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Contos-->UM DIA FATÍDICO -- 21/02/2005 - 22:50 (Edson Campolina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UM DIA FATÍDICO

Foi no ritual vespertino do banho que percebi aquele nódulo, ou caroço, ou saliência – não sabia como defini-lo. O fato é que me intrigou muito, a ponto de me fazer apressar o café e rumar logo ao trabalho para selecionar um médico no sítio do plano de saúde. Por sorte – e podemos considerar mesmo sorte – consegui uma consulta com uma médica para aquela mesma tarde. Minha perturbação e medo de um diagnóstico que me pusesse ladeira abaixo requereram a convocação de uma companhia. Nesta hora, ninguém mais qualificado que o cônjuge. Era a hora da famosa tristeza ou doença na qual juramos companheirismo no altar.

Dissimuladamente anunciei minha saída antecipada a todos no escritório. Uma consulta ao otorrinolaringologista justificava a ausência. A escolha de uma especialidade médica tão abrangente me abriria um leque de justificativas e diagnósticos que pudesse camuflar o que mais temia.

Não foi fácil a espera das horas. Uma agonia me agitava, ao mesmo tempo uma perspectiva me assustava. Adiantei-me à minha esposa e a encontrei em seu trabalho. Rumamos então para o túnel Rebouças e tomamos a rua Jardim Botânico no meio daquela tarde quente. Para ela a consulta também seria com um otorrinolaringologista, até que resolvi contar a verdade na chegada do consultório. Até ali quis que ela não sofresse a mesma expectativa que eu. Precisava de um ombro que pudesse me confortar e não mais uma cabeça em desatino.

Atravessamos o pátio do estacionamento de mãos dadas. Eu caminhava a passos curtos e lentos queixando das dores e do incômodo que aquela coisa me fazia sentir. Ela manteve-se séria e solidária. Não tentou, em momento algum, me confortar com falsas certezas ou esperanças.

A sala de recepção do consultório era apertada, mas muito bem decorada. Aliviou-me o vazio, pensara no caminho o quanto seria difícil sentar-me ao lado ou diante de outros pacientes que buscavam a mesma especialidade. Apesar do vazio, atendemos calmamente o convite da recepcionista para sentarmo-nos e tivemos que esperar nossa vez. Pensei que não estivesse a salvo de encontrar outro paciente. Certamente a doutora estaria ocupada no atendimento de outro aflito ou aflita. Procurei me distrair com a decoração da sala, comentando a certeza de que somente um toque de um arquiteto poderia transformar um cubículo num local agradável. Mal folheamos as revistas que escolhemos e a médica saiu de seu consultório me convidando a adentra-lo. Ela era baixinha e fazia um tipo bem elétrico. Vestia um jaleco, obviamente branco, que fazia às vezes de um sobretudo protegendo um conjunto de jeans e camiseta que combinavam com sua silhueta descontraída de aproximadamente uns quarenta anos. Perguntei-lhe se minha esposa poderia entrar comigo e fui atendido prontamente.

Antes mesmo que a médica iniciasse seu interrogatório, tirei o paletó pendurando-o no encosto da cadeira e tive que conter meu ímpeto, pois instintivamente quase continuei a me despir. Era a pressa por um exame clínico que pudesse me livrar de todos os diagnósticos que imaginara possíveis. Então me sentei e procurei relaxar. Minha esposa, sentada em um sofá encostado na parede lateral, me olhava com um sorriso no rosto. Talvez percebera minha aflição. Aflição esta que foi se desfazendo ao tempo em que respondia o questionário preliminar sobre minha profissão, idade, endereço e outras coisas mais que somente me identificavam. Até que a médica resolveu exercer seu ofício.

_ Então senhor Mário, o que o incomoda?

Respirei fundo e, considerando que a melhor tática seria a clareza e a objetividade, sem gaguejar confessei:

_ Hoje, no banho, senti um caroço no ânus. Fiquei preocupado e por isto estou aqui.

_ Certo. E foi a primeira vez? Está sangrando?

_ Não. Quer dizer... é a primeira vez, mas não está sangrando.

Enquanto a médica abaixou a cabeça para continuar suas anotações, olhei para minha esposa e ela continuava seu sorriso, agora de pernas cruzadas e totalmente relaxada no sofá, começava a deliciar-se com o diálogo. Então resolvi acabar logo com minha maior aflição e confessar tudo. Desta vez com uma voz mais relaxada e pausada.

_ Como bom mineiro, doutora, tendo que visitar um proctologista, escolhi uma mulher, assim não me sentirei tão constrangido. Prefiro uma mulher me examinando que um homem.

Desnecessário dizer que tal declaração provocara risos nas duas, mas foi a abertura para que a médica revelasse seu humor sádico. Levantando sua mão direita me devolveu em comentário.

_ Te garanto que meu dedo é bem menor que o de um homem.

Acho que numa tentativa de me deixar mais tranqüilo, ela comentara que poucos homens a consultavam. Sua clientela era majoritariamente feminina. Por isto admirava minha escolha. Surpreendi-me! Não imaginava possível colocar-me em posição constrangedora à frente de um homenzarrão a me introduzir dedos nas partes. E tal juízo acreditava eu ser o mesmo de todos os demais aflitos, a considerar pelas brincadeiras e declarações comuns entre os homens.

A consulta prosseguiu com perguntas sobre meus hábitos alimentares. Tudo tranqüilo até ali. Então tomou um assunto mais bizarro. Queria a doutora saber da freqüência e da consistência de minhas fezes.

_ É tipo carneirinho, massinha de criança ou sabugo? Sai fácil ou tem que fazer força? Sangra quando sai? Fez algum esforço físico exagerado nos últimos dias? Tem prisão de ventre?

Todas aquelas perguntas foram respondidas com uma objetividade crua. Quase a mesma com a qual a médica se levantou e disse:

_ Vamos então ver o que está acontecendo...

Era chegada a hora fatal. Olhei para minha esposa e ela “deu com os ombros” me avisando do inevitável. Seu sorriso tornou-se sarcástico. Então fui encaminhado para um biombo que escondia um closet e uma cama – destas que mais parecem uma maca. A médica deixou-me com um avental cirúrgico que mal cobria minhas costas. Senti-me à beira do ultraje, desconfortável e ridículo com o avental azul, de um tecido descartável, quase transparente.

_ Quanto estiver pronto pode deitar-se na cama.

A voz da médica parecia trombetear janela afora o prenúncio do “toque”. Deitei-me de barriga pra cima cruzando os braços. Parecia um defunto. A médica voltou, lavou as mãos no lavado ao lado da cama e vestiu as luvas. Conversava com minha esposa, mas, sinceramente, não consigo lembrar-me do que falavam. Minha atenção voltava-se totalmente aos ruídos das mãos da médica se esfregando na toalha, depois nos estalos do látex da luva.

_ Deite-se de lado, virado para o biombo. Não se preocupe, vou introduzir o dedo e se doer você me diz.

Como se doer? Pensei comigo. Fechei meus olhos e virei-me oferecendo as nádegas ao inimaginável. A médica as separou e, antes que iniciasse o exame, ofereceu a vista à minha esposa que se postara na entrada do biombo.

_ Veja. É um vaso. A parede já está muito fina e quando eu “mexer” ele vai sangrar.

As duas já pareciam amigas, dada a informalidade de tratamento que se dispensavam. Enquanto isto, eu mantinha meus olhos fechados e procurava me confortar com a certeza de que aquele momento se acabaria. Dizia-me por todo instante: calma, daqui a pouco passa... Ingenuamente, pois não sabia o que ainda estaria pra acontecer.

_ Olha. Já estourou, está sangrando.

A médica limpava o sangue que escorria por uma das nádegas e mostrava à minha esposa. Por um instante fiquei aliviado, e diria até feliz, pois aquilo poderia significar o fim do exame, talvez a dispensa de qualquer outro procedimento. Mas como sempre, nos iludimos em momentos de dificuldades, sejam elas fisiológicas, físicas ou espirituais.

_ Mário, agora vou introduzir lentamente. Não se preocupe, já lhe disse que poderia ser pior, tenho a mão pequena e a luva está lubrificada.

Foi o suficiente para que o sorriso sarcástico de minha esposa se tornasse uma gargalhada. De certa forma, até me aliviava um pouco o sarcasmo das duas, o pior era a repetição do “não se preocupe” da médica.

_ Dói?

_ Não.

_ E agora? Dói?

_ Incomoda.

A médica então começou a revirar o dedo.

_ E agora?

Respondi com um gemido contorcendo o abdômen.

_ Pronto. É melhor não tortura-lo mais. O vaso é externo e realmente incomoda muito, sei disto.

Ela conversava com minha esposa enquanto eu tomava conhecimento de seu diagnóstico “por tabela”. Falava de meu sofrimento com tanta convicção que por um instante imaginei que ela própria teria sofrido do mesmo mal. Em contrário, como uma faculdade ensinaria a sensação de dor e incômodo de um paciente? Eu sempre tivera dificuldades de relatar dores e sentimentos.

_ Eu vou secar e limpar com lenços umedecidos e deixarei um chumaço de gaze para evitar que suje a calça. Mas não vai sujar não, já saiu quase todo o sangue do vaso.

Suas sentenças sempre tinham alguma coisa de contradição, pois anunciava o procedimento de assepsia afirmando que não me sujaria ao mesmo tempo em que emitia o aviso de um absorvente improvisado.

Terminado o “exame” e a assepsia, já vestido retornei à cadeira de paciente da escrivaninha de vidro da médica. Uma vontade louca de fumar me acometeu. Minha esposa voltou ao sofá, mais descontraída que no início da consulta, com um sorriso mais aberto que o de antes. Então nos pusemos a ouvir o diagnóstico e as recomendações médicas.

Sempre dissera que o que mais me causava receio em um diagnóstico médico seriam as possíveis privações alimentares. O “não coma isto ou aquilo” ou “só coma isto ou aquilo”, até que foi fácil de “engolir” – com perdão ao trocadilho. Tomar muito líquido, seja ele de qualquer espécie, também foi bem aceito, afinal não havia restrições ao álcool. Mas os procedimentos que descreverei em forma de diálogo a seguir foram piores.

_ Pelo menos três vezes ao dia, antes do banho, você encherá uma bacia de água quente - o bastante para não queimar, mas não vale chuveirinho - e ficará sentado pelo menos uns quinze minutos...

Antes de questionar as três vezes ao dia, pois seria impossível interromper minhas atividades no meio do dia para, literalmente, colocar a bunda de molho, questionei o diagnóstico.

_ Não se preocupe (de novo!). Pelo que você me relatou e pelo exame fica claro que é uma hemorróida externa. Internamente não deu para “ver” direito, será preciso que após o tratamento, passados uns quinze dias (ela tinha algo com o número quinze...) você retornará para um exame dos vasos internos com um “anuscópio”.

Indispensável dizer que não prestei atenção na descrição que a médica fez do aparelho. Mas para saciar sua curiosidade, leitor, trata-se de um “cateter” com luz, câmera e tudo o mais necessário para uma “violação” completa. De sorte minha esposa parecia distraída pensando em algo dela, pois não se esqueceria de lembra-me do próximo exame com o “anuscópio”.

Subitamente lembrei-me do compromisso social que tinha naquela noite. Minha presença era indispensável. Uma destas confraternizações de dezembro em que mais se trata de negócios e política interna da empresa que confraternização realmente. Preocupava-me a possibilidade de um sangramento. Imaginei as calças de meu terno de microfibra molhadas de sangue, algumas moscas a me seguir e os olhares dos colegas me acompanhando salão afora.

_ Tem certeza doutora?

_ Bom, se quiser se garantir pode usar um absorvente de sua esposa.

_ Só me faltava esta, além de ter que botar a bunda de molho terei que usar absorvente higiênico.

_ Não se preocupe amorzinho, eu te empresto.

_ Só não recomendo o OB.

As duas realmente selaram uma aliança durante a consulta. Talvez minha introdução – esta palavra me incomoda muito neste texto – ao esclarecer minha escolha por uma médica tenha sido recebida pelas duas como uma prova irrevogável de machismo.

Na saída do consultório a médica, serena, pois estávamos na sala de recepção felizmente vazia - explicava que tal “doença” era conseqüência da modernidade, surgida após a industrialização dos alimentos. Conscientemente ou não, ela provocava naquela despedida um clima de seriedade discursando estudos sociológicos. Já no carro a caminho de casa, pois precisava além de deixar minha esposa proteger-me com o absorvente, tentei pôr uma pedra definitivamente no sarcasmo. Olhei pra ela e sentenciei:

_ Não diga nada. Nem agora e nem depois. E muito menos à sua mãe.

Precisava também me proteger da sogra.

Chegara ao fim o dia fatídico. Sentei-me em uma mesa próxima à entrada do salão de festas e não me movimentei. Chegando cedo pude cumprimentar a todos que chegavam dispensando a tradicional visita às demais mesas. Procurei não alongar assuntos, pois, caso necessário, podia me ausentar subitamente. Felizmente nada que imaginara no consultório médico naquela tarde acontecera. Tudo já fora o bastante: um exame de “toque”, um absorvente e o ridículo de sentar-me por quinze minutos dentro de uma bacia no Box do banheiro.

Concluo deixando algumas indagações que ainda não obtive esclarecimento: porque tão poucos homens escolhem um proctologista do sexo feminino? O título deste texto não seria melhor “com a bunda de molho” ou “meu primeiro absorvente”? Certamente. Mas não quis usar o título como chamariz. Também deixo duas certezas aos homens que porventura, ou desventura, me lerem: não é recomendável que levem suas esposas como companhia a proctologista; e mesmo que tivesse alguma tendência, definitivamente agora, por recomendações médicas, que na verdade não foram explicitadas, não tenho a mínima chance de me tornar homossexual, fisiológica e fisicamente estou, pra sempre, impossibilitado. E mais, antes que me esqueça: não é caroço, nódulo ou saliência, é vaso.

Fim.
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