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Contos-->Os Segredos da Pasta Rosa (Capítulo I - PROLOGO) -- 18/12/2000 - 01:53 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PRÓLOGO


Após três longas e silenciosas horas de viagem, murmurei, externando uma turva cortina de incertezas:
“- Finalmente... Finalmente estou chegando à fazenda. Espero contar com a sorte do meu lado, e, mesmo sem o auxílio do meu guia... possa superar empecilhos de última hora e localizar o refúgio do senhor Oinotna...”.

Pensando assim, fixei no pára-brisa o mapa de orientação. Presente do Capitão Diogo Alvarenga. O Capitão, amigo de longa data do ermitão, fora única pessoa capaz de promover o encontro. Desde primeiro momento, deixou-me fascinado com a possibilidade de desvendar o mistério do personagem de passado nebuloso e hábito pouco sociável. Deveria existir algo de muito aterrador para leva-lo buscar refugio na bacia hidrográfica do Riacho Fundo. Região agrícola da Capital.
Se para alguns, o velho Oinotna encarnava um tosco personagem do folclore local -ungido do imaginário de uma mente doentia e pouco fértil. Para outros; que se vangloriavam de terem tido a oportunidade de com ele estar e, merecer seu precioso auxílio e proteção: era um santo.
No entanto, para todos eles, não passava de um lunático. E por esse motivo, chamavam-no de “o Lobo da colina”; por lhe guardarem respeito e temor.”“.

O mapa no pára-brisa não traduz uma cópia fiel da carta geográfica da região. Contudo, disseca o relevo e vegetação com tamanha minúcia de detalhes, que, peguei-me superestimando minha vaga capacidade para traduzir gravuras e referências de caráter meramente ilustrativo.
O Capitão sempre fora possuidor de traço firme e imaginação fértil. Produziu um esboço repleto de detalhes do relevo e vegetação. Uma obra prima de artesão.
A rota tracejada traduzia-se numa tênue linha pontilhada que serpenteava por entre as principais elevações rochosas. O ponto a ser atingido estava assinalado com um “x” cravado no ápice da colina mais alta da cadeia rochosa que contorna a margem esquerda do riacho. Um singelo “x”, de cor e tamanho bisonho, capaz de me proporcionar calafrios.

O Capitão me informara que a cadeia rochosa era de fato uma inusitada e deslumbrante depressão do solo. Muito comum à região. No entanto, suas proporções eram assustadoras; para quem não estava acostumado com as alturas.
Prevendo que teria de superar traumas de infância para galgar o cume da elevação; afastei de mim a indesejada sensação de vertigem.


Quando dos preparativos para viagem, o Capitão se opusera à minha firme decisão de levar adiante a excursão até à nascente do riacho. Ele ficara impedido de ser meu guia; como era esperado e desejado. Logo ele, que, durante seis longos meses, dedicara-se à tarefa de negociar a realização da entrevista, viu-se impedido de levar adiante nosso projeto.
Recebera um telegrama do Ministério da Defesa. Fora convocado para prestar esclarecimentos quanto às denúncias de que o alto escalão militar estava envolvido em subornos na aquisição de uma partilha de aviões de um país com pouca tradição no fornecimento de armamentos bélicos.

Se não me bestasse essa má notícia, fui advertido de que, sem sua companhia, minhas chances seriam as piores possíveis. Uma, talvez duas, entre dez boas tentativas. Eu não conhecia a região; era franzino; possuía pele desgastada pelo clima europeu; e não tinha experiência ou afinidade para desenvolver marcha em região com topologia acidentada. E o que era pior; não o conhecia e não mantive contado prévio com a pessoa com a qual iria me encontrar.
Para o Capitão, esses argumentos eram, por si só, suficientes para abortar a excursão. Contudo, bem o sabia, que desejava dizer que um estrangeiro, de pele clara e trejeitos afeminados, não teria força física suficiente para superar os obstáculo que encontraria. O clima árido, com temperatura média de 40 graus, à sombra; e a escassez de umidade no ar; iriam me levar à exaustão no primeiro quilometro de marcha.
Relutei, mas não cedi às suas admoestações. Afinal, “Sobornne” não é escola de maricas como ele pensava. E, para mim, os fins sempre justificavam os meios. Nada, nada que fosse capaz de dizer ou fazer, mudaria minha firme decisão. Aquela me era uma oportunidade única e rara na minha precoce carreira jornalística. A possibilidade de produzir um autêntico furo de reportagem. A possibilidade de entrevistar Deputado Francisco Oinotna. E quem sabe, desvendar o inexplicável mistério de seu desaparecimento, em um não menos, inexplicável e misterioso acidente aéreo na região serrana do Estado da Bahia.

Se me recordo bem, o acidente não produziu vitimas fatais. No entanto, um passageiro desaparecera sem deixar vestígio. Evapora-se no ar; como se fosse uma nuvem de fumaça. Das causas do acidente nada fora divulgado. Vestígios que poderiam ser reveladores; não foram levados em conta. Depoimentos não foram levados em consideração. E ninguém, nem mesmo a impressa, ante a truculência do órgão de investigação, teve acesso ao relatório final quando encontraram a caixa preta do avião. E tudo foi esquecido. Caiu no esquecimento. Surgiram outros casos de maior interesse jornalístico.
Mas isso não era tudo; aquele encontro também representava a possibilidade de desvendar outro mistério: o sumiço de documentos do arquivo particular do mais temido Senador da República. Correu o boato nos bastidores do poder que a pasta continha documentos de caráter ultra-sigilosos. Documentos esses, que, se levado a público, fariam tremer os pilares do Congresso Nacional.
Ao todo essa sorte boatos e futricas, somava-se o fato de que fora noticiado que um dos passageiros portava uma pasta semelhante àquela que desaparecera no Congresso.
Numa entrevista, publicada como matéria de caráter apócrifo; um membro da tripulação afirmava:
- O passageiro, da poltrona 33, denunciava nervosismo... Seu semblante era frio e duro. Contrariando os costume dos passageiros, que, via de regra, embriaga-se nos vôos comerciais; ele não ingeriu uma gota de bebida alcoólica... Para relaxar a tensão, exigiu água mineral, sem gás... Posso jurar que tal passageiro transportava a pasta... no colo. Folheava um maço de documentos. Transparecia estar em transe medonho... Tamanha era sua aflição.
A citada entrevista só ganhou espaço em jornal de segunda categoria. Publicada no segundo caderno; com direito a chamada de capa. E nenhuma linha a mais foi escrita.
Imagino que alguém não aprovou o teor da matéria. O fato é que jornal não mais circulou. Esta foi primeira e única matéria jornalística, que, veladamente, fizera menção à presença do Deputado entre os passageiros.

Era do conhecimento público que a curta e meteórica ascensão do ex-assessor parlamentar, devia-se, e muito, ao desempenho na espinhosa missão de colher e armazenar informações em torno das mais importantes autoridades do meio político e empresarial do país.
Um projeto megalomaníaco.
E não se pode negar, que ainda nos dias de hoje, seu precioso acervo documental é objeto de intrigas e contradições. Alheio à sua vontade, o Senador que patrocinou o projeto passou a ser temido. Para alguns, respeitável; mas para todos, temido e respeitado.

Na véspera da minha viagem mantive uma conversa áspera com Capitão. Ciente da minha decisão, resiguinou-se da minha determinação. A partir de então, instruiu-me para ter muito tato com seu amigo. Era uma pessoa falante, se bem, que de hábitos pouco convencionais.
Para minha alegria fui informado que o ermitão me seria amigável. Ele mesmo se dispusera em fazer algumas concessões na entrevista. E para meu desprazer, também fiquei sabendo que o ermitão fizera planos para abandonar aquelas paragens. Partiria para outras terras. Uma viagem sem volta.
Fiquei ainda mais indignado ao saber que o refúgio, onde, por longos anos, reencontrara o sentido do seu viver, já não mais lhe era habitável. E por esse motivo, somente por esse motivo; rendera-se ao meu desejo de penetrar na sua intimidade e falar do passado.


Entre acertos e desacertos, às quinze horas e dez minutos abandono o perímetro urbano para atingir a cercanias da Fazenda Sucupira. Minha aventura só estava começando. Ao assumir os riscos da expedição, sem recorrer ao seu auxílio de pessoa com conhecimento da região, decretei minha submissão aos caprichos do destino.
Num sobressalto tiro o pé no acelerador; para as rodas não desgarrarem do trilho. A estrada de terra batida ganhou declive acentuado. O piso ficou irregular e abrasivo. As rodas trepidam, relutando seguir em linha reta. No porta-malas a bagagem rola, de um lado a outro, produzindo um barulho abafado na lataria.
Transporto duas mochilas. Uma delas, pertence ao Capitão. É a mais pesada e frágil.
A viagem fica desconfortável.
Cruzo o portão norte da fazenda; toldada por uma guarita abandonada. As péssimas condições da construção denunciam que o posto de vigia a muito foi abandonado. Já não possui a serventia de outros tempos, quando, militares de farda oliva controlavam o tráfego de veículos e pessoas.
Duros dias aqueles; mas era preciso. Era preciso afastar visitantes indesejados.

No céu o astro solar brilha, intensamente. O calor é escaldante. Deixo-me hipnotizar pela paisagem azul anil bordada de nuvens brancas e fofas.
Ela alivia minha tensão.
Ao longe, no quadrante sul, descortino uma descomunal mancha negra que floresce na linha horizonte. O tempo permanece firme; sem ameaças de brusca alteração.
Trafego com cautela. O declive fica ainda mais acentuado. As margens comprimem o veículo; de ambos os lados. O mato roça a lataria. Surge uma bifurcação.
A inesperada bifurcação me obriga fazer uma escolha impensada. Viro o volante e sigo pela pista da esquerda; com as rodas do lado direito amassando o capim.
O sol desenha um semicírculo e toma posição lateral à minha trajetória. A poeira penetra pela janela em grossas camadas. Fecho o vidro; e o calor fica ainda mais insuportável. Sobre o cristalino do pára-brisa a incidência solar se fraguimenta em arco-íris; ofuscando a visão. Permito que mãos rígidas e úmidas deslizem no volante.
Inflo os pulmões com poeira de cor vermelha e reduzo a marcha. Sigo em frente; perigosamente. A estrada permanece estreita e sinuosa.
Sorrateiramente, uma imensa cortina negra derrama-se por sobre a região; apagando a luz do dia. O volante trepida na mão; as rodas ameaçam desgarrar; perco o sentido de direção. Fico a mercê da sorte.


Quando me dispus proceder esta viagem, era meu desejo contar com a companhia do Capitão. Muito mais do que guia e companheiro de aventura; seria interlocutor que abrandaria a defesa do entrevistado. Mas para minha infelicidade, um imprevisto de última hora impedira de comigo estar. E nem mesmo ele poderia imaginar que o acaso fosse capaz de prejudicar nosso projeto inicial. Lembro-me do seu semblante. Ficara perturbado e visivelmente irritado.

O celular toca. Digo: Alô!
Uma voz amiga responde, em tom apreensivo; como se previsse que algo de mal estava prestes a ocorrer comigo. Grita:
- Por onde você anda, seu maluco? Por diversas vezes tento completar essa ligação e não encontro retorno!

Não tive tempo para emitir resposta. Atirei o telefone no banco de passageiro para desviar de uma pedra que rolou da ribanceira. Imprevisíveis colunas d’água descem da encosta levando consigo toda sorte de detritos. Percebo-me no centro de uma tromba d’água. Mantenho as mãos grudadas no volante. Tesas.
A mudança de temperatura faz a translucidez do pára-brisa alternar para o opaco. Sobre a capota ouço o tamborilar revolto de grossos pingos de chuva. Aciono o limpador do pára-brisa; na máxima rotação. Eles fazem – tique-sunch, tique-sunch.
A diminuta aderência das rodas no terreno alagadiço me é motivo de preocupação. A estrada não mais me possibilita tráfego seguro. A ausência de visibilidade obriga meus extintos ficarem alerta. A respiração; inconstante.

- Alô! Alô! – insiste a voz, no banco do carona.
- Estou aqui, Capitão! – gritei, para me fazer ouvir.
- A linha está péssima! - respondeu ele, usando o mesmo tom de voz.
- Esta caindo uma tempestade!, amigo.
- Tempestade? Você está delirando! – disse-me ele, aos sorrisos. – Aonde você se encontra? – complementou.
- Estou estacionando.
- Estacionando, aonde?

Balbuciei que me encontrava confortavelmente enclausurado no meu casulo metálico; admirando a paisagem. Todavia, previ ser melhor não dar vazão ao meu lirismo; o vento açoitava o veículo com tanta violência que, fez-me pressentir que meu suposto conforto não representava segurança. As rajadas de ar faziam o veículo balançar; como se ele fosse um objeto frágil e instável.
Tive certeza: ninguém, nem mesmo os deuses; são capazes de conter o desassossego dos elementos da natureza.


Desenhei uma grossa fresta no vidro embaçado. Com a visão eclipsada pelo volume da chuva presenciei o capim molhado se curvar ante a fúria do vento. Luzes faiscantes riscaram o céu; provocando explosões, ao longe.
Não havia muito que fazer, então.

- Estou estacionado em frente à Escola Kanegae, Capitão... – falei, por fim.
- O que faz neste lugar?
- Ora! Estou tentando provar que não preciso de guia para localizar um reles ermitão...
- E tem certeza que seguindo esse caminho vai conseguir? – sua voz denunciou desapontamento.
- Com sua orientação espero que sim... Capitão!
- Quem não é capaz de amarrar o próprio coturno, meu rapaz; não pode afirmar que pode encontrar uma agulha no palheiro! – advertiu-me ele.
- Não seja grosseiro, Capitão... O amigo não sabe sê-lo.
- Não estou sendo grosseiro! Apenas busco reparar um grande equívoco... Jamais deveria ter permitido que uma paisana assumisse os riscos desta missão.

Alertado que tomara a direção oposta ao destino desejado, relutei abandonar minha aventura solitária. Havia me envolvido de tal maneira naquele projeto que nada me levaria a fraquejar. O encontro com o velho ermitão não podia ser adiado. E a promessa do Capitão que obteria outra oportunidade para satisfazer meu desejo, era insustentável. Aquele encontro consumiu seis longos meses de negociação. Naquele momento, quem era a parte mais interessada deveria cumprir sua parte no combinado.
E era tudo o que mais queria. Estava disposto a mover pedras e montanhas para atingir meu objetivo: entrevistar o velho ermitão.

- Que vai fazer? – indagou-me ele.
- Vou prosseguir...
- Tudo bem, tudo bem; monsieur Jacque. Advirto-o que estás proibido de escalar o penhasco. Se não era um caminho seguro, imagine depois da chuva!
- Obrigado, Capitão... Sou desmiolado, mas nem tanto.
- Tudo bem, vou ficar torcendo por você... Ligo mais tarde!
- O que disse? - gritei
- Vou ficar em contato!
- Só mais uma pergunta, Capitão... Apesar de toda chuva, é possível encontrar seu amigo?
- Quê? – gritou, ele.

- Quero saber se com toda essa chuva posso manter a esperança de encontrar o ermitão?
- Imagino que sim... ele numa me faltou a um encontro. – concluiu ele.

Para meu espanto, a chuva torrencial como veio se foi. O sol ressurgiu com tamanha intensamente de brilho que poderia julgar que não houvesse chovido. Somente a água barrenta que corria pelas encostas formando pequenas corredeiras e cascatas, denunciava que sim.

= ~ = ~ = ~ = ~ =

Vinte e um anos após a efetiva colonização da região, a bacia do Riacho Fundo estava passando por terríveis transformações. A zona seca ou do cerrado havia reduzido dois terço do seu tamanho ideal. Somente uma faixa muito estreita de mata ciliar permanecia preservada. O desmantelamento desordenado aliado ao ciclo das erosões eram as principais causas que estava destruindo o solo das margens ribeirinhas. Era corriqueiro observar árvores centenárias tombarem uma sobre as outras; como se fossem desprovidas de raízes.
Um acontecimento condenável, que denunciava o agravamento do descontrole ambiental. As águas pluviais já não eram contidas na zona do envoltório. E o que restara do lençol freático era insuficiente para armazenar todo o liquido coletado.

Indiferente àquela intempérie, com passadas largas, um andarilho solitário afasta-se da zona cerrado e penetra a trilha da vegetação na mata ciliar. Não é feliz no seu intento. A correnteza arrancou a velha ponte de suas amarras. E, cada vez mais, a correnteza vai ganhando volume e força de destruição.
O andarilho busca outro ponto de travessia. Lá adiante, aventura-se transpor as águas revoltas fazendo uso do tronco do crapiá. O corpo curvado pelo peso da idade ganha movimentos suaves. As passadas são ritmadas. A travessia segura.
Já do outro lado margem o equilibrista sorri; um sorriso de prazer e alegria. A brisa vespertina começa a soprar; úmida. Folhas recusam ganhar movimento de pêndulo; úmidas. O tecido gruda na pele; úmido. Uma chuva repentina cai das folhas em grossas goteiras. É uma torrente passageira.

Com as vestes umedecidas o andarilho cruza a clareira coberta de grama rala. Do Outro lado, uma cabana erigida às margens do regaço foi tragada pela vegetação. Fundiu-se à paisagem como se fosse parte dela. As fundações estão corroídas pela ação do tempo. A fachada principal, guarnecida por varanda de telhas enegrecidas, denuncia abandono. Na selvajaria silvestre do pomar, ervas daninhas sufocam o botão de rosa que teima florir em pétalas vermelhas.

“-VERUSKA, VERUSKA... por andarás VERUSKA!” – murmura ele.

O observador solitário permanece imóvel. Olhos turvos. A mente cavalgando selvagens lembranças inicia uma frenética corrida na contra do tempo. Um frio doído eriça os pelos do corpo. Ele degusta sua agonia. Não afasta a dor que aquelas imagens do passado lhe proporciona. Sorve-as como se elas lhe fosse um bálsamo para as chagas não cicatrizadas. Colhe uma certeza: aquela morada padece da ausência do seu inquilino.

Trôpego, investe contra a estante de madeira escura. A porta rústica não oferece resistência ao toque da mão trêmula. Uma fresta de luz fere as sombras e lança um retângulo de poeira sobre escrivaninha iluminando o velho abajur de prata. Colhe dois volumes da estante empoeirada. As pernas fraquejam. O corpo encontra apoio no metal da lareira. A lareira exala cheiro rançoso de fuligem e carvão em estado de putrefação.

Hesitante, folheia páginas do passado amarelecido. Engole a seco. Seu olhar fica vidrado na boca de lábios finos que lhe sorri um sorriso doce e meigo. O hálito adolescente perfuma o ar da sua imaginação. Acaricia a aridez plana do rosto desenxabido.

“- VERUSKA... Por onde andarás, VERUSKA!” – clama ele, com um grito preso na garganta.

Afasta-se daquelas lembranças. Busca socorro no presente:
“Creio que o amigo do Capitão se contentará com essas lembranças... Se o rapaz for determinado com me informara, é bem possível que neste momento já esteja zanzando no meio do cerrado...”, pensou ele. E partiu deixando o passado trancado naquele casebre de cômodos sombrios e úmidos.

= ~ = ~ = ~ = ~ =

O telefone toca mais uma vez:

- Jacque!, como anda as coisas por aí, meu rapaz?
- Tudo bem... acho! – falei com voz cansada.
- Como tudo bem... acho!
- Estou exausto...
- Jacque; não me digas que você teve a insensatez de escalar o paredão?
- Não tive outra escolha... Capitão. Era tudo ou nada.
- Seu desmiolado! Você...

Recordo-me que quando tomei a decisão de prosseguir com minha aventura; o Capitão me advertira de que, após retornar à bifurcação, deveria abandonar o veículo estacionado ao lado do portão da Mansão Boi Zebu – o proprietário cuidaria dele enquanto fora estivesse.
A partir daí, iniciaria à etapa mais penosa da viagem. A trilha sugerida pelo Capitão era a rota mais indicada para turistas com pouca inexperiente em trilhas silvestre. Para tanto, deveria manter o curso; sem relutar em seguir a rota previamente planejada. O relevo acidentado; a vegetação rotineira e monótona; poderiam me levar desviar da direção pretendida.
Seguir o trajeto era uma ordem, e não um conselho. Suas ordens continham advertências e sugestões: quando adentrasse no cerrado, eu deveria dar uma passada maior com a perna esquerda. Era um artifício. Um artifício que evitaria ficar andando em círculos ou retornar ao ponto de partida; no sopé da serra. E por último; fez-me prometer que jamais me aventuraria numa escalada do paredão rochoso. Era o caminho mais curto; todavia, de perigo extremo. Qualquer descuido de minha parte estava fadado a me envolver em acidente grave proporção; se não tivesse alguns ossos quebrados ficaria com profundas escoriações...

- Você pode me descrever o que vê? - gritou ele, insatisfeito com meu longo silêncio.
- Creio que sim... Estou meio zonzo, mais creio que estou onde deveria estar.
- O que você vê?
- Mato e pedras...
- Deixe de ser infantil, monsieur Jacques. Olhe na direção leste! Oposta ao sol... Vês os edifícios da cidade?
- Sim, vejo... Mas que loucura! – gritei atônico. – Capitão, Capitão! Na cidade já é noite e, onde estou, ainda é dia!
- Eu sei! Eu sei...
- Não posso acreditar no que estou vendo, Capitão!
- Não fique histérico, meu rapaz... Siga meu conselho: de meia-volta, e mire na direção do sol... O que vês?
- Vejo... vejo... Não vejo nada! – gritei.
- Não se faça de tolo. – ralhou ele. Ouça-me bem: observe a elevação que fica bem abaixo da linha do sol... Procure por uma formação rochosa do tamanho de um homem adulto...

Presumi que o Capitão estivesse a gracejar para com comigo. Não arriscara minha vida naquela aventura para ficar procurando rocha no meio do cerrado. A noite não tardaria achegar; e não observei nenhum vestígio do ermitão.

- Já a encontrou? – gritou.

A voz do Capitão denunciava ansiedade. Fiquei cúmplice daquela emoção. Quando ele descrevia a paisagem; podia afirmar que estava ali, comigo.
Não consegui atenuar suas expectativas.

- O sol me ofusca! Adverti-o.
- Esqueça o sol! – gritou. - Foque sua visão na vegetação... Procure descortinar uma silhueta rochosa do tamanho de um homem adulto!

Depois de um breve silêncio:
- Encontrei! Encontrei! Vejo duas; duas rochas no meio do arbusto!
- Tem certeza?
- Sim, Posso vê-las!
- Bom trabalho, Jacque... Você conseguiu!
- Não estendi a piada, Capitão... Poderia ser mais claro?
- Não só claro como coerente! Mas antes; devo informa-lo que não mais manterei contato c contigo.
- E porquê?
- Não vejo motivo para ficar bancando a babá de um marmanjo como você.
- Tudo Bem... Mas até o presente momento; não vi nenhuma sombra do seu amigo.
- Estou certo de que sim, meu rapaz. É só tomar a direção da suas duas rochas que ele estará te esperando.
- Como pode ter esta certeza?
- Ora, meu rapaz, é muito simples; uma delas só pode ser ele. Por lá, só existe uma!

O Capitão desligou o telefone. E a partir daí, não mais nos falamos.



= ~ = ~ = ~ = ~ =


Para meu espanto, no primeiro contado que mantivemos, o ermitão dispensou qualquer tipo de apresentação.
Numa atitude que me pareceu inamistosa; não correspondeu a um aperto de mão.
Adverti-me de que aquele gesto era indício de que não aprovara minha chegada tardia. E o mais grave e constrangedor; eu não estava acompanhado do Capitão; seu amigo.
Sem dizer uma palavra, Oinotna se apossou da mochila do Capitão. Fez-me perceber que sua única e real satisfação para com minha presença era comprovar que suportei a difícil tarefa de transportar uma dupla carga de bagagem até aquele lugar ermo. Nenhum gesto ou atitude de minha parte teria maior reconhecimento ou aprovação.

Abriu o feche da mochila e conferiu o conteúdo; com visível satisfação. Com um leve piscar de olho, fez-me ver que ficara agradecido por minha dedicação. A encomenda que o Capitão despachara chegou intacta.

Disse-me ele então:
- Ouça-me bem, meu rapaz... Não estou certo se este é o caminho pelo qual devo conduzir minha narrativa. Creio, que não me será fácil descrever com exatidão uma série de fatos que me ocorreram, e que mudaram o rumo de minha vida. Admito, no entanto, que faço esta tentativa com a melhor das intenções e prazeroso por compartilhar estas recordações...

Continuou, após uma breve pausa:
- Recordo-me de que quando era jovem como você, participava de uma Comissão de Cidadãos que efetuava mais uma romaria à Capital. Manter contatos políticos que se traduzissem em verbas federais para a nossa pacata e esquecida cidade natal, era meu propósito. E como de outras vezes, sempre no mesmo objetivo, nem sempre alcançado; não dispunha de tempo para a conhecer a realidade que existia além das paredes dos palácios do governo. Meus dias eram consumidos na enfadonha tarefa de andar nos vastos corredores do Congresso e visitar os gabinetes sempre vazios de nossos ilustres deputados.
Uma rotina estéril e cansativa.
Mas daquela feita, atendendo à sugestão de um amigo, resolvi descobrir se além daquelas estruturas esculpidas em aço e cimento, se além da empáfia e do cheiro de naftalina que a classe dominante recendia; havia uma outra cidade que pulsava, que possuía vida própria e que exalava outros odores.
Devo dizer que fui muito feliz nas minhas andanças.
Entre uma conversa e outra, entre um relato e outro; tomei conhecimento de que entre os moradores mais antigos, também conhecidos como candangos, era possível escutar histórias e casos que somente os pioneiros da construção daquela cidade poderiam contar.
Histórias essas nem sempre verídicas, é claro. Mas, que de tão prosaicas e improváveis foram assumidas por todos como verdadeiras. Como este causo que me contaram de um dos mais ilustres fundadores da nova Capital; um certo retirante do nordeste brasileiro...
Foi por volta dos anos de 1956, que, refém da má sorte e exaurido pela constância da seca de três longos anos, nosso personagem resolveu cruzar o agreste sertão na busca de encontrar noutras terras seu quinhão de riqueza.
Fora uma jornada ingrata. Após quinze longos dias de dor e sofrimento, o andarilho descortinou um pequeno povoado no seu caminho. Esgotado e desejoso de uma boa noite de sono, a exemplo de outros viajantes buscou pousada na única hospedaria que por lá existia.
Não teve a acolhida que deve ser dispensada a qualquer turista.
Um rapazola portando um terno já encardido pelo tempo correu, e bloqueou seu caminho. Transpirando a autoridade que não ostentava, não permitiu que o cliente maltrapilho descansasse no chão o fardo da viagem. Com voz rancorosa bradou que não havia vagas disponíveis no palacete; era de uso exclusivo dos funcionários da cúpula do Governo Federal. E assim sendo, melhor seria seguir caminho e buscar guarida no próximo povoado. A nova cidade que estavam erguendo no meio do cerrado era destino de todo forasteiro sem um tostão no bolso.
Sem emitir uma palavra, o andarilho como chegou, partiu...


= ~ = ~ = ~ = ~ =

O ermitão fez outra longa pausa. E, após meditar para reencontrar o fio da narrativa, exclamou com visível satisfação:

- Mas há males que vêm pro bem, meu rapaz! Anos depois, ainda carregando a lembrança das humilhações que sofrera do garboso gerente, o andarilho retornou ao estabelecimento para desfazer aquele mau entendido. Quando lá chegou, ao invés de destratar o arrogante funcionário, pediu para ter um dedo de prosa com o dono do estabelecimento.
O pedido não foi aceito de imediato, como era de se esperar. E mais uma vez, teve que suportar outras humilhações. Amargou uma longa espera sob o calor escaldante de um sol impiedoso.
O dono da hospedaria só tomou conhecimento das intenções do recém-chegado, quando; cansado de ver a persistência com a qual o vulto se mantinha estacado na porta do hotel, indagara o gerente quanto à motivação daquela cena.
Naquele momento o sol do mês de abril pousava na linha do horizonte; rasgando o céu com seu facho de luz vermelho pardacenta.
Prevendo que o patrão não aprovaria seu procedimento, o funcionário desfiou uma longa e cansativa história para justificar sua decisão. Por fim, caiu em contradição e contou a verdade. Pouco depois, conduzia seu desafeto até à presença do patrão.
O visitante foi recebido com um largo gesto de boas vindas. Uma caneca d’água fresca e cachaça de boa qualidade; foi à maneira mais amistosa que seu interlocutor encontrou para preparar a conversação. Desejando que o ambiente já estivesse mais sereno; o dono da hospedaria desfiou um rosário de desculpas e promessas de que o funcionário receberia uma severa reprimenda.

- Queira perdoar os maus modos do meu gerente... meu amigo. - falou com voz mansa, quase soletrando as letras.
O visitante permaneceu calado, com os olhos no chão.
O outro continuou:
- O comportamento do meu funcionário compromete a reputação comercial do estabelecimento... Turva nossa imagem progressista! – intuiu ele. - Posso lhe assegurar que vou tomar uma medida severa! E este tipo de comportamento não espelha a índole do povo desta cidade humilde e hospitaleira.

A promessa de reprimenda não foi do agrado do visitante. Agradeceu a acolhida e disse que o caso não precisava ser levado aos extremos. Não traria benefícios a ninguém. Só retornara para tirar um dedo de prosa.
A partir de então, os dois distintos cavalheiros travaram um curto diálogo de pé-de-ouvido. A conversa foi encerrada com um aperto de mão. E o viajante foi alojado nas mais amplas e luxuosas instalações que o imóvel possuía.

Se toda história tem a sua moral esta também deve ter a sua, entretanto não a revelarei, prefiro que cada qual tire a sua. O fato é que, aquele aperto de mão selou um contrato de compra e venda; e a demissão do funcionário por incompetência para o ofício.”“.


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Após me contar esse causo, de conhecimento exclusivo dos fundadores da cidade; meu anfitrião passou a assoviar uma canção por mim desconhecida. Pareceu-me que aprovara minha presença. Com passadas largas, imprimiu um ritmo mais forte na nossa caminhada. Cortava caminho transpondo a vegetação rasteira.
Do meu lado, encontrava-me tão esgotado fisicamente que não mais conseguia esconder meu estado lastimável. Movia-me com passadas claudicantes, a respiração forçada, e as escoriações latejando.
Abreviando meu sofrimento, o ermitão anunciou que podíamos descansar o fardo da viagem.

- O Capitão me informara de suas intenções, meu rapaz... – disse-me ele, como se fizesse uma indagação.

Permaneci calado. Não tive ânimo para emitir resposta. Sentia-me terrivelmente exausto. Ofegante. A respiração pela boca aumentava a sensação de sede. O ar que penetrava nos pulmões era áspero, e me proporcionava ardor.

- Após àquela pancada de chuva; cheguei a duvidar da sua disposição para concluir a viagem... Imagino que tenha passado maus bocados.
- Sinto-me exausto... mas posso afirmar que estou realizado. – falei por fim.
- Foi uma decisão corajosa, de sua parte...
- Nem tanto. Mas não posso negar que por diversas vezes pensei desistir.
- Eu sei... Já passei por situação semelhante.
- Aonde vamos?
- Já chegamos! Descanse que vou providenciar um revitalizante chá de ervas... – estendeu dois sacos de dormir. - Haverá muito tempo para falarmos das coisas que deseja saber. - concluiu.

O ermitão, temido por todos por ser o Lobo da Colina do Sol, abandonou-me no centro de um circulo árido; desprovido de vegetação. O local escolhido era com se fosse uma plataforma no topo da colina.
Com passadas largas embrenhou na vegetação. Fiquei solitário e sozinho; negando agasalhar maus pensamentos que rondavam minha mente.
Enquanto buscava atinar para tudo que estava se passando comigo; a escuridão da noite me envolveu e cobriu o topo da colina de sombras. A noite chegou tão abruptamente, que fiquei a imaginar que ocorrera algum um eclipse solar ou, que alguém houvesse desligado a luz do dia da mesma maneira como desligamos as luzes do aposento.
A escuridão era tão intensa que só me permitia enxergar um palmo na frente do nariz. A paisagem que era paradisíaca se transformou na visão interior de um túnel assustadoramente desprovido de luz. Naquele ambiente; a insignificante luminosidade da combustão de um fósforo teria a intensidade de um farol marítimo.
Pouco a pouco, recuperei o senso da visão que a brusca mudança de luminosidade me roubara. Pouco a pouco, já podia divisar o ascender e apagar dos vaga-lumes que tingiam a vegetação de luz e alegria. Pouco a pouco, uma quantidade incontável de estrelas começou bordar constelações e signos. O Cruzeiro do Sul era o mais nítido.

A partir daí, comecei a me dar conta que me encontrava isolado do mundo. Tive certeza que a plataforma em que me encontrava flutuava; como se fosse um disco capaz de pairar sobre a imensidão da terra. Não descortinei nenhum abrigo para me proteger do orvalho da noite. Tudo que havia à minha disposição era o saco de dormir, a fogueira que exalava cheiro da madeira em combustão, e aquela paisagem sem horizontes que se estendia por todos os quadrantes da terra.
Meus olhos aterrorizados não eram capazes de transpor a névoa espessa que nivelava o relevo com se fosse um infindo tapete betume estendido por todos os rincões do planeta.

- Teremos uma noite fria pela frente. - informou-me, o ermitão.
- Espero que sua fogueira nos mantenha aquecidos. - retruquei.

Ele não se deu conta da minha angústia.
- Espero que aprecie passar a noite contando estrelas e falar das trivialidades da vida...
- Vou adorar... Só quero que saibas que esta será minha primeira experiência... Sou um bicho da cidade; tenho pavor de escuro. – informei, confuso com a situação.
- Não tenha medo, meu amigo... Quem provoca medo é a solidão.
- Eu sei... Mas devo dizer que o burburinho que por aqui escuto é mais aterrador que o burburinho da cidade; em pleno ruche do meio dia!

Naquele momento, as cantorias da fauna nativas ganharam novas acordes. O coro das cigarras, com seus chiados e zimbilos, tornou a melodia ensurdecedora. Um animal ladrou no meio da escuridão. O uivado de lobo em noite de lua cheia remoçou em minha mente cenas vampirescas que guardo como herança dos filmes de terror.
Após longo e injustificado silêncio, o ermitão falou, por fim:

- Pode ser... No entanto, procures imaginar que tudo isso é música. E música se fará. – disse me ele; sem externar emoção.

Fiquei meditando suas palavras. Na outra extremidade da clareira a fogueira começou arder em grossas labaredas. O clarão das chamas tingiu a folhagem úmida de sereno proporcionando um brilho viscoso.
Uma dor de vazio apertou meu peito. Tive certeza; não mais possuía a segurança da civilização e o conforto da vida moderna. Aquele me foi um momento de emoção extrema. A labaredas de fogo que ardiam em tonalidades vermelho e roxo acordaram em mim traumas de infância. De súbito, percebi-me sufocar pela fumaça e o corpo aquecer com o calor das chamas.

O ermitão sentou-se ao meu lado. Sua presença dissipou o pesadelo. Começou então a falar, a prosear, como se desse prosseguimento a uma narrativa a pouco interrompida.







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