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Contos-->A mulher das gaiolas -- 28/02/2005 - 21:31 (Érica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Susana me telefonou outro dia, com um pedido muito estranho. Que eu fosse ajudá-la a limpar a garagem da casa dela. Morava numa casa estilo americano, que ela e o marido construíram logo depois de terem voltado para São Paulo. Passaram 15 anos nos Estados Unidos, trabalhando como operários numa fábrica de automóveis. Com a crise provocada pela importação de Toyotas, Hondas e Mitsubishis, a fábrica fechou. E como já estava mais ou menos na hora de voltar, fizeram as malas, venderam a casa, o carro, as bugigangas acumuladas e desembarcaram em São Paulo. Compraram um terreno em Atibaia e lá construíram a casinha, pequena mas muito bem desenhada - tinha até garagem coberta para um carro que ainda comprariam. Enquanto não o tinham, encheram o espaço com as quinquilharias que todos temos, sem ou com espaço para guardá-las.

O marido da Susana faleceu há questão de um ano. Foi "mal súbito". Nunca soube se ele sofria de alguma doença que o colocasse à beira de um perigo. Não gosto de bisbilhotar, embora seja curiosa. Mas, em alguns casos, até que refreio minha curiosidade.

Cheguei à casa deles às duas da tarde de um domingo cinzento. A cidade está sempre banhada de sol, mas como sou paulistana, para onde vou carrego comigo a garoa. E lá chegando, a garoa se instalou.

Depois das conversas preliminares, ela me levou ao local onde iríamos "trabalhar" pelo resto da tarde. Já disse, era a garagem. Mas o que tem esta garagem que precisa de duas pessoas para ser limpa? - Venha e verá, ela me disse, séria.

Pela porta da cozinha, chegamos até a garagem. Espanto monumental. Aquelo espaço onde caberiam dois carros e até um caminhão de bombeiros, de tão grande, estava total e literalmente ocupado por gaiolas de pássaros. Poderia dizer que havia algumas centenas. De todos os tamanhos, tipos, cores, material. Gaiolas, infindas gaiolas. Sem pássaro. Nenhum.
-- Su -- perguntei - o que é isto? desculpe, mas o seu marido colecionava gaiolas? e os passarinhos?

-- Pois é isto mesmo. Ele colecionava gaiolas. Gastamos um dinheirão para trazer estas coisas dos Estados Unidos. Vieram em dezenas de caixotes. E para passar na alfândega, foi um trabalhão. Quem é que iria entender que ele tinha paixão por gaiolas? Chegaram a desmontar algumas, pensando que ele estivesse trazendo alguma muamba escondida. Mas ele as consertou sem se queixar. Porque finalmente elas estavam com ele.

-- Mas os passarinhos? - perguntei.

-- Nunca teve passarinhos. Ele comprava as gaiolas onde as encontrasse, mas nunca numa loka de animais. è uma história muito comprida, mas vou te dizer só o pedaço principal. Ele me contou que, quando tinha 9 anos de idade, o irmão mais velho trouxe para casa um canário. E o Rafael ficou com muita raiva do irmão, dos pais, de todos, porque davam muita atenção ao canário. E da raiva ele passou a ter pensamentos maus. Uma noite, quando todos dormiam, ele foi até a gaiola e esganou o canário. Esganou o coitado. No dia seguinte, ao virem o pobre do bichinho esganado, acharam primeiro que foi algum gato. Mas não havia sangue. Enfim, ninguém descobriu quem foi. Mas o irmão dele, que era só um ano mais velho, ficou doente. Adoeceu de dor pela morte do canário. Ficou tão doente que morreu, não sei se é porque lá na terra deles não tinham recursos ou se foi de repente. O garoto morreu. E meu marido jamais se perdoou. Ele foi a causa direta - ou indireta - da morte do irmão. E, de repente, começou a procurar por gaiolas - e, repare só - você está percebendo alguma coisa diferente nestas gaiolas?

Olhei e vi - nenhuma delas tinha a porta. Todas as portinholas tinham sido arrancadas.
-- Estou reparando -respondi. Não têm portinhas.
-- Não têm mesmo. A primeira coisa que ele fazia era arrancá-las. E daí, ele estaria impedindo que alguém botasse um passarinho lá dentro. O meu marido não era louco, não. Até muito assentado de cabeça. Mas esta mania que ele tinha era demais. Parecia que a alma dele estava presa e ele, comprando gaiolas e tirando as portas, queria liberar-se da prisão. Acho que era isto.

Fiquei ali um tempão olhando para aquelas gaiolas, umas quadradas, outras ovais, umas alongadas, outras achatadas, umas com dois ou mais andares por dentro delas, algumas com vários poleiros, outras sem nenhum, e assim por diante. E tinhas todas as procedências - pra quem já viu as gaiolas brancas do Marrocos, não preciso explicar - são simplesmente maravihosas. E as verdes da Tailândia, as azuis da Turquia, as vermelhas da Hungria, as roxas do México. Aquilo era um espetáculo sem preço, sem tamanho, sem limite.
-- E o que você quer fazer com elas? - perguntei.
-- Só quero me livrar delas. Vou alugar a garagem para os vizinhos da frente, o filho casado deles está em casa e quer uma garagem pro jipe. Não sei como vou me livrar destas coisas. Por isto preciso da sua ajuda. Ou nós levamos tudo isto pra algum depósito de ferro velho ou levamos para o lixão ou ... aí é minha idéia, jogar no rio.

-- Bom, o rio já está bastante poluído para agûentar mais esta. Você já pensou em chamar o zoo e ver se eles precisam de gaiola?

-- Você pensa que a idéia é nova? Já vieram aqui e já levaram umas cem. Ninguém quer tanta gaiola assim. Já vieram escolas de agricultura, aqui na área está cheio delas. E fazendas. Todo o mundo levou o que quis. Mas ainda sobraram. E estão me deixando louca. Por favor, me livre destas gaiolas. Leve para sua loja. De graça.

-- Não posso, minha loja é de móveis finos, como vão entender gaiolas. Tem até uma de palha, ali outra de vime, esta aqui de ferro, estou vendo uma de plástico. Não dá, vai tirar a condição da loja.

-- Bom, pensei que você pudesse me ajudar nisto. Tá bom, não se fala mais.

Ah, não seria eu que iria deixar minha amiga na mão. Eu teria de ajudá-la de alguma forma. E aí está - agora se explica porque tenho tanta gaiola aqui em casa, na varanda, na sala, no banheiro, no corredor para o andar de cima, na cozinha, na terraça dos fundos, no quintal, por cima da mangueira, por baixo da parreira, por baixo da escada, pela sacada do quarto. E é por isto que me chamam "a mulher das gaiolas". - E eu não tenho culpa de nada.
---
E.E.
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