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Contos-->Na Chuva, todo rosto é um rosto molhado -- 23/02/2005 - 23:52 (Luca Xavier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
NA CHUVA, TODO ROSTO É UM ROSTO MOLHADO

Não havia muito que pensar. A chuva forte, os dois vultos se aproximando, o motor do carro insistindo em não pegar. O pânico crescente, dificultando a respiração e dilatando os intestinos. Definitivamente, a idéia de fugir do engarrafamento cortando caminho por aquele bairro, fora infeliz, considerando o forte temporal e que já passavam das 21:00.
O primeiro vulto, que convenhamos, já não era mais um vulto, ganhava as feições de alguém de meia idade, barba por fazer e cabelos lisos jogados no pescoço, se aproximou encostando o rosto no vidro do lado do motorista, sendo acompanhado pelo outro, um pouco mais jovem, pele negra, que seguido do ato de encostar o rosto, fez um movimento circular com a palma da mão, buscando retirar o excesso de água no vidro. Na verdade, esse esforço de ambos para enxergar o condutor do veículo foi absolutamente inútil, afinal a tecnologia de hoje, com seus filtros solares para vidros de automóveis proporciona resultados admiráveis, de forma, que os dois na forte chuva só conseguiram ver mais de perto o escuro que já enxergavam a distancia.
Dentro do carro, a mulher não se atrevia a olhar os dois rostos colados na sua janela. Também não lhe ocorria os prodígios do filtro solar de seu automóvel, que não permite que de fora se veja quem está dentro, mas permite muito bem o contrário, embora aqui, em circunstâncias tão adversas, nervos à flor da pele, era um pensamento longe de ser prioritário. Tinha uma fixação desesperada em dar partida no veículo, uma esperança de inspiração urgente e cômoda, afinal, o carro apagara, nada mais natural que voltasse a funcionar.
Os dois homens na chuva, mostraram-se intrigados. O carro estava parado em um local crítico. Em alguns instantes, pela quantidade de água que caia dos céus, estaria inteiramente coberto. Tentavam, portanto, avisar o condutor sobre tal contingência, mas o diabo do vidro escuro, e a porta trancada, tornava-os, meio que idiotas na chuva, sem saber muito bem o que pensar, sem terem convicção de que quem estava dentro olhava para eles. Começaram a gritar e fazer mímica da situação, mas, então, um deles, o mais velho, como se iluminado por uma mensagem divina, pensou que, dentre as razões para que o automóvel tivesse apagado no meio do temporal poderia ter sido um desmaio, uma perda de consciência súbita do condutor do veículo. Essa hipótese, brilhantemente explicava a parada do veículo e a ineficaz tentativa de comunicação.
O mais velho então, informou o outro sobre a afortunada conclusão que chegara. A chuva cada vez mais forte, elevava a água até bem acima dos joelhos dos dois. Teriam que entrar à força. Era questão de vida ou morte. Não daria tempo de chamar os bombeiros. Mesmo porquê, em um bairro tão distante e pobre, os problemas são menos importantes do que os que assolam as zonas mais nobres da cidade em dia de chuva forte, nas quais, os bombeiros devem estar de prontidão, aptos a agirem e serem focalizados pela televisão, talvez consagrando um herói do dia, e sendo motivo de orgulho para a corporação.
A mulher dentro do carro, já em pranto convulsivo, com os dedos feridos pelo atrito com a chave de partida e seu infatigável movimento giratório, sentindo-se a mais perdida dos seres viventes, virou-se para pegar a bolsa no banco de trás. O celular poderia ser o último alento diante do perigo que corria. Sim, a violência nos níveis altíssimos, retratada diariamente nos noticiários e ela, ali vivendo na pele o problema. Não é exigível de ninguém, em tal estado, manter a calma. De forma, que somado ao pânico irracional que nos acomete devido às descargas de adrenalina no sangue, ela se permitia a experimentar uma outra espécie de pânico mais sofisticado. Nesse infortúnio, sobrevinham-lhe imagens de crueldade extrema, estupro, mutilações e similares, tornando tudo ao redor, fragmentos reais de seus piores pesadelos.
Em meio a tudo isso, conseguiu pegar o celular. Então, ouviu um barulho surdo vindo de trás do veículo. Algo havia se chocado contra o vidro traseiro, fazendo uma leve deformação.
Lá fora, os dois homens na chuva, haviam se decidido por quebrar um dos vidros e assim adentrar no veículo. Por estrito bom senso, resolveram estourar o vidro traseiro, concluindo que este teria menos possibilidade de provocar algum ferimento na pessoa que estivesse no interior do automóvel. A princípio, cogitaram jogar uma pedra, hipótese, em seguida descartada pela mesma razão acima. Optaram por um bastão que encontraram jogado sobre uma lata de lixo.
O primeiro golpe foi desferido pelo homem mais jovem. Suas mãos arderam com o impacto, mas o vidro não quebrou. Havia uma dificuldade técnica na situação. A água, batendo já quase na cintura, formava uma forte correnteza, que impedia um correto equilíbrio e por conseqüência a produção de um impulso adequado capaz de concentrar força no golpe. Por sua vez, a forte chuva e os ventos, também contribuíam para que o resultado não se concretizasse.
A mulher, imediatamente após o barulho, soltou um grito dilacerante. Na verdade, o grito deveu-se mais a uma compreensão das intenções dos dois homens, do que propriamente em virtude do barulho. Porque este, justiça seja feita, foi tímido, quase suave, incapaz de assustar uma criança. Por sua vez, agarrou-se a um fio de esperança nova, ao lembrar que o seu marido havia mandado blindar os dois automóveis da família, com medo da imensa onda de violência registrada na cidade.
A água já cobria toda a parte inferior do automóvel e estava preste a alcançar os vidros. Os dois homens, desesperados, insistiam com os golpes no vidro, mas, cada vez com menor eficácia. A mulher também se desesperava quando percebia que o seu celular não estava recebendo nenhum sinal, nem chamando ninguém. Em seu tormento não percebeu que havia água entrando no interior do automóvel. Em pouca quantidade, mas de forma contínua. Talvez, a exemplo da excelência alcançada pelos fabricantes de vidros com filtros solares, no futuro, se conceba carros com um perfeito sistema de vedação, capazes de resistir ao fustigar de chuvas fortes e enchentes, mantendo incólume da água, seu interior.
Os dois homens já não agüentavam mais a forte correnteza. Estavam na iminência de serem levados pela força da água. Diante desta ameaça, voltaram para a calçada onde o nível permitia ficar-se em pé sem muitas dificuldades. O carro estava razoavelmente longe da calçada. Cerca de uns cinco metros, no meio da rua.
"Não há mais o que fazer Manoel", falou o mais velho enquanto se encostava na parede do Botequim de sua propriedade. Passaram se poucos minutos desde o momento em que conversavam no interior do botequim enquanto a chuva caía torrencialmente, quando perceberam o veículo parado no meio da rua, logo em frente. Aguardaram um instante para certificar que o automóvel realmente havia morrido e então, sabendo ambos do perigo que corria quem estivesse no seu interior, diante do histórico quadro de inundações naquele ponto, apressaram-se em buscar retirar o condutor do veículo.
Quando a mulher percebeu a água entrando no interior do carro, não associou diretamente a qualquer perigo maior. Primeiro, porque já não enxergava tão bem lá fora a ponto de perceber que seu carro submergia. E segundo, porque concluiu, a princípio que poderia ser um defeito no sistema de vedação do automóvel. Mas esta conclusão em segundos desanuviou. O volume de água era qualquer coisa de preocupante, pois aumentava rapidamente. Mas o medo dos dois facínoras lá fora ainda estava presente. Não tinha certeza se haviam desistido. Não notara nenhuma outra investida, embora isso não fosse um sintoma totalmente seguro de que tinham ido embora. Com a cabeça próxima ao vidro e com os olhos pressionados procurou por eles inutilmente. Então, com um certo espanto, finalmente entendeu o que se passava. A súbita escuridão lá fora, não era uniforme e estática como deveria ser. Apresentava-se com uma forma turva e descontínua. A constatação do que ocorria foi um novo choque. Seu carro estava coberto pela água e o volume que entrava, logo inundaria por completo o interior.
O primeiro impulso foi de abrir a porta. Não conseguiu. Então recorreu ao botão que abria os vidros. Nos primeiros centímetros em que o vidro abaixou uma torrente forte de água projetou-se lavando o seu rosto e fazendo com que ela engasgasse. Instintivamente fechou novamente a janela. Notou que a água já chegava na sua cintura. O choro novamente irrompeu, mas com ele veio uma certa calmaria que lhe permitiu decidir pela única alternativa de sair com vida do automóvel.
Decidiu que abriria a janela do passageiro. Imaginou que deveria aguardar alguns segundos para se projetar para fora, permitindo que a água enchesse por completo o interior do automóvel e então, saindo, quando já não teria a pressão da água a entrar contra si.
O velho de barba por fazer e seu amigo Manoel ainda fitavam o furioso rio de enxurrada que se tornara a rua, quando perceberam uma cabeça, buscando manter-se acima da correnteza. Ambos se lançaram na água suja ao encalço da pessoa, que também, esforçava-se em tentar vencer a força das águas. Alcançaram-na e conseguiram trazê-la para a segurança da parte não tão inundada da calçada e em seguida para dentro do Botequim.
A mulher, ainda buscando se recompor, respirando afoitamente, como se o oxigênio do universo estivesse por acabar, olhou os dois homens que destemidamente lançaram-se na água para salvá-la. Agradeceu com sinceridade e após considerações sobre o fato, de ambas as partes, começou a narrar a sua versão e como fora parar naquela situação.
Explicou-lhes que não saíra do veículo porque havia dois marginais ávidos por colocarem as mãos em cima dela e que tentaram inclusive arrombar o automóvel quebrando o vidro, mas, que graças a Deus, seu marido havia blindado as janelas e colocado filtros solares para protegê-la da onda de violência e só ela sabia o quanto àqueles acessórios foram importantes para evitar que o pior pudesse ter lhe sucedido.
O velho e seu amigo Manoel ao ouvirem a parte que lhes situava no ocorrido, entreolharam-se e, com algum esforço, permaneceram sérios e em silêncio. A mulher continuava agradecendo e por esse tempo a chuva foi diminuindo até cessar totalmente.
Mais tarde, após usar o telefone do botequim para falar com o marido e este vir buscá-la, não poupou novos elogios aos dois homens que a salvaram, mas, no mesmo grau de importância, ressaltava as qualidades do automóvel que a protegera tão bem do assédio dos bandidos.
Observando o automóvel com o casal se distanciando, o velho e seu amigo Manoel, que, por mais de uma vez, estiveram tentados a dizer a mulher, que sim, eram eles que estavam na chuva tentando avisar do perigo, que não senhora, eles não eram marginais, mas trabalhadores honestos e dispostos a fazer uma boa ação como, por exemplo, salvar-lhe a vida, refletiam sobre o sentido de alguns acontecimentos nas vidas dos seres humanos. Olharam por um momento o automóvel da mulher parado no meio da rua, e concluíram a seu modo, que os desígnios do destino, não se prestam a serem sérios, mas, são dotados de um humor estranho, às vezes, tendendo para o lado negro, outras vezes, para a picardia, sem criar padrões que possam validamente ser utilizados em situações idênticas.
Entreolharam-se por fim, e, percebendo que um incômodo pela roupa molhada se insinuava, pensaram que, preferível a esquentar a cabeça com questões complicadas, seria um grande negócio beberem alguma coisa.

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