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Contos-->LOMBRA PÓS-EMPREGO -- 12/02/2005 - 20:14 (Luis Gonçalves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
LOMBRA PÓS-EMPREGO

Luís Gonçalves
Pela fresta da madeira vejo o raiar do sol na linda manhã natalina. Ao contrário dos filmes natalícios da televisão, cá pra nós, o Natal é comemorado com muito sol.
Ás vezes chego a duvidar que exista tanta neve no globo terrestre...
Também, não há gelo que resista a um mormaço desse?!
Mas, o povo inventa tanta coisa, que até Deus duvida...
Pensativo e sonolento, o corpo é um fardo pesado e estafante —, castigado pelo desprazer cotidiano.
O dente cariado da frente voltou a doer. Parece que dessa vez a dor será a valer. A cárie protesta contra tudo. Reivindica os direitos da cura com uma inflamação profunda. Capaz de arrancar o sabor dos alimentos. O gosto amargo deixa o hálito acre e a saliva avermelhada —, denunciando o sangramento da gengiva. E pensar que um dia exibi dentes saudáveis e boca perfeita. Quase me esqueço dessa época. Há se conseguisse extrair o malvado! Até que seria uma maledicência a menos. Quando a dor apertar, durante o desespero, forçarei o infeliz com uma linha de nylon. Essa tentativa me rendeu vários dentes em cacos na boca.
Farta necessidade de agir e pouca disposição para a luta. Tento de toda maneira deixar a velha esteira de praia —, meu confortável leito, também, a única mobília. Teve uma época que cheguei até a venerá-la de corpo, alma e coração. Simpatizei com a ótima versatilidade e a praticidade. Não fico envergonhado de contar, que: um dia — garboso feito pavão no cio —, desfilei na avenida fazendo fita para a rapaziada, com o utensílio exalando a axila mal lavada. Igual um gringo a caminho da praia. Etapa avançada do delírio que só a miséria absoluta nos ensina.
Sem coragem, impelido pela carência, deixo cair na cabeça a água fria, que mantenho armazenada no velho tambor de óleo diesel bem corroído pelo tempo. Antes a minha guerra com a vida, começava sem o banho. Sem o vasilhame, esperava o silêncio da madrugada, para engatar a borracha na rede de água. Ainda bem que a tubulação passa saliente diante do barraco. Engrossa o filão do esgoto que corre a céu aberto para o eitão da favela. Meu banho matinal é breve, resumindo a uma certa quantidade de água. Não há sabão. Faço questão de manter esse ritual para não perder o costume. Acredito na tão sonhada volta por cima. A água rola pelo corpo com total desprezo. Quase não conseguindo vencer a crosta ensebada de poeira e muito suor.
Antes a minha estada, nesse barraco, seria temporária. Só até as coisas melhorarem. Grilei o terreno ao lado dos sem-teto. Pretendia permanecer ali só até arranjar outro emprego. Mas, a minha humilde versatilidade evaporou assim que a modernização informática aportou na indústria. A fábrica de sapatos, onde dediquei onze anos de vida operária, chegou ao fim. Restou somente a rica facilidade em costurar couro e aplicar palmilha. Tudo piorou. Perdi o pouco que tinha tentando fazer algo que pudesse trazer em cabresto curto essa tal dignidade — ou pelo menos o sagrado feijão com arroz de cada dia. Tola ilusão! Sinto-me deserdado do mundo humano, relegado ao mundo cão.
Aquele era o segundo tambor. O primeiro, a ferrugem eliminou. Ganhei do borracheiro, que deve ter surrupiado do dono do posto de gasolina. Tive essa impressão quando o sujeito estipulou um horário específico para que eu pudesse sair rolando o vasilhame estrada a fora, em direção ao barraco. O pior, sem medo de errar: não há motivo para comemoração. Era, também, o segundo Natal. Igual o anterior, torcendo para que culminasse sendo o último. Dois anos se passaram durante essa agonia. Os pés se arrastaram, durante esse período, porta a porta; bar em bar. Tudo estava sacramentado. Nada fácil. Mas, talvez não estivesse preparado para tanto.
Ingenuidade. Confiei demasiadamente na capacidade de reabilitação. Nem adianta chorar pelo leite mal mamado. Sem condições de honrar o aluguel, presenciei as poucas coisas apodrecerem ao relento. Ainda, no corredor do cortiço onde morava. No inicio relutei a deixar o beco. Mas aos poucos tudo foi ficando insuportável. Quando agarrei o cabo da enxada (para capinar o terreno baldio que pretendia apossar) senti a sensação de estar cavando a própria sepultura. Vencendo o medo e extrapolando a barreira da dor, fui ali residir. Desde então tenho um lar, onde me escondo de tudo e de todos. Lado a lado com os insetos. Aliás, segredo de casa só as baratas sabe; embora nada tenho a revelar. Tamanha é a minha transparência que deixa a sociedade arredia. A minha conduta paupérrima agradece sem pestanejar.
Falando nisso, preciso limpar o quintal urgentemente. Novamente o matagal invade pelos buracos da parede. Servindo, os ramos, de esteio para as teias das aranhas. Que agradecem ampliando as redes pegajosas por todo canto. Temeroso, mas sem conseguir controlar o sistema, sinto-me útil e incentivador da rica cadeia alimentar. As aranhas se reproduzem numa velocidade fantástica. Talvez porque a demanda de mosquito é grande. O suficiente para atrair todos os sapos da vizinhança. Que, por sua vez, vem acompanhado pelas cobras. É comum vê-las colocando o focinho peçonhento pelos vãos dos sarrafos. E é o que eu mais temo.
Sê equilibrando no calcanhar, (ou como dizia a mamãe: — No fim do pé!) ainda úmido, deixo correndo o banho. Indo posicionar em cima de uma folha de jornal velho, estendida no chão ao lado do tosco catre. Fica um conjunto de marcas redondas, molhadas, pelo trajeto. O par de chinelos comprado com o soldo do último emprego, me abandonou. Partiu as correias. A poeira o mantém impermeabilizado, em vermelho, no canto. Infinita é a esperança de ressuscitá-lo. Sem dizer que: já tentei solucionar o drama até com os pregos.
Dois longos anos...
Tempo suficiente para entender e aceitar a indecente vida de mendigo que levo. Afinal não sou o único desempregado num universo capitalista e moderno. Graças a minha astúcia, especializei em filar bóias dos outros contando lorotas. Nos dias úteis a tarefa se complica. Meus tormentos aumentam com os feriados e os incômodos fins de semana. Levando-me a pensar que: os domingos e os feriados pertencem a quem tem dinheiro e o que comer em casa. Mesmo assim consigo a façanha de manter em pé o meu corpo esquelético. Perambulando pelas ruas a esmo, sigo sem rumo e sem direção. Exibindo um estado deplorável de total inanição.
Alguns minutos em pé esperando o corpo enxugar e em seguida a volta para o leito. Um privilégio dos justos. Fecho os olhos e vou de encontro ao meu eu interior em busca de paz. Preparando-me para enfrentar mais um dia de jejum. O pior momento vem por volta do meio-dia. A cobertura do barraco, construída com latas e latão, quando aquecida pelo sol escaldante, emana um calor insuportável. A temperatura é tão alta que aquece até a água do tambor. Nessas horas, eu abandono a esteira seguindo a aninhar junto ao pó da terra. Transpirando igual a tampa da panela de pressão, consigo a proeza de superar o calor infernal e ainda ensaiar um cochilo para despistar a maldita fome.
Agoniado ouço o pipocar dos fogos de artifícios, anunciando a santa ceia. A barriga roncando e a aguda saudade dos fartos anos de: feliz Natal e próspero ano novo! — foram mais forte do que a sóbria convicção otimista, juntamente com a árdua determinação de conter as lágrimas.
Resta-me tão somente o orgulho de ostentar, mantendo em pé, ou pelo menos tentando, o meu maior império: um barraco construído com os pedaços de madeira podre, juntada uma a uma pelas ruas da cidade. O que me proporciona o direito de gozar de duas pequenas falcatruas: uma gambiarra de luz e outra de água...
Tem alguém mais feliz do que eu neste Natal?
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