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Contos-->BOLETIM DE OCORRÊNCIA -- 11/03/2005 - 19:21 (Luis Gonçalves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Boletim de Ocorrência
Luís Gonçalves
Gentes de diversas bandas começaram a desembarcar na terrinha, ávidos para apreciarem a beleza rara do lugar.
Começavam os saraus nas praias, para saudar a grandiosa lua cheia. Realizados lá na Baía da Palha. Belíssima praia de água doce. Alinhado igual os desfiles de modas. A saúde das donzelas era debutada nesses saraus, para revirar os olhos dos marmanjos. Matéria prima que nunca faltou em Cáceres, é a danada da mulher. As sirigaitas pareciam dar em árvores, semelhante à flor de laranjeira. E caíam na folia parecendo às mangas maduras. A concorrência era grande. Cansei de ver mulheres gestante, calejada de fazer novena para ter um filho homem. Queria poupar a prole da concorrência acirrada.
— Vamos que vamos! Hoje tem batuque na praia.
— Estou nessa, xará!
Tudo começou numa fatídica sexta-feira. Quando a lua despontou, pintando o rio com reflexos insinuantes — encontrou o couro tinindo, a galera cantando e o batuque no pé. Os grupos se esbaldavam na areia fina, do feitio de um véu da mãe d’água. Ao clarão das fogueiras a emoção girava solta. O ritmo era um só: corpos frenéticos, bocas ardentes e um salto perfeito. Roncos, gemidos, gritos e pavor. Estalos de dentes, carne rasgando, ossos quebrando e o cheiro macabro de sangue.
— Você ouviu?
— Ouviu o quê?
É fácil achar que se enganou num momento desse. Mas a realidade é fato contrário. Às vezes má, dura, nua e crua. A perca é irreparável, não há linha suficiente para o remendo. Tudo acaba no acostamento do fim. No meio-fio do nada. No precipício do destino. Na trincheira da dor.
A madrugada agitada deu lugar a uma manhã triste e dolosa. A polícia procurava um suspeito. Um corpo feminino sem vida, estendido na areia, apresentava cortes profundos: seios arrancados e vagina dilacerada.
Era o fim do sarau no local.
Os conservadores denunciavam o culto ao demônio e o sacrifício da vítima. Os foliões foram cambiados para a delegacia a fim de prestarem depoimento. Na cidade os jornais estampavam as fotos macabras na primeira página e a televisão fazia as tomadas simultâneas do local. Todos condenavam a barbárie. Em menos de quarenta e oito horas a polícia prendia o primeiro suspeito para averiguação: um pescador bêbado que se encontrava dormindo no interior de uma canoa, próximo ao local.
A população revoltada tentou linchar o suspeito. Enquadraram o infeliz: passou a ser o inimigo número um da cidade. Com cortes e escoriações, e, guarda bem montada de carcereiros — o cidadão foi cambiado para o presídio Carumbé na Capital. Três dias depois, regressaria morto para a cidade de origem. As imagens transmitidas via televisão chocou a opinião carcerária — foi executado pelos companheiros de cela, revoltados com a notícia do crime supostamente praticado pelo detento.
Com o enterro do cidadão o assunto chegava a um denominador comum. A paz voltava a reinar e a gurizada regressava as ruas com força total. O batuque ganhava o coreto das praças e os bancos de concreto garantiam a platéia. A Praça Barão do Rio Branco passava a ser o novo palco da alegria.
Vieram as gincanas e os disputadíssimos passeios ciclístico; passeios de barcos e o Festival Internacional de Pesca. Que posteriormente, acabou conquistando a rapaziada do venha nós vosso reino nada. A jogada de marketing era pagode, suor e muita mulher bonita despachando alto suíngue para a galera. Deu certo, veio o reconhecimento no guinners book, tornou-se o maior festival de pesca, do mundo, realizado em água doce.
Nesse ínterim, uma série de agito visava encontrar uma candidata à altura para representar a cidade no concurso Miss Mato Grosso. Do bairro Cavalhada, vinha uma sinhazinha moldada à ponta de dedo pelo sagrado deus da beleza. Revestida de um jogo de cintura inebriante e dada a fazer o ar da santa graça nas rodas dos boêmios. Varava a madrugada trotando ao som do ronco do bombo.
— Ha sujeita boa de engenho!
Só via vagabundo de olho comprido para o lado da sirigaita. A bicha era mesmo malfeitora de nascença, não havia porque negar. Volta e meia, e lá estava amaciando colchão deste ou aquele sujeito afoito a revelia do prazer carnal.
Era o alto preço da beleza. A bicha era mais requisitada do que carne-seca para paçoca de pilão, não curtia o assédio da solidão. Infelizmente, é a lei de mercado: quem procura acha.
Na sexta-feira junina véspera da festa de dona Pedrosa, filha de Pedro Bó, neto de Simião — o pessoal resolveu aprontar um sarau intimo só para os festeiros. Não foi longe, o terreiro da casa estava tomado pelos agitadores e parecia à prévia da festa que aconteceria na noite do sábado seguinte. Era relho no couro e suor na testa.
Chegando a madrugada, os foliões deixaram o local da festa e desceram rua abaixo fazendo o batuque estremecer os paredões de adobe por onde passavam. Ao chegarem na metade do bairro Cavalhada — onde fica aquela fileira de mangueiras graúdas, resolveram inflamar a coisa ali mesmo. Os cães ladravam e a coruja piava ruidosa na copa das árvores. Uma brisa fresca saudava a madrugada. Corpos suados desabavam pela grama rasteira. Beijos ardentes aqueciam os corpos frenéticos. Igual açoite a festa vadia de fundo expandia.
Grunhidos intermitentes. Dor. Muita dor. Um vulto na noite ganhou movimento. Era ágil, sorrateiro e fatal. Vozes sufocadas, vida ceifada. O cheiro de sangue jorrado se espalhava embalado pela marola matutina. O córrego Sangradouro deslizava as águas lentamente para a Mini Praia, numa agonia interminável e um lamento mudo e penoso.
— Por quê?
— Onde??
Foi assim: em dado momento sorria, no outro dançava e posteriormente morria. Os seios dilacerados, o sexo destruído e o rosto desfigurado. A cidade perdia a grande concorrente. Os amigos a “bundista” (variedade de dançarina, difundida na região, que utiliza a sensualidade das nádegas para dançar). Esvaía com ela também a santa paz do lugar.
— Que Deus a tenha!
Insegura a polícia teve que admitir a má interpretação do assassinato anterior. Começava a cobrança tardia pela vida do infeliz pescador acusado prematuramente. E o medo crescia e ganhava forma em cada esquina: muro alto, casa com grades e alarmes dos presídios domiciliares.
A festa de dona Pedrosa foi cancelada. Tiraram o terço, do feitio que manda a devoção. A Polícia Civil compareceu no local para interrogar os suspeitos. Fez a reconstituição dos fatos, desde a saída da casa de dona Pedrosa, até a chegada no local — conferiram todos os integrantes do cordão. Numa operação em conjunto com a Polícia Militar deram uma batida no local. Não encontraram a arma do crime.
Após as investigações preliminares, o moroso relatório policial concluía que o crime era passional. Afirmando que o criminoso era um namorado traído. Ficando explicado a verossimilhança dos dois assassinatos. O problema era identificar o sujeito na vasta lista de suspeitos: pretendentes, amigos, enamorados e amantes cativos. O grosso da tropa pertencia a famílias influentes e a investigação perdeu o fio da meada.
A polícia resolve encerrar as investigações do caso, após informar que as novas diligências — nada adicionaram além do sabido de todos. O relatório induzia a crer que era um caso isolado de loucura de algum maníaco temporário — deveria ter excedido as drogas. Uma espécie de overdose criminosa repentina.
Caso encerrado!
Sem mais aborrecimentos, todos foram engrossar a corriola dos foliões do “Curusé”. Que parece uma mistura de carnaval baiano com a procissão revolucionária peruana. A peregrinação perdurava até quarenta dias. Em cada terreiro a baderna era a mesma. Regada a uma boa “chicha” — bebida indígena feita de milho, adotada pelos nativos da fronteira e posteriormente trazida para a cidade — de grande teor embriagático.
Gostei da folia. Uma das festas públicas mais bonita que pude presenciar. A animação contagiava todo mundo e era um arrastão sadio que arrasava a periferia enchendo a galera de boas intenções. O cordão estava no sangue das pessoas do lugar — onde a vida não parava com a tristeza e nem perecia com o marasmo.
Com todo esse aparato, a folia aportou no terreiro de Lilica, sobrinha de Fiínha de Zé Grande — na Ave Maria. No momento, que o tempo fica lusco-fusco com a chegada da noite. O sol estava entra não entra, colocando fim em mais uma sexta-feira típica do paraíso tropical. O povo foi se acomodando, feito formiga em bolo doce. Era o batizado do filho mais velho da dona da casa. A garotada pulava no salão do feitio de galinha recém degolada. A cuia de “chicha” rodava de mão em mão, fermentando o ânimo dos foliões.
A gurizada não degustava a iguaria — optando pela caipirinha: pinga, limão rosa e açúcar. Na época se comprava a pinga de saco — também, em cada roça havia um canavial e no meio um alambique.
Na manhã de sábado, que começou ensolarado, desde o romper do novo dia, tipicamente cacerense, a música calou. Os instrumentos foram devolvidos ao alforje — deixando o silêncio e a dor. Outro crime, o mesmo massacre e nenhuma resposta.
— Vote! Cruz credo.
Espichada no fundo da casa estava a vítima. Ou pelo menos o que restou dela. Um corpo dilacerado retalhado com fúria. Cenas de choro e desolação. Apavorada a população voltava a ser sacudida com mais uma cena nefasta — trancando-se em casa, com medo de tudo e de todos.
A gurizada não era a única culpada ou suspeita. Havia uma boa quantidade de gente idosa no local. E ninguém viu nada. A própria polícia não encontrava uma explicação convincente para dar a sociedade amedrontada.
Nesse ano o carnaval estava comprometido. Os pais não saíam de casa à noite e não deixavam os filhos saírem. Buscando solução para o impasse a polícia foi intimada a tomar uma iniciativa que devolvesse a tranqüilidade à população visando restaurar a paz.
Para ganhar tempo, embora sabendo que se tratava de uma manobra perigosa — a polícia andou detendo vários integrantes de torcidas organizadas, tribos rivais e líderes de gangues dos bairros; concluindo que eram os suspeitos pela selvageria.
A versão policial dava conta que tudo havia iniciado quando a torcida organizada, do Crocodilo do Pantanal, time de futebol local — para impor respeito, nos estádios, cometeu o primeiro assassinato. Infelizmente a vítima pertencia à outra tribo que não mantinha intimidade com o futebol. Que resolveu vingar o sucedido, cometendo o segundo crime com a mesma violência. A gangue dos sambistas Come Água, sentiu-se ofendida e acuada. Para não perder espaço e adeptos, apelou revidando o ataque. Estava explicado o enigma do inexplicável: por quê os crimes eram idênticos?!?
Alguns catedráticos saíram em defesa, concluindo que a polícia estava certa em gradear a rapaziada. Com os líderes atrás das grades a militância das tribos ficaria limitada. Pelos vândalos praticados nas ruas, boates, danceterias e estádios de futebol — a gurizada ficava em baixa com a mídia, que caía metendo o pau em cima da malandragem juvenil.
Vários profissionais de saúde mental foram ao ar no horário nobre, procurando dar o recadinho calmante para a sociedade, alimentando a consistência das abordagens policiais — fazendo jus às acusações. Achavam belas coincidências em tudo. Variando desde a cor e tamanho das calcinhas das vítimas seguindo até o modelo dos sutiãs usados. Os detalhes eram bem esmiuçados visando a boa compreensão dos fatos
Basta ver que uma perita em astrologia, afirmou que durante os assassinatos ocorridos — no céu o sol transitava em Aquário. A lua atingia a fase quarto minguante em Escorpião e Mercúrio se relacionava bem com Saturno. Estava armado o barraco grego. Segundo os conhecimentos de outro especialista, essa combinação deveria gerar paz e amor, sem eclodir em violência. A astróloga defendeu-se contradizendo a todos que: depois da tempestade que vem a bonança e que todo amor zela pelo bom aconchego do ódio. O que estaria prevalecendo no momento.
Um psicólogo virtual interveio na discussão afirmando, que: a mente vazia é oficina do diabo. Concluindo que o perfil do assassino era de uma pessoa ociosa: ex-açougueiro, narcisista e inconformado com a injustiça social. Em protesto o meliante exigia: cortes profundos na carne.
A movimentação da massa catedrática serviu para colocar o povo nauseabundo de novo nas ruas. Salvando o carnaval pantaneiro que caminhava para o marasmo total. Sem os dólares dos turistas festeiros a cidade ameaçava falir. Logo os Blocos Carnavalescos estavam disputando os espaços das ruas novamente e tudo não passava de meras preocupações dos cuidadosos.
Depois de inflamados no batuque, nada conseguiu brecar a emoção do povo que não cansava de ser feliz. Foram quatro dias de intensa folia. A beberagem corria solta, sem notar que o perigo de morte sorrateira rondava traiçoeiramente.
Após a quarta-feira de cinzas, veio o doloso sábado com uma infindável procissão para o enterro dos ossos. Eram cadáveres produzidos com o mesmo requinte de crueldade. Tombou moças de família abastadas, gente de tradição. Moças belas e saudáveis. Puras, igual à primeira brisa matutina. Ricas e pobres, sem distinção pereceram da mesma forma. A protegida do Padre, apareceu sem os seios e o sexo na porta da Catedral.
Iniciava a Quaresma e o povo temendo o demônio matador que espalhava o terror na cidade. O desespero cresceu alcançando a Capital, que sensibilizada, enviou um perito para coordenar as investigações. Os líderes das gangues, tribos e torcidas organizadas, foram colocados em liberdade por falta de prova.
Revoltados, todos os seguimentos se uniram numa ação conjunta, processando o Estado por danos morais e discriminações, dos fundamentos básicos da libertinagem adolescente — incluindo as agressões e maus tratos sofridos na prisão.
O técnico em criminologia, enviado pela Secretaria de Segurança Pública, constatou que os cortes não eram produzidos por arma alguma. Deduzia que era mordida, dentada. Dentes, presas ou garras afiadas — movidas à força descomunal.
Desencadeou a busca atrás da suposta fera, grande e forte, que deveria estar escondida em algum lugar dos arredores da cidade. De onde preparava os ataques mortais. Foram feitas várias diligências nos lugares suspeitos de alojar a criatura. Mas nada foi encontrado. Nem abrigo, nem fera, nem coisa alguma.
O profissional liberou outro boletim com fatos mais esclarecedores. O novo trabalho elaborado era rico em detalhes surpreendentes a respeito do maníaco. As investigações sugeriam que a criatura deveria ter pelo menos um metro e meio de altura; movia-se com rapidez fantástica e o mais interessante: continha pêlos do feitio de lobos. Foram encontrados nas unhas de uma das vítimas pêlos semelhantes.
Bastou para a população levar a crer que os ataques vinham de um lobisomem. Proliferou as caçadas, visando agarrar a fera ensandecida. Nas noites de sextas-feiras, saíam grupos armados com balas de prata, facas fervidas no alho e talo de taquara verde.
Segundos os especialistas em lobisomem, o animal só morre atingido mortalmente com balas de pratas e que tenha cruz na ponta. Ou ferido com a faca fervida no alho na sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Se conseguir alcançá-lo a tempo de dar três lambadas em cruz no lombo — com o broto da taquara verde, a fera, perde o encanto na hora.
Os mais velhos não aconselham o método considerando-o perigoso. Envergonhado, o indivíduo após perder a força da mutação, faz jura de morte em quem vem a conhecer a identidade secreta.
Baseado nas informações legais, e pressionado pela sociedade que cobrava a solução imediata do caso — o Governador resolveu criar uma delegacia especializada em crimes envolvendo criaturas do folclore místico. Foram destinadas as verbas da Educação e Saúde, para custear as contratações dos profissionais e a implantação do projeto. O candidato às vagas deveria mostrar habilidade e conhecimentos na arte de lidar com as feras e assombrações noturnas.
Veio do nordeste do País, ministrar o workshop um ilustre Coronel conhecido pela grande habilidade no manejo de tratar com os lobisomens. Após breves averiguações, o Coronel assegurou que tratava de um animal entendido e escolado na arte de matar.
Imediatamente providenciou a exumação dos corpos, assegurando que todo lobisomem — após sete dias, vem buscar a cabeça das vítimas, guardando-as igual um troféu. Nesse caso era só procurar nas casas e apanhar a fera no ninho. Para não invadirem a privacidade dos munícipes e instigar a fúria dos órgãos de defesa dos Direitos Humanos. Foram infiltrados vários agentes especiais no contigente “fumacê” da SUCAM — que penetravam as residências para efetuarem a detetização, contra os mosquitos transmissores da Dengue.
Essa prática não foi adiante por dois motivos: os corpos só foram enterrados muito tempo depois ficaram aguardando a liberação do IML; e logo em seguida a comunidade ficou a par da situação, dando início a chiadeira.
O Coronel achou melhor distribuir as cabeças das vítimas para a tropa. Quando o animal desenterrasse os cadáveres e descobrisse que estavam sem os ditos troféus ia sair a procurá-lo. Não era nem preciso ir até o bicho, o bicho iria até a tropa.
Em lote de cinco, seis a patrulha passeava pelas ruas da cidade em noite de sexta-feira de lua cheia — cada qual exibindo uma das cabeças das vítimas. De longe dava para sentir o cheiro que exalava da putrefação, o povo fechava as portas e janelas.
O Bispo foi logo criando atrito com “o pelotão perfumado”, assim a galera dizia — contra a profanação do repouso mortal e o sacrilégio pagão que violava o sagrado direito dos mortos terem um descanso em paz nos túmulos.
A operação foi suspensa, falta de resultados concretos e o Coronel indignado com a intervenção da autoridade eclesiástica, acusou o Reverendo de cúmplice do suposto lobisomem. Intimando o suspeito a depor embaixo de vara, perante um júri popular e os intelectuais e profissionais liberais voltados aos mistérios sobrenaturais.
Na sexta-feira, que seria reunido o grande júri — bem programado pelo Coronel, a sessão teria inicio na boca da noite e a meia-noite durante os interrogatórios finais, o Coronel tentaria arrancar alguma coisa do suspeito com perícia especializada — chegava a notícia que o colégio Imaculada Conceição fora atacado e uma freira estava morta. Com a mesma violência anterior.
A sessão foi encerrada.
Com o defunto fresco o técnico fez uma análise profunda e detalhada do cadáver, trançando um perfil acentuado e realista da criatura pernóstica. Embora os estragos eram o mesmo, havia um detalhe intrigante que passou despercebido anteriormente. As mordidas produzidas na região do pescoço serviam para drenar o sangue da vítima. Estava assim explicados a palidez dos corpos e a total ausência de sangue.
Mudou-se o rumo das investigações, adicionando a possibilidade do suposto lobisomem ser um vampiro. A tese ganhou consistência, quando chegou a notícia que uma estudante acabava de ser assassinada na saída do colégio no bairro do Junco. Distante, o local, ficava na periferia da cidade — era impossível imaginar tamanha rapidez.
Enquanto avaliavam a situação, outro mensageiro chegava dando conta de mais uma notícia desastrosa — nas imediações do bairro Jardim Padre Paulo. Outro ponto distante da cidade. O pessoal enlouquecido começava a pensar que era mais de um. Ou a criatura seria onipresente?!
— Etâ diabo! Esse bicho é bem pior do que pensei. — Afirmava o Coronel.
Tudo desandou quando a notícia vazou para a população através da imprensa. O medo do vampiro propalou, levou o Bispo a mandar cremar os corpos e jogar as cinzas nas águas do rio Paraguai. Botaram guardas no banco de sangue da cidade e coibiram a venda de chouriço nas ruas e praças — principalmente nas imediações da Igreja.
O Prefeito da cidade, pai de três belas filhas, bonitas e na flor da mocidade — foi a público propor um acordo de cavalheiro com a criatura. Para não mexer com as filhinhas comprometia doar o sangue que precisasse.
O Legislativo não gostou da atitude do Prefeito, acusando-o de incitar a baderna — quando deveria procurar meios de coibir e punir o criminoso seja ele o que fosse. O Prefeito, numa nota divulgada à Imprensa exaltou a coragem e a dignidade dos vereadores e daquela Casa de Leis, e aconselhou aos Edis que zelassem mais pelas famílias enquanto podiam.
— Família, é em primeiro lugar!
A oposição ainda protestou contra a decisão do Prefeito, mas ficou por isso mesmo. E assim os crimes hediondos praticados contra as indefesas donzelas permaneciam sem solução. As investigações tiveram que ser interrompidas, devido a falência de fatos novos. A comissão deu o caso por encerrado assim que os assassinatos cessaram num curto espaço de tempo. Para despistarem, pois voltaram com maior intensidade depois.
Estavam todos exaustos para continuarem. O grande Coronel nordestino bateu em retirada depois de um desentendimento com o Bispo, que não permitiu o interrogatório do Padre suspeito. O Oficial insistia em levá-lo ao tribunal embaixo de varas — numa sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Durante o depoimento o Coronel pretendia instigar a transformação da fera e assim ficariam desvendados todos os crimes.
Quando chegou ao conhecimento do Bispo que o sujeito já havia utilizado esse mesmo dispositivo em outra região e que havia solucionado o caso logo no despontar da lua, pediu vista grossa no processo, impedindo o procedimento legal do inquérito. Na verdade, ficou com medo e não quis correr riscos desnecessários.
A atitude feriu os brios do Coronel que atacou a Igreja com acusações no mínimo severas demais para os religiosos do lugar, fervorosamente cristãos. Nada o impediu de vir a público pedir a exoneração do Bispo e uma devassa nas dependências das igrejas. Um antro de assombração e lobisomens de toda a espécie, segundo o Oficial.
Com total aceitação, os crimes bárbaros deixaram de ser uma exceção para fazerem parte do nobre espaço da mídia, no sentido de macular as atrocidades. O povo passou a conviver com o medo constante nas ruas. Até porque a ameaça estava presente. Vindo de todos os lados.
Havia sexta-feira que os crimes aconteciam em diversos pontos da cidade. Com o mesmo requinte de crueldade. Os moradores dos bairros distantes eram os mais prejudicados. Diante da escassez de moças belas as damas já estavam sendo sacrificadas. Eles piamente acreditavam que realmente havia uma família de criaturas malignas trucidando as pessoas na cidade.
Um comerciante, o nome não vem no momento, vidente e astrólogo amador nas horas vagas, divulgou um retrato falado da sangrenta criatura. Possuía: asas, rabo e chifre. Mas, os cépticos puristas, doutores de Leis, preferiram acreditar que se tratava de um simples lobisomem pervertido, que havia tomado gosto pelo sangue humano. Descartando a idéia de vampiros, com o argumento de que a reprodução da espécie já haveria esgotado o precioso estoque de sangue da cidade.
Um francês de nome ignorado, especializado em crimes sobrenaturais também, divulgou um estudo detalhado sobre a fera. No documento, afirmava que era órfão de mãe. Deveria ter perdido a genitora cedo, padecendo algum tipo de molestação que o fizera odiar as mulheres. Precisamente as mais belas. Esses princípios eram determinados seguindo as pistas deixadas pela fera e o rastro de horror marcado nas vítimas. Ficava claro, também, porque o ataque vinha seguido de um momento de descontração. Onde as vítimas estavam dançando ou se divertindo com amigos ou namorados.
Outro ponto polêmico, abordado no documento, em foco, não descartava a possibilidade da criatura apresentar um distúrbio sexual. Uma tendência a curtir o mesmo sexo. Daí a necessidade de eliminar as propensas concorrentes. As fêmeas eram martirizadas na busca incansável de um parceiro perfeito para o acasalamento. Levando em consideração a possibilidade da fera ser um macho. Esse ponto foi bastante discutido e debatido nos meios acadêmicos e grupos de ativistas culturais. A má interpretação do texto levou a comunidade machista vir a cometer crimes violentos contra os homossexuais e entendidos. Acreditando que a fera era gay.
Iam além: achavam que deveriam colocar a disposição da criatura todos os simpatizantes e tendenciosos da city — para que o animal pernóstico pudesse escolher entre eles um parceiro ideal. Acalmando a ira da fera. Uma espécie de sacrifício humano para aplacar a ira dos deuses.
Esquadrões machistas clandestinos foram montados, liderados pela Igreja, Forças Armadas e a Polícia Civil e Militar. Os grupos de extermínio eram especializados em capturar sem deixar vestígios, todos os homossexuais, gay, drag gueem, strip, lésbicas, garotos de programa e todos os suspeitos de gostarem da mesma fruta. Os capturados eram cambiados para um lugar solitário e descampado chamado Facão — distância de duas horas e meia a cavalo — onde ficavam a disposição da boa vontade da fera. Vários iam a óbitos com o exagero da maluquice.
Alguns conseguiam se safar alcançando a cidade, embrenhava-se pela mata fugindo dos “caçadores de honras”, assim ficaram conhecidos os delinqüentes insensatos de plantão. O vale tornou-se um lugar sombrio onde exalava a morte.
Demorou um bom tempo para que as autoridades chegassem a tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos homens de bem. Alguns pagos para proteger a vida e garantir a ordem pública. A sociedade envergonhada teve que admitir os excessos.
O uso da força foi contido, mas não extinta. Parece que o mal ficou plantado e com tempo acabou germinando no subconsciente das pessoas e vários, sem motivo justo, eram flagrados praticando atos de violências, contra cidadões inocentes e indefesos. Os crimes de racismo, preconceito e abusos sexuais proliferaram ganhando destaque internacional igual uma grande vedete. Era a top model tipo exportação.
Os órgãos de defesa dos direitos humanos, veio a intervir procurando adequar os números de mortes, dentro de patamares aceitáveis pela entidade, e remendar os feridos. Uma análise profunda, do documento, apontou diversas falhas tendenciosas na divulgação dos resultados. Exagero na interpretação.
O distúrbio emocional do animal poderia ser provocado por um amor mal correspondido; uma recusa feminina e até a infeliz capacidade de realização sexual. Qualquer frustração desse tipo levaria um demente a praticar barbárie igual à vista ali. Isso explicava o ataque maldoso nos órgãos genitais e os seios dilacerados.
A nova versão do documento causou um redemoinho negro entre os pais de famílias. Todas as moçoilas e donzelas, foram sabatinadas, chegada à responsabilidade dos superiores, que buscavam descobrir: qual era a ingrata que feriu de ódio aquele aflito coração? A ponto de sair cometendo tais atrocidades contra inocentes mulheres desprotegidas.
O fuá indignava a população, que passou a acreditar na culpa da sujeita que havia cometido o delito da perversa recusa. Era a cúmplice de todos os crimes. Pois de certa forma, induzira o pobre infeliz da costa oca a sair trucidando as pessoas — levado ao total desespero.
Ouve o caso de moças lindas do feitio da flor de laranjeira, pele fresca e lisa semelhante o fruto do cajueiro, anca larga e cinturinha de pilão, pés macios e andar bamboleantes —, que tiveram que rebolar no relho, e sapatearem na chibata, a fim de confessarem o oculto crime de recusas. Caracterizados de crimes de desprezo.
Nesse vácuo, houve um total descontrole no preço do sal. O produto que era escasso tornou-se uma raridade. Havia homem de bem que cedia a mão da própria filha, em casamento, pelo produto. O que deu de casamento realizado a base de duas, três sacas de sal não foi brincadeira.
Falando nisso tempo depois, houve guerras de pedras e pelotes entre as gurizadas na saída dos colégios que discutiam o valor de suas genitoras.
— Sua mãe valeu três saca de sal!
— E a sua que foi duas.
— A sua que é mais perua!
Infelizmente era assim: tudo se plantava, tudo se colhia; menos o sal que vinha de longe. Do nordeste do País. Alternando entre lombos de burros e porões das chatas mercantes que cruzava o rio Paraguai em meio o Pantanal.
Sem o sal, não havia remédio contra as assombrações que perseguiam ao meio-dia. Quem possuía o produto era homem rico e poderoso. Podia atacar de qualquer coisa. De que adiantava gado, dinheiro e posses sem o sal? Até a carne deteriorava no varapau.
— Aqui tem sal!
— Quanto custa?
— O olho da cara.
Mangação da gurizada que acabava feia, igual furúnculo de sambiquira de anta. Não havia o que fazer. Tiravam o tempo vago para atarantar os comerciantes especuladores, que exploravam o monopólio do produto na margem do cais. Custosos, formavam grupos de cinco, seis rapagões e saíam gritando em coro entre becos e vielas que circundavam o local.
Injuriados com as difamações, os comerciantes deixavam a bocuda carregada, no jeito, debaixo do balcão. Quando o arrastão zombeteiro passava, mandavam tiro de sal no lombo da gurizada.
— Quer sal? Então toma, bandido!
Quando chegava a acertar era mês e meio com o traseiro virado para a lua, igual avestruz com receio da vida. Aquilo queimava igual pimenta malagueta nos próprios olhos, porque nos olhos dos outros é refresco. Mas em compensação estava curado pelo resto da vida. Nem bicheira pegava no local. Até bicho do mato respeita. Sal é sagrado, segundo a filosofia pantaneira, tem gente que não consegue nem morrer enquanto não coloca uma pitadinha de sal embaixo da língua.
Tudo era salgado.
Mulheres da sociedade fizeram coro junto aos donos de casas mercantes, para protestarem contra os disparates praticados. Pouca coisa valeu, todos juravam de pé juntos, sofrerem do mesmo mal, bebendo da mesma cicuta.
O jeito foi forçar os pais das belas moças a pararem com as torturas das donzelas. Só assim para cair o consumo de sal para os banhos de salmoura. Foi a brecha que o Legislativo encontrou na constituição para diminuir o consumo e conter a alta de preços do produto. Depois de assinado o decreto que doutrinou o açoite domiciliar desandou a delinqüência juvenil nas ruas.
Quando mexe com o estômago a coisa fica complicada. Basta ver que durante o tempo em que desenrolou essa situação, os crimes hediondos foram deixados de lados. E era exatamente esse tipo de falha na legislação que faziam crescer os índices alarmantes de impunidade.
No rádio havia um fuá. O motivo era drástico, mais uma moça conseguia ser vítima do demônio matador vindo das trevas. Gerava uma polêmica absurda, o fim da trégua. De repente parecia que o pesadelo ganhava uma nova edição.
Durante anos foi assim: uma série de mortes e uma pausa. Quando pensavam que o pesadelo era passado, começava tudo de novo. A crueldade era a mesma, fazendo crer que o velho sanguinário estava de volta. Desta vez, para sempre. Amém!
Boletim de Ocorrência
Luís Gonçalves
Gentes de diversas bandas começaram a desembarcar na terrinha, ávidos para apreciarem a beleza rara do lugar.
Começavam os saraus nas praias, para saudar a grandiosa lua cheia. Realizados lá na Baía da Palha. Belíssima praia de água doce. Alinhado igual os desfiles de modas. A saúde das donzelas era debutada nesses saraus, para revirar os olhos dos marmanjos. Matéria prima que nunca faltou em Cáceres, é a danada da mulher. As sirigaitas pareciam dar em árvores, semelhante à flor de laranjeira. E caíam na folia parecendo às mangas maduras. A concorrência era grande. Cansei de ver mulheres gestante, calejada de fazer novena para ter um filho homem. Queria poupar a prole da concorrência acirrada.
— Vamos que vamos! Hoje tem batuque na praia.
— Estou nessa, xará!
Tudo começou numa fatídica sexta-feira. Quando a lua despontou, pintando o rio com reflexos insinuantes — encontrou o couro tinindo, a galera cantando e o batuque no pé. Os grupos se esbaldavam na areia fina, do feitio de um véu da mãe d’água. Ao clarão das fogueiras a emoção girava solta. O ritmo era um só: corpos frenéticos, bocas ardentes e um salto perfeito. Roncos, gemidos, gritos e pavor. Estalos de dentes, carne rasgando, ossos quebrando e o cheiro macabro de sangue.
— Você ouviu?
— Ouviu o quê?
É fácil achar que se enganou num momento desse. Mas a realidade é fato contrário. Às vezes má, dura, nua e crua. A perca é irreparável, não há linha suficiente para o remendo. Tudo acaba no acostamento do fim. No meio-fio do nada. No precipício do destino. Na trincheira da dor.
A madrugada agitada deu lugar a uma manhã triste e dolosa. A polícia procurava um suspeito. Um corpo feminino sem vida, estendido na areia, apresentava cortes profundos: seios arrancados e vagina dilacerada.
Era o fim do sarau no local.
Os conservadores denunciavam o culto ao demônio e o sacrifício da vítima. Os foliões foram cambiados para a delegacia a fim de prestarem depoimento. Na cidade os jornais estampavam as fotos macabras na primeira página e a televisão fazia as tomadas simultâneas do local. Todos condenavam a barbárie. Em menos de quarenta e oito horas a polícia prendia o primeiro suspeito para averiguação: um pescador bêbado que se encontrava dormindo no interior de uma canoa, próximo ao local.
A população revoltada tentou linchar o suspeito. Enquadraram o infeliz: passou a ser o inimigo número um da cidade. Com cortes e escoriações, e, guarda bem montada de carcereiros — o cidadão foi cambiado para o presídio Carumbé na Capital. Três dias depois, regressaria morto para a cidade de origem. As imagens transmitidas via televisão chocou a opinião carcerária — foi executado pelos companheiros de cela, revoltados com a notícia do crime supostamente praticado pelo detento.
Com o enterro do cidadão o assunto chegava a um denominador comum. A paz voltava a reinar e a gurizada regressava as ruas com força total. O batuque ganhava o coreto das praças e os bancos de concreto garantiam a platéia. A Praça Barão do Rio Branco passava a ser o novo palco da alegria.
Vieram as gincanas e os disputadíssimos passeios ciclístico; passeios de barcos e o Festival Internacional de Pesca. Que posteriormente, acabou conquistando a rapaziada do venha nós vosso reino nada. A jogada de marketing era pagode, suor e muita mulher bonita despachando alto suíngue para a galera. Deu certo, veio o reconhecimento no guinners book, tornou-se o maior festival de pesca, do mundo, realizado em água doce.
Nesse ínterim, uma série de agito visava encontrar uma candidata à altura para representar a cidade no concurso Miss Mato Grosso. Do bairro Cavalhada, vinha uma sinhazinha moldada à ponta de dedo pelo sagrado deus da beleza. Revestida de um jogo de cintura inebriante e dada a fazer o ar da santa graça nas rodas dos boêmios. Varava a madrugada trotando ao som do ronco do bombo.
— Ha sujeita boa de engenho!
Só via vagabundo de olho comprido para o lado da sirigaita. A bicha era mesmo malfeitora de nascença, não havia porque negar. Volta e meia, e lá estava amaciando colchão deste ou aquele sujeito afoito a revelia do prazer carnal.
Era o alto preço da beleza. A bicha era mais requisitada do que carne-seca para paçoca de pilão, não curtia o assédio da solidão. Infelizmente, é a lei de mercado: quem procura acha.
Na sexta-feira junina véspera da festa de dona Pedrosa, filha de Pedro Bó, neto de Simião — o pessoal resolveu aprontar um sarau intimo só para os festeiros. Não foi longe, o terreiro da casa estava tomado pelos agitadores e parecia à prévia da festa que aconteceria na noite do sábado seguinte. Era relho no couro e suor na testa.
Chegando a madrugada, os foliões deixaram o local da festa e desceram rua abaixo fazendo o batuque estremecer os paredões de adobe por onde passavam. Ao chegarem na metade do bairro Cavalhada — onde fica aquela fileira de mangueiras graúdas, resolveram inflamar a coisa ali mesmo. Os cães ladravam e a coruja piava ruidosa na copa das árvores. Uma brisa fresca saudava a madrugada. Corpos suados desabavam pela grama rasteira. Beijos ardentes aqueciam os corpos frenéticos. Igual açoite a festa vadia de fundo expandia.
Grunhidos intermitentes. Dor. Muita dor. Um vulto na noite ganhou movimento. Era ágil, sorrateiro e fatal. Vozes sufocadas, vida ceifada. O cheiro de sangue jorrado se espalhava embalado pela marola matutina. O córrego Sangradouro deslizava as águas lentamente para a Mini Praia, numa agonia interminável e um lamento mudo e penoso.
— Por quê?
— Onde??
Foi assim: em dado momento sorria, no outro dançava e posteriormente morria. Os seios dilacerados, o sexo destruído e o rosto desfigurado. A cidade perdia a grande concorrente. Os amigos a “bundista” (variedade de dançarina, difundida na região, que utiliza a sensualidade das nádegas para dançar). Esvaía com ela também a santa paz do lugar.
— Que Deus a tenha!
Insegura a polícia teve que admitir a má interpretação do assassinato anterior. Começava a cobrança tardia pela vida do infeliz pescador acusado prematuramente. E o medo crescia e ganhava forma em cada esquina: muro alto, casa com grades e alarmes dos presídios domiciliares.
A festa de dona Pedrosa foi cancelada. Tiraram o terço, do feitio que manda a devoção. A Polícia Civil compareceu no local para interrogar os suspeitos. Fez a reconstituição dos fatos, desde a saída da casa de dona Pedrosa, até a chegada no local — conferiram todos os integrantes do cordão. Numa operação em conjunto com a Polícia Militar deram uma batida no local. Não encontraram a arma do crime.
Após as investigações preliminares, o moroso relatório policial concluía que o crime era passional. Afirmando que o criminoso era um namorado traído. Ficando explicado a verossimilhança dos dois assassinatos. O problema era identificar o sujeito na vasta lista de suspeitos: pretendentes, amigos, enamorados e amantes cativos. O grosso da tropa pertencia a famílias influentes e a investigação perdeu o fio da meada.
A polícia resolve encerrar as investigações do caso, após informar que as novas diligências — nada adicionaram além do sabido de todos. O relatório induzia a crer que era um caso isolado de loucura de algum maníaco temporário — deveria ter excedido as drogas. Uma espécie de overdose criminosa repentina.
Caso encerrado!
Sem mais aborrecimentos, todos foram engrossar a corriola dos foliões do “Curusé”. Que parece uma mistura de carnaval baiano com a procissão revolucionária peruana. A peregrinação perdurava até quarenta dias. Em cada terreiro a baderna era a mesma. Regada a uma boa “chicha” — bebida indígena feita de milho, adotada pelos nativos da fronteira e posteriormente trazida para a cidade — de grande teor embriagático.
Gostei da folia. Uma das festas públicas mais bonita que pude presenciar. A animação contagiava todo mundo e era um arrastão sadio que arrasava a periferia enchendo a galera de boas intenções. O cordão estava no sangue das pessoas do lugar — onde a vida não parava com a tristeza e nem perecia com o marasmo.
Com todo esse aparato, a folia aportou no terreiro de Lilica, sobrinha de Fiínha de Zé Grande — na Ave Maria. No momento, que o tempo fica lusco-fusco com a chegada da noite. O sol estava entra não entra, colocando fim em mais uma sexta-feira típica do paraíso tropical. O povo foi se acomodando, feito formiga em bolo doce. Era o batizado do filho mais velho da dona da casa. A garotada pulava no salão do feitio de galinha recém degolada. A cuia de “chicha” rodava de mão em mão, fermentando o ânimo dos foliões.
A gurizada não degustava a iguaria — optando pela caipirinha: pinga, limão rosa e açúcar. Na época se comprava a pinga de saco — também, em cada roça havia um canavial e no meio um alambique.
Na manhã de sábado, que começou ensolarado, desde o romper do novo dia, tipicamente cacerense, a música calou. Os instrumentos foram devolvidos ao alforje — deixando o silêncio e a dor. Outro crime, o mesmo massacre e nenhuma resposta.
— Vote! Cruz credo.
Espichada no fundo da casa estava a vítima. Ou pelo menos o que restou dela. Um corpo dilacerado retalhado com fúria. Cenas de choro e desolação. Apavorada a população voltava a ser sacudida com mais uma cena nefasta — trancando-se em casa, com medo de tudo e de todos.
A gurizada não era a única culpada ou suspeita. Havia uma boa quantidade de gente idosa no local. E ninguém viu nada. A própria polícia não encontrava uma explicação convincente para dar a sociedade amedrontada.
Nesse ano o carnaval estava comprometido. Os pais não saíam de casa à noite e não deixavam os filhos saírem. Buscando solução para o impasse a polícia foi intimada a tomar uma iniciativa que devolvesse a tranqüilidade à população visando restaurar a paz.
Para ganhar tempo, embora sabendo que se tratava de uma manobra perigosa — a polícia andou detendo vários integrantes de torcidas organizadas, tribos rivais e líderes de gangues dos bairros; concluindo que eram os suspeitos pela selvageria.
A versão policial dava conta que tudo havia iniciado quando a torcida organizada, do Crocodilo do Pantanal, time de futebol local — para impor respeito, nos estádios, cometeu o primeiro assassinato. Infelizmente a vítima pertencia à outra tribo que não mantinha intimidade com o futebol. Que resolveu vingar o sucedido, cometendo o segundo crime com a mesma violência. A gangue dos sambistas Come Água, sentiu-se ofendida e acuada. Para não perder espaço e adeptos, apelou revidando o ataque. Estava explicado o enigma do inexplicável: por quê os crimes eram idênticos?!?
Alguns catedráticos saíram em defesa, concluindo que a polícia estava certa em gradear a rapaziada. Com os líderes atrás das grades a militância das tribos ficaria limitada. Pelos vândalos praticados nas ruas, boates, danceterias e estádios de futebol — a gurizada ficava em baixa com a mídia, que caía metendo o pau em cima da malandragem juvenil.
Vários profissionais de saúde mental foram ao ar no horário nobre, procurando dar o recadinho calmante para a sociedade, alimentando a consistência das abordagens policiais — fazendo jus às acusações. Achavam belas coincidências em tudo. Variando desde a cor e tamanho das calcinhas das vítimas seguindo até o modelo dos sutiãs usados. Os detalhes eram bem esmiuçados visando a boa compreensão dos fatos
Basta ver que uma perita em astrologia, afirmou que durante os assassinatos ocorridos — no céu o sol transitava em Aquário. A lua atingia a fase quarto minguante em Escorpião e Mercúrio se relacionava bem com Saturno. Estava armado o barraco grego. Segundo os conhecimentos de outro especialista, essa combinação deveria gerar paz e amor, sem eclodir em violência. A astróloga defendeu-se contradizendo a todos que: depois da tempestade que vem a bonança e que todo amor zela pelo bom aconchego do ódio. O que estaria prevalecendo no momento.
Um psicólogo virtual interveio na discussão afirmando, que: a mente vazia é oficina do diabo. Concluindo que o perfil do assassino era de uma pessoa ociosa: ex-açougueiro, narcisista e inconformado com a injustiça social. Em protesto o meliante exigia: cortes profundos na carne.
A movimentação da massa catedrática serviu para colocar o povo nauseabundo de novo nas ruas. Salvando o carnaval pantaneiro que caminhava para o marasmo total. Sem os dólares dos turistas festeiros a cidade ameaçava falir. Logo os Blocos Carnavalescos estavam disputando os espaços das ruas novamente e tudo não passava de meras preocupações dos cuidadosos.
Depois de inflamados no batuque, nada conseguiu brecar a emoção do povo que não cansava de ser feliz. Foram quatro dias de intensa folia. A beberagem corria solta, sem notar que o perigo de morte sorrateira rondava traiçoeiramente.
Após a quarta-feira de cinzas, veio o doloso sábado com uma infindável procissão para o enterro dos ossos. Eram cadáveres produzidos com o mesmo requinte de crueldade. Tombou moças de família abastadas, gente de tradição. Moças belas e saudáveis. Puras, igual à primeira brisa matutina. Ricas e pobres, sem distinção pereceram da mesma forma. A protegida do Padre, apareceu sem os seios e o sexo na porta da Catedral.
Iniciava a Quaresma e o povo temendo o demônio matador que espalhava o terror na cidade. O desespero cresceu alcançando a Capital, que sensibilizada, enviou um perito para coordenar as investigações. Os líderes das gangues, tribos e torcidas organizadas, foram colocados em liberdade por falta de prova.
Revoltados, todos os seguimentos se uniram numa ação conjunta, processando o Estado por danos morais e discriminações, dos fundamentos básicos da libertinagem adolescente — incluindo as agressões e maus tratos sofridos na prisão.
O técnico em criminologia, enviado pela Secretaria de Segurança Pública, constatou que os cortes não eram produzidos por arma alguma. Deduzia que era mordida, dentada. Dentes, presas ou garras afiadas — movidas à força descomunal.
Desencadeou a busca atrás da suposta fera, grande e forte, que deveria estar escondida em algum lugar dos arredores da cidade. De onde preparava os ataques mortais. Foram feitas várias diligências nos lugares suspeitos de alojar a criatura. Mas nada foi encontrado. Nem abrigo, nem fera, nem coisa alguma.
O profissional liberou outro boletim com fatos mais esclarecedores. O novo trabalho elaborado era rico em detalhes surpreendentes a respeito do maníaco. As investigações sugeriam que a criatura deveria ter pelo menos um metro e meio de altura; movia-se com rapidez fantástica e o mais interessante: continha pêlos do feitio de lobos. Foram encontrados nas unhas de uma das vítimas pêlos semelhantes.
Bastou para a população levar a crer que os ataques vinham de um lobisomem. Proliferou as caçadas, visando agarrar a fera ensandecida. Nas noites de sextas-feiras, saíam grupos armados com balas de prata, facas fervidas no alho e talo de taquara verde.
Segundos os especialistas em lobisomem, o animal só morre atingido mortalmente com balas de pratas e que tenha cruz na ponta. Ou ferido com a faca fervida no alho na sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Se conseguir alcançá-lo a tempo de dar três lambadas em cruz no lombo — com o broto da taquara verde, a fera, perde o encanto na hora.
Os mais velhos não aconselham o método considerando-o perigoso. Envergonhado, o indivíduo após perder a força da mutação, faz jura de morte em quem vem a conhecer a identidade secreta.
Baseado nas informações legais, e pressionado pela sociedade que cobrava a solução imediata do caso — o Governador resolveu criar uma delegacia especializada em crimes envolvendo criaturas do folclore místico. Foram destinadas as verbas da Educação e Saúde, para custear as contratações dos profissionais e a implantação do projeto. O candidato às vagas deveria mostrar habilidade e conhecimentos na arte de lidar com as feras e assombrações noturnas.
Veio do nordeste do País, ministrar o workshop um ilustre Coronel conhecido pela grande habilidade no manejo de tratar com os lobisomens. Após breves averiguações, o Coronel assegurou que tratava de um animal entendido e escolado na arte de matar.
Imediatamente providenciou a exumação dos corpos, assegurando que todo lobisomem — após sete dias, vem buscar a cabeça das vítimas, guardando-as igual um troféu. Nesse caso era só procurar nas casas e apanhar a fera no ninho. Para não invadirem a privacidade dos munícipes e instigar a fúria dos órgãos de defesa dos Direitos Humanos. Foram infiltrados vários agentes especiais no contigente “fumacê” da SUCAM — que penetravam as residências para efetuarem a detetização, contra os mosquitos transmissores da Dengue.
Essa prática não foi adiante por dois motivos: os corpos só foram enterrados muito tempo depois ficaram aguardando a liberação do IML; e logo em seguida a comunidade ficou a par da situação, dando início a chiadeira.
O Coronel achou melhor distribuir as cabeças das vítimas para a tropa. Quando o animal desenterrasse os cadáveres e descobrisse que estavam sem os ditos troféus ia sair a procurá-lo. Não era nem preciso ir até o bicho, o bicho iria até a tropa.
Em lote de cinco, seis a patrulha passeava pelas ruas da cidade em noite de sexta-feira de lua cheia — cada qual exibindo uma das cabeças das vítimas. De longe dava para sentir o cheiro que exalava da putrefação, o povo fechava as portas e janelas.
O Bispo foi logo criando atrito com “o pelotão perfumado”, assim a galera dizia — contra a profanação do repouso mortal e o sacrilégio pagão que violava o sagrado direito dos mortos terem um descanso em paz nos túmulos.
A operação foi suspensa, falta de resultados concretos e o Coronel indignado com a intervenção da autoridade eclesiástica, acusou o Reverendo de cúmplice do suposto lobisomem. Intimando o suspeito a depor embaixo de vara, perante um júri popular e os intelectuais e profissionais liberais voltados aos mistérios sobrenaturais.
Na sexta-feira, que seria reunido o grande júri — bem programado pelo Coronel, a sessão teria inicio na boca da noite e a meia-noite durante os interrogatórios finais, o Coronel tentaria arrancar alguma coisa do suspeito com perícia especializada — chegava a notícia que o colégio Imaculada Conceição fora atacado e uma freira estava morta. Com a mesma violência anterior.
A sessão foi encerrada.
Com o defunto fresco o técnico fez uma análise profunda e detalhada do cadáver, trançando um perfil acentuado e realista da criatura pernóstica. Embora os estragos eram o mesmo, havia um detalhe intrigante que passou despercebido anteriormente. As mordidas produzidas na região do pescoço serviam para drenar o sangue da vítima. Estava assim explicados a palidez dos corpos e a total ausência de sangue.
Mudou-se o rumo das investigações, adicionando a possibilidade do suposto lobisomem ser um vampiro. A tese ganhou consistência, quando chegou a notícia que uma estudante acabava de ser assassinada na saída do colégio no bairro do Junco. Distante, o local, ficava na periferia da cidade — era impossível imaginar tamanha rapidez.
Enquanto avaliavam a situação, outro mensageiro chegava dando conta de mais uma notícia desastrosa — nas imediações do bairro Jardim Padre Paulo. Outro ponto distante da cidade. O pessoal enlouquecido começava a pensar que era mais de um. Ou a criatura seria onipresente?!
— Etâ diabo! Esse bicho é bem pior do que pensei. — Afirmava o Coronel.
Tudo desandou quando a notícia vazou para a população através da imprensa. O medo do vampiro propalou, levou o Bispo a mandar cremar os corpos e jogar as cinzas nas águas do rio Paraguai. Botaram guardas no banco de sangue da cidade e coibiram a venda de chouriço nas ruas e praças — principalmente nas imediações da Igreja.
O Prefeito da cidade, pai de três belas filhas, bonitas e na flor da mocidade — foi a público propor um acordo de cavalheiro com a criatura. Para não mexer com as filhinhas comprometia doar o sangue que precisasse.
O Legislativo não gostou da atitude do Prefeito, acusando-o de incitar a baderna — quando deveria procurar meios de coibir e punir o criminoso seja ele o que fosse. O Prefeito, numa nota divulgada à Imprensa exaltou a coragem e a dignidade dos vereadores e daquela Casa de Leis, e aconselhou aos Edis que zelassem mais pelas famílias enquanto podiam.
— Família, é em primeiro lugar!
A oposição ainda protestou contra a decisão do Prefeito, mas ficou por isso mesmo. E assim os crimes hediondos praticados contra as indefesas donzelas permaneciam sem solução. As investigações tiveram que ser interrompidas, devido a falência de fatos novos. A comissão deu o caso por encerrado assim que os assassinatos cessaram num curto espaço de tempo. Para despistarem, pois voltaram com maior intensidade depois.
Estavam todos exaustos para continuarem. O grande Coronel nordestino bateu em retirada depois de um desentendimento com o Bispo, que não permitiu o interrogatório do Padre suspeito. O Oficial insistia em levá-lo ao tribunal embaixo de varas — numa sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Durante o depoimento o Coronel pretendia instigar a transformação da fera e assim ficariam desvendados todos os crimes.
Quando chegou ao conhecimento do Bispo que o sujeito já havia utilizado esse mesmo dispositivo em outra região e que havia solucionado o caso logo no despontar da lua, pediu vista grossa no processo, impedindo o procedimento legal do inquérito. Na verdade, ficou com medo e não quis correr riscos desnecessários.
A atitude feriu os brios do Coronel que atacou a Igreja com acusações no mínimo severas demais para os religiosos do lugar, fervorosamente cristãos. Nada o impediu de vir a público pedir a exoneração do Bispo e uma devassa nas dependências das igrejas. Um antro de assombração e lobisomens de toda a espécie, segundo o Oficial.
Com total aceitação, os crimes bárbaros deixaram de ser uma exceção para fazerem parte do nobre espaço da mídia, no sentido de macular as atrocidades. O povo passou a conviver com o medo constante nas ruas. Até porque a ameaça estava presente. Vindo de todos os lados.
Havia sexta-feira que os crimes aconteciam em diversos pontos da cidade. Com o mesmo requinte de crueldade. Os moradores dos bairros distantes eram os mais prejudicados. Diante da escassez de moças belas as damas já estavam sendo sacrificadas. Eles piamente acreditavam que realmente havia uma família de criaturas malignas trucidando as pessoas na cidade.
Um comerciante, o nome não vem no momento, vidente e astrólogo amador nas horas vagas, divulgou um retrato falado da sangrenta criatura. Possuía: asas, rabo e chifre. Mas, os cépticos puristas, doutores de Leis, preferiram acreditar que se tratava de um simples lobisomem pervertido, que havia tomado gosto pelo sangue humano. Descartando a idéia de vampiros, com o argumento de que a reprodução da espécie já haveria esgotado o precioso estoque de sangue da cidade.
Um francês de nome ignorado, especializado em crimes sobrenaturais também, divulgou um estudo detalhado sobre a fera. No documento, afirmava que era órfão de mãe. Deveria ter perdido a genitora cedo, padecendo algum tipo de molestação que o fizera odiar as mulheres. Precisamente as mais belas. Esses princípios eram determinados seguindo as pistas deixadas pela fera e o rastro de horror marcado nas vítimas. Ficava claro, também, porque o ataque vinha seguido de um momento de descontração. Onde as vítimas estavam dançando ou se divertindo com amigos ou namorados.
Outro ponto polêmico, abordado no documento, em foco, não descartava a possibilidade da criatura apresentar um distúrbio sexual. Uma tendência a curtir o mesmo sexo. Daí a necessidade de eliminar as propensas concorrentes. As fêmeas eram martirizadas na busca incansável de um parceiro perfeito para o acasalamento. Levando em consideração a possibilidade da fera ser um macho. Esse ponto foi bastante discutido e debatido nos meios acadêmicos e grupos de ativistas culturais. A má interpretação do texto levou a comunidade machista vir a cometer crimes violentos contra os homossexuais e entendidos. Acreditando que a fera era gay.
Iam além: achavam que deveriam colocar a disposição da criatura todos os simpatizantes e tendenciosos da city — para que o animal pernóstico pudesse escolher entre eles um parceiro ideal. Acalmando a ira da fera. Uma espécie de sacrifício humano para aplacar a ira dos deuses.
Esquadrões machistas clandestinos foram montados, liderados pela Igreja, Forças Armadas e a Polícia Civil e Militar. Os grupos de extermínio eram especializados em capturar sem deixar vestígios, todos os homossexuais, gay, drag gueem, strip, lésbicas, garotos de programa e todos os suspeitos de gostarem da mesma fruta. Os capturados eram cambiados para um lugar solitário e descampado chamado Facão — distância de duas horas e meia a cavalo — onde ficavam a disposição da boa vontade da fera. Vários iam a óbitos com o exagero da maluquice.
Alguns conseguiam se safar alcançando a cidade, embrenhava-se pela mata fugindo dos “caçadores de honras”, assim ficaram conhecidos os delinqüentes insensatos de plantão. O vale tornou-se um lugar sombrio onde exalava a morte.
Demorou um bom tempo para que as autoridades chegassem a tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos homens de bem. Alguns pagos para proteger a vida e garantir a ordem pública. A sociedade envergonhada teve que admitir os excessos.
O uso da força foi contido, mas não extinta. Parece que o mal ficou plantado e com tempo acabou germinando no subconsciente das pessoas e vários, sem motivo justo, eram flagrados praticando atos de violências, contra cidadões inocentes e indefesos. Os crimes de racismo, preconceito e abusos sexuais proliferaram ganhando destaque internacional igual uma grande vedete. Era a top model tipo exportação.
Os órgãos de defesa dos direitos humanos, veio a intervir procurando adequar os números de mortes, dentro de patamares aceitáveis pela entidade, e remendar os feridos. Uma análise profunda, do documento, apontou diversas falhas tendenciosas na divulgação dos resultados. Exagero na interpretação.
O distúrbio emocional do animal poderia ser provocado por um amor mal correspondido; uma recusa feminina e até a infeliz capacidade de realização sexual. Qualquer frustração desse tipo levaria um demente a praticar barbárie igual à vista ali. Isso explicava o ataque maldoso nos órgãos genitais e os seios dilacerados.
A nova versão do documento causou um redemoinho negro entre os pais de famílias. Todas as moçoilas e donzelas, foram sabatinadas, chegada à responsabilidade dos superiores, que buscavam descobrir: qual era a ingrata que feriu de ódio aquele aflito coração? A ponto de sair cometendo tais atrocidades contra inocentes mulheres desprotegidas.
O fuá indignava a população, que passou a acreditar na culpa da sujeita que havia cometido o delito da perversa recusa. Era a cúmplice de todos os crimes. Pois de certa forma, induzira o pobre infeliz da costa oca a sair trucidando as pessoas — levado ao total desespero.
Ouve o caso de moças lindas do feitio da flor de laranjeira, pele fresca e lisa semelhante o fruto do cajueiro, anca larga e cinturinha de pilão, pés macios e andar bamboleantes —, que tiveram que rebolar no relho, e sapatearem na chibata, a fim de confessarem o oculto crime de recusas. Caracterizados de crimes de desprezo.
Nesse vácuo, houve um total descontrole no preço do sal. O produto que era escasso tornou-se uma raridade. Havia homem de bem que cedia a mão da própria filha, em casamento, pelo produto. O que deu de casamento realizado a base de duas, três sacas de sal não foi brincadeira.
Falando nisso tempo depois, houve guerras de pedras e pelotes entre as gurizadas na saída dos colégios que discutiam o valor de suas genitoras.
— Sua mãe valeu três saca de sal!
— E a sua que foi duas.
— A sua que é mais perua!
Infelizmente era assim: tudo se plantava, tudo se colhia; menos o sal que vinha de longe. Do nordeste do País. Alternando entre lombos de burros e porões das chatas mercantes que cruzava o rio Paraguai em meio o Pantanal.
Sem o sal, não havia remédio contra as assombrações que perseguiam ao meio-dia. Quem possuía o produto era homem rico e poderoso. Podia atacar de qualquer coisa. De que adiantava gado, dinheiro e posses sem o sal? Até a carne deteriorava no varapau.
— Aqui tem sal!
— Quanto custa?
— O olho da cara.
Mangação da gurizada que acabava feia, igual furúnculo de sambiquira de anta. Não havia o que fazer. Tiravam o tempo vago para atarantar os comerciantes especuladores, que exploravam o monopólio do produto na margem do cais. Custosos, formavam grupos de cinco, seis rapagões e saíam gritando em coro entre becos e vielas que circundavam o local.
Injuriados com as difamações, os comerciantes deixavam a bocuda carregada, no jeito, debaixo do balcão. Quando o arrastão zombeteiro passava, mandavam tiro de sal no lombo da gurizada.
— Quer sal? Então toma, bandido!
Quando chegava a acertar era mês e meio com o traseiro virado para a lua, igual avestruz com receio da vida. Aquilo queimava igual pimenta malagueta nos próprios olhos, porque nos olhos dos outros é refresco. Mas em compensação estava curado pelo resto da vida. Nem bicheira pegava no local. Até bicho do mato respeita. Sal é sagrado, segundo a filosofia pantaneira, tem gente que não consegue nem morrer enquanto não coloca uma pitadinha de sal embaixo da língua.
Tudo era salgado.
Mulheres da sociedade fizeram coro junto aos donos de casas mercantes, para protestarem contra os disparates praticados. Pouca coisa valeu, todos juravam de pé juntos, sofrerem do mesmo mal, bebendo da mesma cicuta.
O jeito foi forçar os pais das belas moças a pararem com as torturas das donzelas. Só assim para cair o consumo de sal para os banhos de salmoura. Foi a brecha que o Legislativo encontrou na constituição para diminuir o consumo e conter a alta de preços do produto. Depois de assinado o decreto que doutrinou o açoite domiciliar desandou a delinqüência juvenil nas ruas.
Quando mexe com o estômago a coisa fica complicada. Basta ver que durante o tempo em que desenrolou essa situação, os crimes hediondos foram deixados de lados. E era exatamente esse tipo de falha na legislação que faziam crescer os índices alarmantes de impunidade.
No rádio havia um fuá. O motivo era drástico, mais uma moça conseguia ser vítima do demônio matador vindo das trevas. Gerava uma polêmica absurda, o fim da trégua. De repente parecia que o pesadelo ganhava uma nova edição.
Durante anos foi assim: uma série de mortes e uma pausa. Quando pensavam que o pesadelo era passado, começava tudo de novo. A crueldade era a mesma, fazendo crer que o velho sanguinário estava de volta. Desta vez, para sempre. Amém!
Boletim de Ocorrência
Luís Gonçalves
Gentes de diversas bandas começaram a desembarcar na terrinha, ávidos para apreciarem a beleza rara do lugar.
Começavam os saraus nas praias, para saudar a grandiosa lua cheia. Realizados lá na Baía da Palha. Belíssima praia de água doce. Alinhado igual os desfiles de modas. A saúde das donzelas era debutada nesses saraus, para revirar os olhos dos marmanjos. Matéria prima que nunca faltou em Cáceres, é a danada da mulher. As sirigaitas pareciam dar em árvores, semelhante à flor de laranjeira. E caíam na folia parecendo às mangas maduras. A concorrência era grande. Cansei de ver mulheres gestante, calejada de fazer novena para ter um filho homem. Queria poupar a prole da concorrência acirrada.
— Vamos que vamos! Hoje tem batuque na praia.
— Estou nessa, xará!
Tudo começou numa fatídica sexta-feira. Quando a lua despontou, pintando o rio com reflexos insinuantes — encontrou o couro tinindo, a galera cantando e o batuque no pé. Os grupos se esbaldavam na areia fina, do feitio de um véu da mãe d’água. Ao clarão das fogueiras a emoção girava solta. O ritmo era um só: corpos frenéticos, bocas ardentes e um salto perfeito. Roncos, gemidos, gritos e pavor. Estalos de dentes, carne rasgando, ossos quebrando e o cheiro macabro de sangue.
— Você ouviu?
— Ouviu o quê?
É fácil achar que se enganou num momento desse. Mas a realidade é fato contrário. Às vezes má, dura, nua e crua. A perca é irreparável, não há linha suficiente para o remendo. Tudo acaba no acostamento do fim. No meio-fio do nada. No precipício do destino. Na trincheira da dor.
A madrugada agitada deu lugar a uma manhã triste e dolosa. A polícia procurava um suspeito. Um corpo feminino sem vida, estendido na areia, apresentava cortes profundos: seios arrancados e vagina dilacerada.
Era o fim do sarau no local.
Os conservadores denunciavam o culto ao demônio e o sacrifício da vítima. Os foliões foram cambiados para a delegacia a fim de prestarem depoimento. Na cidade os jornais estampavam as fotos macabras na primeira página e a televisão fazia as tomadas simultâneas do local. Todos condenavam a barbárie. Em menos de quarenta e oito horas a polícia prendia o primeiro suspeito para averiguação: um pescador bêbado que se encontrava dormindo no interior de uma canoa, próximo ao local.
A população revoltada tentou linchar o suspeito. Enquadraram o infeliz: passou a ser o inimigo número um da cidade. Com cortes e escoriações, e, guarda bem montada de carcereiros — o cidadão foi cambiado para o presídio Carumbé na Capital. Três dias depois, regressaria morto para a cidade de origem. As imagens transmitidas via televisão chocou a opinião carcerária — foi executado pelos companheiros de cela, revoltados com a notícia do crime supostamente praticado pelo detento.
Com o enterro do cidadão o assunto chegava a um denominador comum. A paz voltava a reinar e a gurizada regressava as ruas com força total. O batuque ganhava o coreto das praças e os bancos de concreto garantiam a platéia. A Praça Barão do Rio Branco passava a ser o novo palco da alegria.
Vieram as gincanas e os disputadíssimos passeios ciclístico; passeios de barcos e o Festival Internacional de Pesca. Que posteriormente, acabou conquistando a rapaziada do venha nós vosso reino nada. A jogada de marketing era pagode, suor e muita mulher bonita despachando alto suíngue para a galera. Deu certo, veio o reconhecimento no guinners book, tornou-se o maior festival de pesca, do mundo, realizado em água doce.
Nesse ínterim, uma série de agito visava encontrar uma candidata à altura para representar a cidade no concurso Miss Mato Grosso. Do bairro Cavalhada, vinha uma sinhazinha moldada à ponta de dedo pelo sagrado deus da beleza. Revestida de um jogo de cintura inebriante e dada a fazer o ar da santa graça nas rodas dos boêmios. Varava a madrugada trotando ao som do ronco do bombo.
— Ha sujeita boa de engenho!
Só via vagabundo de olho comprido para o lado da sirigaita. A bicha era mesmo malfeitora de nascença, não havia porque negar. Volta e meia, e lá estava amaciando colchão deste ou aquele sujeito afoito a revelia do prazer carnal.
Era o alto preço da beleza. A bicha era mais requisitada do que carne-seca para paçoca de pilão, não curtia o assédio da solidão. Infelizmente, é a lei de mercado: quem procura acha.
Na sexta-feira junina véspera da festa de dona Pedrosa, filha de Pedro Bó, neto de Simião — o pessoal resolveu aprontar um sarau intimo só para os festeiros. Não foi longe, o terreiro da casa estava tomado pelos agitadores e parecia à prévia da festa que aconteceria na noite do sábado seguinte. Era relho no couro e suor na testa.
Chegando a madrugada, os foliões deixaram o local da festa e desceram rua abaixo fazendo o batuque estremecer os paredões de adobe por onde passavam. Ao chegarem na metade do bairro Cavalhada — onde fica aquela fileira de mangueiras graúdas, resolveram inflamar a coisa ali mesmo. Os cães ladravam e a coruja piava ruidosa na copa das árvores. Uma brisa fresca saudava a madrugada. Corpos suados desabavam pela grama rasteira. Beijos ardentes aqueciam os corpos frenéticos. Igual açoite a festa vadia de fundo expandia.
Grunhidos intermitentes. Dor. Muita dor. Um vulto na noite ganhou movimento. Era ágil, sorrateiro e fatal. Vozes sufocadas, vida ceifada. O cheiro de sangue jorrado se espalhava embalado pela marola matutina. O córrego Sangradouro deslizava as águas lentamente para a Mini Praia, numa agonia interminável e um lamento mudo e penoso.
— Por quê?
— Onde??
Foi assim: em dado momento sorria, no outro dançava e posteriormente morria. Os seios dilacerados, o sexo destruído e o rosto desfigurado. A cidade perdia a grande concorrente. Os amigos a “bundista” (variedade de dançarina, difundida na região, que utiliza a sensualidade das nádegas para dançar). Esvaía com ela também a santa paz do lugar.
— Que Deus a tenha!
Insegura a polícia teve que admitir a má interpretação do assassinato anterior. Começava a cobrança tardia pela vida do infeliz pescador acusado prematuramente. E o medo crescia e ganhava forma em cada esquina: muro alto, casa com grades e alarmes dos presídios domiciliares.
A festa de dona Pedrosa foi cancelada. Tiraram o terço, do feitio que manda a devoção. A Polícia Civil compareceu no local para interrogar os suspeitos. Fez a reconstituição dos fatos, desde a saída da casa de dona Pedrosa, até a chegada no local — conferiram todos os integrantes do cordão. Numa operação em conjunto com a Polícia Militar deram uma batida no local. Não encontraram a arma do crime.
Após as investigações preliminares, o moroso relatório policial concluía que o crime era passional. Afirmando que o criminoso era um namorado traído. Ficando explicado a verossimilhança dos dois assassinatos. O problema era identificar o sujeito na vasta lista de suspeitos: pretendentes, amigos, enamorados e amantes cativos. O grosso da tropa pertencia a famílias influentes e a investigação perdeu o fio da meada.
A polícia resolve encerrar as investigações do caso, após informar que as novas diligências — nada adicionaram além do sabido de todos. O relatório induzia a crer que era um caso isolado de loucura de algum maníaco temporário — deveria ter excedido as drogas. Uma espécie de overdose criminosa repentina.
Caso encerrado!
Sem mais aborrecimentos, todos foram engrossar a corriola dos foliões do “Curusé”. Que parece uma mistura de carnaval baiano com a procissão revolucionária peruana. A peregrinação perdurava até quarenta dias. Em cada terreiro a baderna era a mesma. Regada a uma boa “chicha” — bebida indígena feita de milho, adotada pelos nativos da fronteira e posteriormente trazida para a cidade — de grande teor embriagático.
Gostei da folia. Uma das festas públicas mais bonita que pude presenciar. A animação contagiava todo mundo e era um arrastão sadio que arrasava a periferia enchendo a galera de boas intenções. O cordão estava no sangue das pessoas do lugar — onde a vida não parava com a tristeza e nem perecia com o marasmo.
Com todo esse aparato, a folia aportou no terreiro de Lilica, sobrinha de Fiínha de Zé Grande — na Ave Maria. No momento, que o tempo fica lusco-fusco com a chegada da noite. O sol estava entra não entra, colocando fim em mais uma sexta-feira típica do paraíso tropical. O povo foi se acomodando, feito formiga em bolo doce. Era o batizado do filho mais velho da dona da casa. A garotada pulava no salão do feitio de galinha recém degolada. A cuia de “chicha” rodava de mão em mão, fermentando o ânimo dos foliões.
A gurizada não degustava a iguaria — optando pela caipirinha: pinga, limão rosa e açúcar. Na época se comprava a pinga de saco — também, em cada roça havia um canavial e no meio um alambique.
Na manhã de sábado, que começou ensolarado, desde o romper do novo dia, tipicamente cacerense, a música calou. Os instrumentos foram devolvidos ao alforje — deixando o silêncio e a dor. Outro crime, o mesmo massacre e nenhuma resposta.
— Vote! Cruz credo.
Espichada no fundo da casa estava a vítima. Ou pelo menos o que restou dela. Um corpo dilacerado retalhado com fúria. Cenas de choro e desolação. Apavorada a população voltava a ser sacudida com mais uma cena nefasta — trancando-se em casa, com medo de tudo e de todos.
A gurizada não era a única culpada ou suspeita. Havia uma boa quantidade de gente idosa no local. E ninguém viu nada. A própria polícia não encontrava uma explicação convincente para dar a sociedade amedrontada.
Nesse ano o carnaval estava comprometido. Os pais não saíam de casa à noite e não deixavam os filhos saírem. Buscando solução para o impasse a polícia foi intimada a tomar uma iniciativa que devolvesse a tranqüilidade à população visando restaurar a paz.
Para ganhar tempo, embora sabendo que se tratava de uma manobra perigosa — a polícia andou detendo vários integrantes de torcidas organizadas, tribos rivais e líderes de gangues dos bairros; concluindo que eram os suspeitos pela selvageria.
A versão policial dava conta que tudo havia iniciado quando a torcida organizada, do Crocodilo do Pantanal, time de futebol local — para impor respeito, nos estádios, cometeu o primeiro assassinato. Infelizmente a vítima pertencia à outra tribo que não mantinha intimidade com o futebol. Que resolveu vingar o sucedido, cometendo o segundo crime com a mesma violência. A gangue dos sambistas Come Água, sentiu-se ofendida e acuada. Para não perder espaço e adeptos, apelou revidando o ataque. Estava explicado o enigma do inexplicável: por quê os crimes eram idênticos?!?
Alguns catedráticos saíram em defesa, concluindo que a polícia estava certa em gradear a rapaziada. Com os líderes atrás das grades a militância das tribos ficaria limitada. Pelos vândalos praticados nas ruas, boates, danceterias e estádios de futebol — a gurizada ficava em baixa com a mídia, que caía metendo o pau em cima da malandragem juvenil.
Vários profissionais de saúde mental foram ao ar no horário nobre, procurando dar o recadinho calmante para a sociedade, alimentando a consistência das abordagens policiais — fazendo jus às acusações. Achavam belas coincidências em tudo. Variando desde a cor e tamanho das calcinhas das vítimas seguindo até o modelo dos sutiãs usados. Os detalhes eram bem esmiuçados visando a boa compreensão dos fatos
Basta ver que uma perita em astrologia, afirmou que durante os assassinatos ocorridos — no céu o sol transitava em Aquário. A lua atingia a fase quarto minguante em Escorpião e Mercúrio se relacionava bem com Saturno. Estava armado o barraco grego. Segundo os conhecimentos de outro especialista, essa combinação deveria gerar paz e amor, sem eclodir em violência. A astróloga defendeu-se contradizendo a todos que: depois da tempestade que vem a bonança e que todo amor zela pelo bom aconchego do ódio. O que estaria prevalecendo no momento.
Um psicólogo virtual interveio na discussão afirmando, que: a mente vazia é oficina do diabo. Concluindo que o perfil do assassino era de uma pessoa ociosa: ex-açougueiro, narcisista e inconformado com a injustiça social. Em protesto o meliante exigia: cortes profundos na carne.
A movimentação da massa catedrática serviu para colocar o povo nauseabundo de novo nas ruas. Salvando o carnaval pantaneiro que caminhava para o marasmo total. Sem os dólares dos turistas festeiros a cidade ameaçava falir. Logo os Blocos Carnavalescos estavam disputando os espaços das ruas novamente e tudo não passava de meras preocupações dos cuidadosos.
Depois de inflamados no batuque, nada conseguiu brecar a emoção do povo que não cansava de ser feliz. Foram quatro dias de intensa folia. A beberagem corria solta, sem notar que o perigo de morte sorrateira rondava traiçoeiramente.
Após a quarta-feira de cinzas, veio o doloso sábado com uma infindável procissão para o enterro dos ossos. Eram cadáveres produzidos com o mesmo requinte de crueldade. Tombou moças de família abastadas, gente de tradição. Moças belas e saudáveis. Puras, igual à primeira brisa matutina. Ricas e pobres, sem distinção pereceram da mesma forma. A protegida do Padre, apareceu sem os seios e o sexo na porta da Catedral.
Iniciava a Quaresma e o povo temendo o demônio matador que espalhava o terror na cidade. O desespero cresceu alcançando a Capital, que sensibilizada, enviou um perito para coordenar as investigações. Os líderes das gangues, tribos e torcidas organizadas, foram colocados em liberdade por falta de prova.
Revoltados, todos os seguimentos se uniram numa ação conjunta, processando o Estado por danos morais e discriminações, dos fundamentos básicos da libertinagem adolescente — incluindo as agressões e maus tratos sofridos na prisão.
O técnico em criminologia, enviado pela Secretaria de Segurança Pública, constatou que os cortes não eram produzidos por arma alguma. Deduzia que era mordida, dentada. Dentes, presas ou garras afiadas — movidas à força descomunal.
Desencadeou a busca atrás da suposta fera, grande e forte, que deveria estar escondida em algum lugar dos arredores da cidade. De onde preparava os ataques mortais. Foram feitas várias diligências nos lugares suspeitos de alojar a criatura. Mas nada foi encontrado. Nem abrigo, nem fera, nem coisa alguma.
O profissional liberou outro boletim com fatos mais esclarecedores. O novo trabalho elaborado era rico em detalhes surpreendentes a respeito do maníaco. As investigações sugeriam que a criatura deveria ter pelo menos um metro e meio de altura; movia-se com rapidez fantástica e o mais interessante: continha pêlos do feitio de lobos. Foram encontrados nas unhas de uma das vítimas pêlos semelhantes.
Bastou para a população levar a crer que os ataques vinham de um lobisomem. Proliferou as caçadas, visando agarrar a fera ensandecida. Nas noites de sextas-feiras, saíam grupos armados com balas de prata, facas fervidas no alho e talo de taquara verde.
Segundos os especialistas em lobisomem, o animal só morre atingido mortalmente com balas de pratas e que tenha cruz na ponta. Ou ferido com a faca fervida no alho na sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Se conseguir alcançá-lo a tempo de dar três lambadas em cruz no lombo — com o broto da taquara verde, a fera, perde o encanto na hora.
Os mais velhos não aconselham o método considerando-o perigoso. Envergonhado, o indivíduo após perder a força da mutação, faz jura de morte em quem vem a conhecer a identidade secreta.
Baseado nas informações legais, e pressionado pela sociedade que cobrava a solução imediata do caso — o Governador resolveu criar uma delegacia especializada em crimes envolvendo criaturas do folclore místico. Foram destinadas as verbas da Educação e Saúde, para custear as contratações dos profissionais e a implantação do projeto. O candidato às vagas deveria mostrar habilidade e conhecimentos na arte de lidar com as feras e assombrações noturnas.
Veio do nordeste do País, ministrar o workshop um ilustre Coronel conhecido pela grande habilidade no manejo de tratar com os lobisomens. Após breves averiguações, o Coronel assegurou que tratava de um animal entendido e escolado na arte de matar.
Imediatamente providenciou a exumação dos corpos, assegurando que todo lobisomem — após sete dias, vem buscar a cabeça das vítimas, guardando-as igual um troféu. Nesse caso era só procurar nas casas e apanhar a fera no ninho. Para não invadirem a privacidade dos munícipes e instigar a fúria dos órgãos de defesa dos Direitos Humanos. Foram infiltrados vários agentes especiais no contigente “fumacê” da SUCAM — que penetravam as residências para efetuarem a detetização, contra os mosquitos transmissores da Dengue.
Essa prática não foi adiante por dois motivos: os corpos só foram enterrados muito tempo depois ficaram aguardando a liberação do IML; e logo em seguida a comunidade ficou a par da situação, dando início a chiadeira.
O Coronel achou melhor distribuir as cabeças das vítimas para a tropa. Quando o animal desenterrasse os cadáveres e descobrisse que estavam sem os ditos troféus ia sair a procurá-lo. Não era nem preciso ir até o bicho, o bicho iria até a tropa.
Em lote de cinco, seis a patrulha passeava pelas ruas da cidade em noite de sexta-feira de lua cheia — cada qual exibindo uma das cabeças das vítimas. De longe dava para sentir o cheiro que exalava da putrefação, o povo fechava as portas e janelas.
O Bispo foi logo criando atrito com “o pelotão perfumado”, assim a galera dizia — contra a profanação do repouso mortal e o sacrilégio pagão que violava o sagrado direito dos mortos terem um descanso em paz nos túmulos.
A operação foi suspensa, falta de resultados concretos e o Coronel indignado com a intervenção da autoridade eclesiástica, acusou o Reverendo de cúmplice do suposto lobisomem. Intimando o suspeito a depor embaixo de vara, perante um júri popular e os intelectuais e profissionais liberais voltados aos mistérios sobrenaturais.
Na sexta-feira, que seria reunido o grande júri — bem programado pelo Coronel, a sessão teria inicio na boca da noite e a meia-noite durante os interrogatórios finais, o Coronel tentaria arrancar alguma coisa do suspeito com perícia especializada — chegava a notícia que o colégio Imaculada Conceição fora atacado e uma freira estava morta. Com a mesma violência anterior.
A sessão foi encerrada.
Com o defunto fresco o técnico fez uma análise profunda e detalhada do cadáver, trançando um perfil acentuado e realista da criatura pernóstica. Embora os estragos eram o mesmo, havia um detalhe intrigante que passou despercebido anteriormente. As mordidas produzidas na região do pescoço serviam para drenar o sangue da vítima. Estava assim explicados a palidez dos corpos e a total ausência de sangue.
Mudou-se o rumo das investigações, adicionando a possibilidade do suposto lobisomem ser um vampiro. A tese ganhou consistência, quando chegou a notícia que uma estudante acabava de ser assassinada na saída do colégio no bairro do Junco. Distante, o local, ficava na periferia da cidade — era impossível imaginar tamanha rapidez.
Enquanto avaliavam a situação, outro mensageiro chegava dando conta de mais uma notícia desastrosa — nas imediações do bairro Jardim Padre Paulo. Outro ponto distante da cidade. O pessoal enlouquecido começava a pensar que era mais de um. Ou a criatura seria onipresente?!
— Etâ diabo! Esse bicho é bem pior do que pensei. — Afirmava o Coronel.
Tudo desandou quando a notícia vazou para a população através da imprensa. O medo do vampiro propalou, levou o Bispo a mandar cremar os corpos e jogar as cinzas nas águas do rio Paraguai. Botaram guardas no banco de sangue da cidade e coibiram a venda de chouriço nas ruas e praças — principalmente nas imediações da Igreja.
O Prefeito da cidade, pai de três belas filhas, bonitas e na flor da mocidade — foi a público propor um acordo de cavalheiro com a criatura. Para não mexer com as filhinhas comprometia doar o sangue que precisasse.
O Legislativo não gostou da atitude do Prefeito, acusando-o de incitar a baderna — quando deveria procurar meios de coibir e punir o criminoso seja ele o que fosse. O Prefeito, numa nota divulgada à Imprensa exaltou a coragem e a dignidade dos vereadores e daquela Casa de Leis, e aconselhou aos Edis que zelassem mais pelas famílias enquanto podiam.
— Família, é em primeiro lugar!
A oposição ainda protestou contra a decisão do Prefeito, mas ficou por isso mesmo. E assim os crimes hediondos praticados contra as indefesas donzelas permaneciam sem solução. As investigações tiveram que ser interrompidas, devido a falência de fatos novos. A comissão deu o caso por encerrado assim que os assassinatos cessaram num curto espaço de tempo. Para despistarem, pois voltaram com maior intensidade depois.
Estavam todos exaustos para continuarem. O grande Coronel nordestino bateu em retirada depois de um desentendimento com o Bispo, que não permitiu o interrogatório do Padre suspeito. O Oficial insistia em levá-lo ao tribunal embaixo de varas — numa sexta-feira de lua cheia à meia-noite. Durante o depoimento o Coronel pretendia instigar a transformação da fera e assim ficariam desvendados todos os crimes.
Quando chegou ao conhecimento do Bispo que o sujeito já havia utilizado esse mesmo dispositivo em outra região e que havia solucionado o caso logo no despontar da lua, pediu vista grossa no processo, impedindo o procedimento legal do inquérito. Na verdade, ficou com medo e não quis correr riscos desnecessários.
A atitude feriu os brios do Coronel que atacou a Igreja com acusações no mínimo severas demais para os religiosos do lugar, fervorosamente cristãos. Nada o impediu de vir a público pedir a exoneração do Bispo e uma devassa nas dependências das igrejas. Um antro de assombração e lobisomens de toda a espécie, segundo o Oficial.
Com total aceitação, os crimes bárbaros deixaram de ser uma exceção para fazerem parte do nobre espaço da mídia, no sentido de macular as atrocidades. O povo passou a conviver com o medo constante nas ruas. Até porque a ameaça estava presente. Vindo de todos os lados.
Havia sexta-feira que os crimes aconteciam em diversos pontos da cidade. Com o mesmo requinte de crueldade. Os moradores dos bairros distantes eram os mais prejudicados. Diante da escassez de moças belas as damas já estavam sendo sacrificadas. Eles piamente acreditavam que realmente havia uma família de criaturas malignas trucidando as pessoas na cidade.
Um comerciante, o nome não vem no momento, vidente e astrólogo amador nas horas vagas, divulgou um retrato falado da sangrenta criatura. Possuía: asas, rabo e chifre. Mas, os cépticos puristas, doutores de Leis, preferiram acreditar que se tratava de um simples lobisomem pervertido, que havia tomado gosto pelo sangue humano. Descartando a idéia de vampiros, com o argumento de que a reprodução da espécie já haveria esgotado o precioso estoque de sangue da cidade.
Um francês de nome ignorado, especializado em crimes sobrenaturais também, divulgou um estudo detalhado sobre a fera. No documento, afirmava que era órfão de mãe. Deveria ter perdido a genitora cedo, padecendo algum tipo de molestação que o fizera odiar as mulheres. Precisamente as mais belas. Esses princípios eram determinados seguindo as pistas deixadas pela fera e o rastro de horror marcado nas vítimas. Ficava claro, também, porque o ataque vinha seguido de um momento de descontração. Onde as vítimas estavam dançando ou se divertindo com amigos ou namorados.
Outro ponto polêmico, abordado no documento, em foco, não descartava a possibilidade da criatura apresentar um distúrbio sexual. Uma tendência a curtir o mesmo sexo. Daí a necessidade de eliminar as propensas concorrentes. As fêmeas eram martirizadas na busca incansável de um parceiro perfeito para o acasalamento. Levando em consideração a possibilidade da fera ser um macho. Esse ponto foi bastante discutido e debatido nos meios acadêmicos e grupos de ativistas culturais. A má interpretação do texto levou a comunidade machista vir a cometer crimes violentos contra os homossexuais e entendidos. Acreditando que a fera era gay.
Iam além: achavam que deveriam colocar a disposição da criatura todos os simpatizantes e tendenciosos da city — para que o animal pernóstico pudesse escolher entre eles um parceiro ideal. Acalmando a ira da fera. Uma espécie de sacrifício humano para aplacar a ira dos deuses.
Esquadrões machistas clandestinos foram montados, liderados pela Igreja, Forças Armadas e a Polícia Civil e Militar. Os grupos de extermínio eram especializados em capturar sem deixar vestígios, todos os homossexuais, gay, drag gueem, strip, lésbicas, garotos de programa e todos os suspeitos de gostarem da mesma fruta. Os capturados eram cambiados para um lugar solitário e descampado chamado Facão — distância de duas horas e meia a cavalo — onde ficavam a disposição da boa vontade da fera. Vários iam a óbitos com o exagero da maluquice.
Alguns conseguiam se safar alcançando a cidade, embrenhava-se pela mata fugindo dos “caçadores de honras”, assim ficaram conhecidos os delinqüentes insensatos de plantão. O vale tornou-se um lugar sombrio onde exalava a morte.
Demorou um bom tempo para que as autoridades chegassem a tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos homens de bem. Alguns pagos para proteger a vida e garantir a ordem pública. A sociedade envergonhada teve que admitir os excessos.
O uso da força foi contido, mas não extinta. Parece que o mal ficou plantado e com tempo acabou germinando no subconsciente das pessoas e vários, sem motivo justo, eram flagrados praticando atos de violências, contra cidadões inocentes e indefesos. Os crimes de racismo, preconceito e abusos sexuais proliferaram ganhando destaque internacional igual uma grande vedete. Era a top model tipo exportação.
Os órgãos de defesa dos direitos humanos, veio a intervir procurando adequar os números de mortes, dentro de patamares aceitáveis pela entidade, e remendar os feridos. Uma análise profunda, do documento, apontou diversas falhas tendenciosas na divulgação dos resultados. Exagero na interpretação.
O distúrbio emocional do animal poderia ser provocado por um amor mal correspondido; uma recusa feminina e até a infeliz capacidade de realização sexual. Qualquer frustração desse tipo levaria um demente a praticar barbárie igual à vista ali. Isso explicava o ataque maldoso nos órgãos genitais e os seios dilacerados.
A nova versão do documento causou um redemoinho negro entre os pais de famílias. Todas as moçoilas e donzelas, foram sabatinadas, chegada à responsabilidade dos superiores, que buscavam descobrir: qual era a ingrata que feriu de ódio aquele aflito coração? A ponto de sair cometendo tais atrocidades contra inocentes mulheres desprotegidas.
O fuá indignava a população, que passou a acreditar na culpa da sujeita que havia cometido o delito da perversa recusa. Era a cúmplice de todos os crimes. Pois de certa forma, induzira o pobre infeliz da costa oca a sair trucidando as pessoas — levado ao total desespero.
Ouve o caso de moças lindas do feitio da flor de laranjeira, pele fresca e lisa semelhante o fruto do cajueiro, anca larga e cinturinha de pilão, pés macios e andar bamboleantes —, que tiveram que rebolar no relho, e sapatearem na chibata, a fim de confessarem o oculto crime de recusas. Caracterizados de crimes de desprezo.
Nesse vácuo, houve um total descontrole no preço do sal. O produto que era escasso tornou-se uma raridade. Havia homem de bem que cedia a mão da própria filha, em casamento, pelo produto. O que deu de casamento realizado a base de duas, três sacas de sal não foi brincadeira.
Falando nisso tempo depois, houve guerras de pedras e pelotes entre as gurizadas na saída dos colégios que discutiam o valor de suas genitoras.
— Sua mãe valeu três saca de sal!
— E a sua que foi duas.
— A sua que é mais perua!
Infelizmente era assim: tudo se plantava, tudo se colhia; menos o sal que vinha de longe. Do nordeste do País. Alternando entre lombos de burros e porões das chatas mercantes que cruzava o rio Paraguai em meio o Pantanal.
Sem o sal, não havia remédio contra as assombrações que perseguiam ao meio-dia. Quem possuía o produto era homem rico e poderoso. Podia atacar de qualquer coisa. De que adiantava gado, dinheiro e posses sem o sal? Até a carne deteriorava no varapau.
— Aqui tem sal!
— Quanto custa?
— O olho da cara.
Mangação da gurizada que acabava feia, igual furúnculo de sambiquira de anta. Não havia o que fazer. Tiravam o tempo vago para atarantar os comerciantes especuladores, que exploravam o monopólio do produto na margem do cais. Custosos, formavam grupos de cinco, seis rapagões e saíam gritando em coro entre becos e vielas que circundavam o local.
Injuriados com as difamações, os comerciantes deixavam a bocuda carregada, no jeito, debaixo do balcão. Quando o arrastão zombeteiro passava, mandavam tiro de sal no lombo da gurizada.
— Quer sal? Então toma, bandido!
Quando chegava a acertar era mês e meio com o traseiro virado para a lua, igual avestruz com receio da vida. Aquilo queimava igual pimenta malagueta nos próprios olhos, porque nos olhos dos outros é refresco. Mas em compensação estava curado pelo resto da vida. Nem bicheira pegava no local. Até bicho do mato respeita. Sal é sagrado, segundo a filosofia pantaneira, tem gente que não consegue nem morrer enquanto não coloca uma pitadinha de sal embaixo da língua.
Tudo era salgado.
Mulheres da sociedade fizeram coro junto aos donos de casas mercantes, para protestarem contra os disparates praticados. Pouca coisa valeu, todos juravam de pé juntos, sofrerem do mesmo mal, bebendo da mesma cicuta.
O jeito foi forçar os pais das belas moças a pararem com as torturas das donzelas. Só assim para cair o consumo de sal para os banhos de salmoura. Foi a brecha que o Legislativo encontrou na constituição para diminuir o consumo e conter a alta de preços do produto. Depois de assinado o decreto que doutrinou o açoite domiciliar desandou a delinqüência juvenil nas ruas.
Quando mexe com o estômago a coisa fica complicada. Basta ver que durante o tempo em que desenrolou essa situação, os crimes hediondos foram deixados de lados. E era exatamente esse tipo de falha na legislação que faziam crescer os índices alarmantes de impunidade.
No rádio havia um fuá. O motivo era drástico, mais uma moça conseguia ser vítima do demônio matador vindo das trevas. Gerava uma polêmica absurda, o fim da trégua. De repente parecia que o pesadelo ganhava uma nova edição.
Durante anos foi assim: uma série de mortes e uma pausa. Quando pensavam que o pesadelo era passado, começava tudo de novo. A crueldade era a mesma, fazendo crer que o velho sanguinário estava de volta. Desta vez, para sempre. Amém!
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