido que o peixe pode atestar a esperteza do bicho-homem-caçador. Teve certeza: ele não esqueceu a derrota e retornou para se vingar.

“Se ele é capaz de guardar rancor por tanto tempo, imagine o pode fazer comigo!”, choramingou. É... não existem leis e nem limites para o bicho-homem... Ele está acima de tudo e de todos!”, concluiu ele, no exato momento em que a sua prisão se fechou e se fez escuridão”.

Quando deu por si, encontrava-se num descampado. Era um salão iluminado por dezenas de soiszinhos. Centenas, talvez, milhares; não soube ao certo precisar. Todos aqueles pequenos sóis afugentavam a noite e a sua amiga e protetora escuridão.
Pôs-se a admirar aquela invenção maravilhosa. A grande e luminosa invenção do bicho-homem. Tudo era como o amigo lobo lhe contara. Tudo era incrível e indescritivelmente lindo.
Buscou, por várias vezes, alcançar a borda das paredes que o circundavam. Não conseguiu. Elas estavam além; muito além do seu alcance. Teve certeza: uma tentativa de fuga fora prevista por seus raptores.

“Será que lá fora existe uma cidade... Será verdade que está repleta de palácios... E as ruas cobertas de lama preta... Será verdade? Será?!”, indagava-se ele, em curiosidade aflita.

Abruptamente, um novo acontecimento fê-lo interromper as suas indagações. Escutou um barulho seco e o ranger de porta. No fundo da sala uma passagem abriu e se fechou; abriu e se fechou; abriu e se fechou.
Uma alegre e festiva comitiva do bicho-homem veio visitar o ilustre prisioneiro.

- Doutor! Doutor! Primeiro; vamos descobrir se o safado é macho ou fêmea... Depois, a gente come o danado assado! - e sorriu, com prazer diabólico.
- Aprovado! - respondeu o outro, babando de prazer.

Aquela proposta fez o peixe procurar abrigo na transparência do vidro. Não havia onde se esconder, aquela barreira era intransponível.

- Pra mim ele tem cara de bicha! - sentenciou uma voz miúda, na ponta da fila.
Era um bicho-homem-nanico que com um gesto cômico fixou nas narinas um par de espelhos.

- Calma, pessoal; que tal uma aposta? Quem perder paga uma rodada de cerveja! – o mediador demonstrou comando sobre os demais.
- Tudo bem, tudo bem! - falou o tal doutor. - Mas vamos fazer um trato: na aposta também está incluído o tira-gosto.
Todos concordaram e entoaram coro: valeu doutor, estou contigo e não abro!

Encurralado na transparência do vidro, o peixe bradava ameaçavas. Sem, no entanto, se fazer ouvir.

“- Não encostem um dedo em mim... vocês não sabem com quem estão mexendo... NÃO SE ATREVAM! - gritou, quando dedos encalecidos estrangularam seu pescoço”.

Coitado do peixe Pirá; ficou estendido na mesa fria como se fosse um pastel. Foi medido, pesado, bolinado, e finalmente; fotografado. No entanto, permaneceu firme e impassível. Tão firme e impassível que não percebeu o momento em que o bicho-homem bolinou suas partes íntimas.
Depois de algum tempo, para ele interminável, foi devolvido à tina transparente. Ficou imóvel e emudecido; como se fosse um cordeiro que acabara de ser imolado.

- E aí, pescador de meia tigela... A conta é sua! Você não entende de minhoca e quer entender de peixe! – advertiu o doutor.
- Ok, eu aceito a gozação! Mas tem o seguinte: quem quiser molhar os beiços vai ter que ir até o Guará!
- Fazer o quê no Guará? - quis saber o baixinho de óculos.
- Estou sem grana... Lá, penduro a dolorosa. - informou o outro.
- Guará I ou Guará II? - quis saber o primeiro.
- Guará I... No Bar do Brechó! - confirmou o outro.
- Então o tira-gosto vai ser peixe na telha! - interveio o doutor.
- Tira-gosto de Pirá! - complementou o baixinho.

O peixe que mal recobrara os sentidos; escutou pedaços da fala do bicho-homem. Ficou temeroso. Não com a menção ao seu respeito. Foi a citação do amigo lobo que o deixara apavorado; imaginando que o pior já havia acontecido.

Só podia ser, ele escutou claramente quando um alguém indagou ao outro: no Guará I ou no Guará II?

“O que fizeram com o pobre do Guará... Será que o coitado está pendurado na porteira que nem o Boi Zebu... Será que virou espantalho da casa do bicho-homem?”, indagava-se ele, prevendo o pior.

Vivendo a dor daquela incerteza, derramou algumas lágrimas. Poucas, mas doídas. Fitou o infinito buscando encontrar consolo. Deixou se envolver pelas lembranças do primeiro encontro que mantivera com o lobo. Foi numa tarde de domingo. Quantas alegrias. Uma chuva fina caía como se fosse uma nuvem de fumaça branca.
Naquele momento, só se interessou por lembranças felizes. Quando tudo era tranqüilidade, paz e alegria.
Mas aquelas inesquecíveis imagens do passado foram engolidas pelas do presente: Viu a cabeça do lobo pendurada no portão do Guará I; o corpo pendurado no portão do Guará II, e, em sua volta, uma multidão em risos e cantorias.
Uma multidão a gritar:

- Olha o lobo, olha o lobo! Como ele é bonitinho... - diziam os bichos grandes para os pequenos.
- Posso caçar lobo, papai? – quis saber um rapazote
- Eu também quero ir, mamãe! - gritou um pixote.
- Está aberta a temporada de caças! - gritou do alto do palanque um velho com cara de político matreiro. - Quem trouxer o maior, vai ganhar um carro importado! - complementou o dito cujo.

O peixe afastou aquela cena com um grito:

- NÃOOOOOOOO.

Voltou à realidade do presente. Passou a se preocupar com seu próprio destino. Recordou do Riacho Fundo, do pai, do avô e do bicho-homem-lunático que se ocupava de capturar peixes e depois devolvê-los ao riacho.

“Tudo isso é culpa daquele intrometido... Foi ele que inventou esta história de chamar meu avô de Pirá Brasília. Se não fosse por ele, eu não estaria aqui, prestes a ter minha cabeça pendurada no portão da cidade... Mas logo eu, que sou tão miudinho; ninguém vai ver minha cabeça na porteira!”, concluiu, angustiantes pensamentos.

Como sempre, desejou ser grande e forte. Só que desta vez, queria ser maior que o lobo. Queria ser um super herói com armas espaciais e armaduras indestrutíveis. Tal qual o Jaspion, o Changermam ou os Cavaleiros do Zodíaco. Só por um minuto, era só de um minuto que precisava. Em um minuto destruiria a cidade e o desalmado do bicho-homem.
Resignou-se, nada podia fazer, nada! A não ser, esperar o momento de se tornar o animal símbolo da cidade, e ter sua cabeça fincada numa estaca.


- Que se cumpra meu destino! - gritou, com lágrimas nos olhos. - Serei o símbolo desta cidade de verdugos! - concluiu, e fez um gesto indecente com a barbatana.

Entregue ao sabor da sorte, recordou-se que o lobo lhe contara que a cidade do bicho-homem parecia um avião: nas asas mora o bicho-homem rico, na cauda o milico, e na cabina de comando empresário e político.
Este último mandava e desmandava, fazia a maior roubalheira e tudo acabava em pizzas.

“O que posso fazer para acabar com esta corja de incompetentes! Ou melhor, com este algoz da natureza? Acho bom ele tomar cuidado... Senão, quando abrir o olho, já terá sido enganado pelo bicho-homem-americano!,” praguejou, ele.

- Vamos lá cambada, isto é pra hoje! Ainda temos muito serviço pela frente!
- Ele escorrega que nem quiabo! - alguém se defendeu, da sua falta de prática no ofício.
- Aperta a cabeça dele! - gritou o mais entendido no assunto.
- Fechem a tampa direito. Não se esqueçam que é liso que nem sabão! - gritou o baixinho de óculos.
- Ô, doutor! Por volta da seis horas, eu venho te buscar pra gente comer o peixe assado na brasa! Vai preparando a barriga que a iguaria é de primeira! - e falando assim, sorriu; um sorriso asqueroso.
- Tudo bem, vou ficar esperando... Mas tomem cuidado com a imprensa. Não deixe ela saber! - e sorriu, um sorriso amarelo.
- Deixa comigo, doutor... Eu tenho prática no assunto! - gritou, e saiu correndo com o balde colorido na mão.

O peixe admitiu que aquela viagem em nada poderia ser comparada com a anterior. Nesta, tudo era executado com desleixo. O sacolejar do seu aquário portátil era intenso.
Foram inumeráveis e nauseantes.

- Onde foi feita a coleta?
- Sei lá! Não fui eu que fiz as anotações? - desculpou-se o outro.
- Foi o Marcelo; ele só serve para isso! - respondeu o baixinho de óculos.
- Ô, Marcelo! Onde foi feita a coleta? - gritou o chefe.
- Foi perto daquela pedra... Ali, perto da touceira de capim! Têm que desovar ali, ali!
- Jorge, vai até lá, e liberta o garanhão... Já estamos atrasados! - gritou, assustando o subordinado.
- Mas tudo eu! Tudo eu!

E... TIBUMMMMM.

O prisioneiro não pensou duas vezes. Fugiu com a velocidade do medo e caiu num buraco profundo. Afundou no meio do lodo. Cobriu o corpo com folhas que já se encontravam em azedume.
Agradecido pelo bafejo da sorte, o fugitivo não mediu esforços para evitar uma nova prisão. Estava certo de que uma oportunidade igual aquela jamais ocorreria duas vezes. E enquanto teve dúvidas de sua segurança, tratou de evitar qualquer movimento que denunciasse seu paradeiro.

Aquele lhe foi um dia de longas horas. Pareceu-lhe que jamais teria fim. Ficou escondido. Muito além do que lhe era recomendado.
Somente quando teve certeza que o perigo passara; atreveu-se a sair do esconderijo. Sorrateiramente, deixou-se emergir. Flutuou silencioso como se fosse uma bexiga colorida que escapuliu das mãos de uma criança.
Olhou ao derredor e, não viu ninguém. Nenhum vestígio dos raptores.
“E o Guará! E o Guará! – indagava-se o fugitivo”.

Desejando que tudo não passasse de um pesadelo ou, que um milagre houvesse ocorrido; nadou rio acima e depois rio abaixo. Não encontrou nenhum vestígio do lobo. Nenhuma pegada. Só encontrou o rastro de capim amassado revelando-lhe que ali ocorrera uma luta sangrenta.
Não se deu por satisfeito. Abandonou a busca e foi ter com a cobra. Desejou que ela tivesse algo há lhe revelar. Talvez, um detalhe muito importante que lhe passara desapercebido.

- Dona cobra; a senhora viu por aí, o lobo Guará?
- Não vi não, Pirá! Mas posso te dizer que o vaga-lume, que vive acordando a noite, tem notícias dele.
O peixe mais que depressa, com o coração na mão, foi ter com o vaga-lume.

- Seu vaga-lume; o amigo sabe do paradeiro do lobo Guará. Aquele lobo ranzinza que sempre vinha me visitar!

O vaga-lume, que sempre dizia que não sabia mentir, respondeu-lhe:
- Óia Pirá... Vê, eu não vi não! Mas pela quantidade de chumbo que levou; já morreu há muito tempo e virou tapete do bicho-homem.

O peixe perdeu a esperança. Já não havia como acreditar na possibilidade de milagre. Procurara em todas as trilhas e por baixo de todos arbustos e não encontrara. Consultara outros moradores do riacho e ninguém soubera informar o paradeiro do lobo.
Desistiu da busca. Abatido tomou rumo da sua morada.
Uma voz rouca quebrou o silêncio de tristeza do peixe:

- Seu Pirá. Seu Pirá!
- Pois não... quem me chama? - indagou, de sobressalto.
- Sou eu, dona coruja! Mas me pode me chamar de dona Filomena.
- Pois não, dona Filomena. Em que posso lhe ser útil?
- Obrigada por sua bondade; meu jovem... É que esses meus olhos grandes não podem deixar de ver sua tristeza! - falou-lhe, com voz materna.
- Sabe dona Filomena; perdi meu melhor amigo... O bom e velho lobo Guará! Não sei o que será de minha vida, não sei...
- Você está falando daquele lobo ranzinza! - interveio a coruja, com firmeza.
- É dele mesmo, dona Filomena! Do lobo Guará!
- Sossegue seu coração meu rapaz. Você não sabe que vaso ruim não quebra?
- Sei, dona Filomena... Mas meu amigo virou tapete do bicho-homem!

A coruja ficou enfurecida.
- Aquele ladrão de galinhas está vivo, seu bobo! Tenho certeza que anda infernizando algum galinheiro!
- Ele está vivo? - gritou o peixe. - Está vivinho... vivinho?!
- Claro! Deve estar com o rabo queimado pelo fogo do bacamarte. Mas, pelo que sei, é muito pouco pra deixar ele de cama.
- Ainda bem! Não sei se poderia me conformar com a sua perda. Preferiria mil vezes que fosse comigo!
- Vá para casa meu rapaz, descanse! Você fez uma longa viagem. E olhe que tem muita sorte; eu nunca vi nenhum peixe voltar inteiro da cidade do bicho-homem.

O peixe saiu saltitando de alegria. Toda a angústia que sentia como por encanto se desfez. Agradeceu aos amigos da floresta: as plantas, a água, as pedras e os animais. E para sua própria surpresa, pegou-se agradecendo a sujeira do bicho-homem que boiava no rio. Naquele momento, tudo lhe era bem vindo, tudo lhe era bem quisto.
Refeito do sofrimento e desenganos, mergulhou nas águas frias do riacho e, enroscou-se numa camisa de Vênus, fabricada na China. Quase morreu sufocado. Somente após uma intensa luta corporal conseguiu se libertar. Sem, no entanto, se dar conta de que aquela engenhoca grotesca lhe era benéfica. Fora inventado para conter ao crescimento populacional do bicho-homem.

Temendo que seu caminho estivesse repleto de armadilhas, nadou pela linha da água. Procurou não se deixar seduzir pela beleza dos objetos que foram abandonados nas margens do riacho: carcaça de pneu fabricada nos USA; bateria de telefone fabricado na China, e garrafas descartáveis fabricadas em São Paulo.

“- Tudo isso é a nova mania do bicho-homem, Pirá! Importar lixo do primeiro mundo... coisa chique, coisa de subdesenvolvido!”, previu ele; que era exatamente isso que o lobo lhe diria se ali estivesse.



FIM

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