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Textos_Religiosos-->JOVENS ESPÍRITAS (romance mediúnico) -- 03/03/2005 - 05:00 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER













JOVENS ESPÍRITAS
(ROMANCE MEDIÚNICO)





















ÍNDICE


Um passo adiante ............................
1. A vontade de Deus ...........................
2. Teotônio ....................................
3. Ernesto .....................................
4. Wilsinho ....................................
5. Uma noite de cão ............................
6. Intimidação .................................
7. Padre Fulgêncio .............................
8. Vieira ......................................
9. As preocupações de Wilsinho .................
10. Rosinha .....................................
11. O Doutor Rosalvo ............................
12. Os primeiros passos .........................
13. O treino ....................................
14. A mensagem do além ..........................
15. Wilsinho investiga ..........................
16. Teotônio regressa ...........................
17. Planos ......................................
18. Antes da festa ..............................
19. Durante e depois da festa ...................
20. Em família ..................................
21. Em voz baixa ................................
22. A conferência ...............................
23. Conversa particular .........................
24. Na intimidade do casal ......................
25. Rosinha se confessa .........................
26. Geraldo apronta mais uma ....................
27. A vida estabiliza-se ........................
28. O jantar ....................................
29. A roda dos jovens ...........................
30. Conseqüências da fama .......................
31. Vida nova ...................................
32. Paz ameaçada ................................
33. Conversa franca .............................
34. A hora da verdade ...........................
35. A pressão aumenta ...........................
36. Vencendo o medo .............................
37. Noite agitada ...............................
38. A vida se acalma ............................
39. Desfecho ....................................



UM PASSO ADIANTE

Esperávamos por esta oportunidade há algum tempo, tendo a certeza de que representaria um passo adiante no caminho do progresso.
Para isso, preparamo-nos convenientemente, discutimos os temas, rascunhamos os textos e submetemos à aprovação de nosso mentor e amigo, Professor Epaminondas.
A primeira observação que nos fez foi relativa à nomenclatura do grupo, pois desejávamos não estabelecer nenhuma. Disse-nos ele:
— Vocês podem deixar em branco essa parte, todavia vão ter de explicar a razão que os está levando a tomar tal decisão.
Orestes, nosso porta-voz, argumentou:
— Temos lido as obras todas de nossos colegas e consideramos que as denominações que adotaram não representam grande coisa quanto a caracterizar a turma. No máximo, poderíamos batizar-nos de Grupo das Primeiras Letras, com o fito de denunciar de pronto o noviciado psicográfico, todavia tal rótulo poderia ser mal interpretado, exigindo um longo discurso prévio para justificarmo-nos.
Redargüiu o mestre:
— Peçam para que não se mencione no pórtico da obra qualquer nome, porém, não deixem de relatar este nosso diálogo na introdução.
Eis tudo.



1. A VONTADE DE DEUS

— Partilhamos o mesmo espaço, encarnados e espíritos da erraticidade?
— Por vontade de Deus, sim.
— Como explicar, então, a lei da Física que enuncia que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço?
Teotônio insistia junto ao mestre sem muita convicção de que estava sendo honesto para consigo mesmo. Por isso, não recebeu resposta imediata. Ernesto esperou que a expressão fisionômica do discípulo demonstrasse que havia achado resposta à questão.
Como Teotônio permanecesse calado, sem denotar que raciocinava a respeito do tema, Ernesto, finalmente, retrucou:
— Você não acha que a vontade de Deus é imperscrutável?
Formulada a resposta através de pergunta, obrigou-se Teotônio a redargüir:
— Certamente, no entanto, estamos tratando de algo segundo o ponto de vista dos humanos.
— Ponto de vista iluminado pelos conhecimentos espíritas de quase cento e cinqüenta anos, já que Kardec recebeu notícias claríssimas sobre o mundo do outro lado do mistério.
— Por que, professor, o senhor fala em mistério? Não seria o caso de citar os trechos mais significativos das exposições mediúnicas psicografadas na presença do Codificador da Doutrina Espírita?
— Isso encerraria a nossa discussão, porque Kardec oferece um quadro bastante amplo do mundo dos espíritos. Como você está colocando a matéria no mesmo plano da espiritualidade, você deveria aceitar que os espíritos tenham a mesma natureza que os homens na carne, o que constitui uma aberração doutrinária, pois a concepção vigente no movimento espírita, concepção dogmática ou axiomática, é de que a matéria constitui simples agasalho perecível e efêmero para o espírito. Por outro lado, a sua perquirição leva a crer em que, em sendo tudo igual, portanto impenetrável, o espírito habitaria outro espírito, isto se raciocinarmos por absurdo.
Em tom entre irônico e sarcástico, Teotônio concluiu:
— Em sendo a vontade de Deus imperscrutável, quem sabe seja por um ato de criação dele que a lei da impenetrabilidade só se possa formular de maneira cabal pelos espíritos encarnados.
Ernesto entendeu que deveria encerrar a conversa e declarou:
— Dou-me por vencido. Prometo-lhe que vou estudar o seu ponto de vista com muito carinho.
Apertaram-se as mãos e cada qual foi cuidar da própria vida.



2. TEOTÔNIO

Aos dezessete anos de idade, o rapaz era aluno da segunda série do curso médio. Trabalhava de dia como auxiliar de escritório, atendendo nos serviços gerais às solicitações de seus patrões advogados. À noite, ia à escola.
Ernesto era seu professor de Filosofia, dedicando-se principalmente à História das Religiões. Eis como atiçou o interesse do jovem, que, durante determinada aula, expôs as dúvidas quanto à integridade moral dos sacerdotes, afirmando que nenhum havia que se interessasse deveras pela ligação efetiva entre os homens e o Criador.
Não tendo como orientar o aluno de forma particular durante o fechado horário das aulas, Ernesto o convidou a que assistisse às palestras que estava acompanhando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, aos sábados pela manhã. O palestrante, filósofo e catedrático, tratava do tema das concepções de Deus, segundo as sociedades.
Como o horário do curso não ultrapassava as onze horas, teriam tempo para conversar sobre o que quer que fosse do interesse do rapazola. Foi assim que mantiveram o diálogo acima.

Logo que se despediram, Teotônio correu para o ponto do ônibus, pois havia um coletivo prestes a sair. Ficaria no trânsito por, no máximo, trinta minutos, descendo em casa, para um rápido lanche. Não podia comer muito porque, lá pelas três, três e meia, envergaria a camiseta de número onze de sua equipe de futebol. Era o craque da turma.
Naquela tarde, bem disposto, foi festejado por assinalar três gois (gols, como ele dizia, contrariando o professor de Português).
De banho tomado, com a barba rala escanhoada, cheirando a alfazema, vestida a melhor roupa, foi encontrar-se com a namorada, colega de classe, queridíssima amiga desde os primeiros anos escolares, Rosinha.
Assistiram ao lançamento da semana, no cinema do bairro e dividiram uma pizza de mozarela acompanhada de refrigerantes, no humilde restaurante da avenida principal, modesta refeição porque a mais não podiam as posses de ambos.
Às onze horas, entregou a mocinha à mãe, combinando com elas que as acompanharia à missa das nove, na manhã seguinte.



3. ERNESTO

Ernesto lecionava há dez anos. Formado, achou as provas do concurso público bastante fáceis, tendo sido aprovado entre os primeiros. Por isso, escolheu uma vaga na Capital do Estado, não precisando deslocar-se para o Interior.
Assegurada a estabilidade necessária para uma vida a dois, casou-se com Filomena, aluna e admiradora. Logo o casal agasalhava dois pequerruchos, gêmeos idênticos, que chegaram para duplicar as despesas. Filomena abandonou os estudos e Ernesto buscou ampliar a carga horária de trabalho, oferecendo seus préstimos a uma empresa educacional que mantinha vários cursos preparatórios para os exames de habilitação ao Ensino Superior.
Tendo-se entrosado de imediato no espírito mercantilista da instituição particular, pôde restringir ao mínimo o número de aulas na escola em que era professor efetivo. Com isso, os ganhos aumentaram substancialmente, a ponto de, no prazo de cinco anos, conseguir adquirir um apartamento de bom tamanho, em bairro de classe média.

Surpreendemos Ernesto num momento de muita felicidade, quando, levado pela esposa, passou a participar das atividades de finais de semana do Centro Espírita “Amor Perfeito de Jesus”, onde servia como orientador de jovens, enquanto os filhos se entregavam aos primeiros estudos da Doutrina Espírita.
O curso extraordinário na Faculdade de Filosofia, aos sábados, era ministrado por um dirigente do centro, pessoa de muito conhecimento e títulos. Esse foi um dos motivos que o fez levar consigo o aluno rebelde da segunda série, com o objetivo de vê-lo interessar-se por temas de maior relevância, com tratamento e aparato acadêmico. Seria o primeiro passo para atraí-lo para as concepções kardequianas.
Na tarde daquele sábado, esteve entretido com os filhos, a quem levou, pela primeira vez, a ver uma partida de futebol travada entre os times de coração de cada um deles. Deu sorte, porque o resultado apontou um empate de dois gois (gols, como eles diziam, sem que a professora primária os corrigisse).
À noite, levou a família a uma cantina, com música ao vivo, divertindo-se com as brincadeiras do grupo de instrumentistas, instante de reunião que fazia questão de ver repetido a cada final de semana.
Não chegaram tarde de volta, porque precisariam acordar cedo no domingo: tinham trabalho no Centro Espírita.



4. WILSINHO

Em casa, Teotônio era esperado pelo irmão mais novo. Os pais assistiam à televisão na sala.
Pegando-o pelo braço, Wilsinho o conduziu até o dormitório de ambos.
— Vamos conversar em voz baixa, que eu não quero que o pai saiba o que está acontecendo.
— Você aprontou alguma?
— Eu não aprontei nada, mas o Renato, sim.
— O irmão da Rosinha?
— E quem mais?
— Que foi que ele fez?
— Está vendendo pó na escola. E está se drogando também.
— Você tem certeza?
— Ele me ofereceu. Aí eu vi que ele estava tachado.
— Faz tempo isso?
— Isso aconteceu ontem. Eu só não contei pra você porque acordei tarde.
— Por que você não quer que o pai fique sabendo?
— Ele vai querer que eu não me encontre mais com o meu colega preferido.
— Mas ele é policial. Deve saber o que fazer no caso. O melhor que a gente faz é ir contar tudo pra ele.
— Eu pensei que você fosse prevenir a mãe dele.
— Dona Flávia é uma pobre viúva. A Rosinha vive dizendo que ela não consegue nada com o filho. Acho que ela já sabe ou está desconfiada.
— A Rosinha não levantou suspeita?
— Ela adora o irmão. Se ficar sabendo de alguma coisa, vai tentar esconder de mim e do nosso pai. Onde o Renato está agora? Em casa ele não estava.
— Ele vai aos bailes funks.
— Mas ele só tem quatorze anos.
— Lá entra até criança de oito, tudo viciado.
— Como você sabe?
— Todo mundo sabe.
— Eu não sabia.
— Será?
— Nunca vi nenhum colega com droga, nem fumando maconha.
— Você deve estar cego.
— É que eu passo as horas livres lendo ou estudando.
— Jogando bola, namorando, trabalhando, indo à escola...
— É isso aí.
— Pois eu tenho três anos menos e já estou por dentro de tudo.
— Vamos falar com o pai.
— Hoje, não. Amanhã a gente fala.
— Amanhã, então.



5. UMA NOITE DE CÃO

Passava um pouco da meia-noite, quando soou, estridente, a campainha da casa de Teotônio. Todos correram para atender aos insistentes toques.
Teotônio foi quem chegou primeiro. Pela fresta da janela, viu que era Rosinha.
— Que foi, querida? Que aconteceu?
— Mataram meu irmão.
O rapaz amparou-a e a levou para dentro.
Dona Vilma, que entrava na sala, ouviu os soluços e logo percebeu que houvera uma tragédia.
Também Wilsinho apareceu, com grandes olhos para o sofrimento da mocinha.
Teotônio explicou:
— Mataram o Renato.
Enquanto Dona Vilma saía para buscar água com açúcar, vinha o sargento já informado sobre o caso.
— Você sabe como foi?
— A vizinha disse que há quatro ou cinco corpos.
— Onde foi?
— Naquele barzinho na entrada da Favela do Corisco.
Sem dizer mais nada, o policial fez um sinal para que esperassem e desapareceu no interior da casa.
Rosinha não parava de tremer, soluçando muito forte nos braços do namorado. A água com açúcar pareceu não ter efeito nenhum.
Teotônio fez um sinal para o irmão, dando a entender que fosse contar ao pai o que sabia sobre o amigo.
Dez minutos depois, Arnaldo, o pai, definiu o que iria fazer:
— A menina me passa as chaves de casa. Vou esperar a polícia para ajudar a vasculhar os pertences do seu irmão. Se eu não for, eles vão pôr tudo abaixo. Enquanto isso, vocês ficam aqui. Não ponham o nariz fora da porta, especialmente você aí. — Apontava para o caçula.
Quando o policial saiu, Rosinha passou por uma crise de nervos, bradando em alta voz contra a injustiça de Deus, que lhe levara o jovenzinho, a quem amava intensamente, companheiro de muitas horas alegres e também das tristes, quando morrera o pai.
Dona Vilma foi atrás de vinagre para passar nas fontes e nos pulsos, remédio que se lembrava de ver sua mãe aplicar .
Teotônio não sabia o que dizer. Apenas repetia algumas noções que aprendera com Ernesto:
— Rosinha, fique calma. Isso vai fazer mal a você. Chega o que já aconteceu de ruim. Fique calma. Pense que a vida continua pra todos nós. Seu irmão vai permanecer conosco em espírito. Você vai ver como ele vai mandar logo uma mensagem pra dizer que não está mal.
Queria avançar nesse sentido, mas seus conhecimentos não passavam daí. De qualquer modo, segurava as mãos da moça ou enxugava-lhes as lágrimas.
Várias vezes precisou impedir que ela saísse, desorientada. Dona Vilma acendeu uma vela junto à imagem de Santo Antônio, no nicho da parede, ajoelhando-se e rezando um pai-nosso em voz alta. Juntou algumas palavras de conforto, afiançando que o Pai é dono do destino dos homens. Depois, assenhoreou-se da cabeça da infeliz, que deitara no sofá, coberta com uma manta de lã, passando a acariciar-lhe os cabelos, sussurrando-lhe ao ouvido que ela era forte e que seria capaz de vencer o sofrimento. Falou de Jesus e de Maria. Colocou a mãe aos pés da cruz e repetiu todas as palavras que se lembrava de haver ouvido do falecido Padre Timóteo.
Por volta das quatro horas, Arnaldo regressou, trazido pela viatura policial.
— Sua mãe quer que você vá pra casa.
Rosinha, que se tranqüilizara um pouco, agarrou-se ao namorado, como a arrastá-lo consigo.
— Vou pegar uma blusa e já vamos.
Não precisou: Dona Vilma foi buscá-la.
O pai fez sinal para os colegas lá fora, para que esperassem só mais um pouco.
Em breve, a filha caía em prantos nos braços da mãe. Teotônio, desolado, testemunhou a dor moral de quem perde um filho querido. Intimado tacitamente pela moça, que não se desgarrava de sua mão, varou o restante das horas que precediam ao alvorecer. Foi impossível dormir. Tomou algumas xícaras de café feitos pela tia ou pela prima de Rosinha, sem deixar de refletir sobre a tragédia que se abatera naquele lar. Insinuou a idéia de que a falta do pai é que causara tudo aquilo, mas deixou o desenvolvimento do tema para quando se encontrasse com Ernesto.



6. INTIMIDAÇÃO

Uma semana depois do trágico acontecimento, eis que Teotônio se depara com algo completamente inesperado.
Voltava ele da casa da namorada, pelas onze e pouco da noite, quando foi surpreendido por um grupo de três encapuzados, que o cercaram, fazendo luzir no escuro uma arma.
Um deles foi dizendo, sem alarde:
— Teo, você tem de parar de ficar perguntando por aí quem foi que apagou o seu cunhado.
Pareceu ao rapaz que podia reconhecer aquela voz, mas não disse nada, prudentemente, para não provocar os outros.
O mesmo de antes continuou:
— Veja que a gente podia nem falar nada. Estamos avisando. Alguma dúvida?
Teotônio mal balbuciou:
— Dúvida nenhuma.
— Vê lá! Uma escorregadela e seu irmão vai para o mesmo lugar do outro.
Teotônio limitou-se a balançar a cabeça demonstrando que havia entendido o recado.
Antes de se afastarem, um deles encostou a ponta do revólver na testa do moço, empurrando-o com força, deixando-lhe um pequeno corte e uma dor aguda.
Em casa, não houve como não pôr os familiares a par de tudo.
Arnaldo ouviu o relato calado, perguntando finalmente:
— Eles estão ameaçando o policial. Você não deve ter tido oportunidade de investigar. Eu, sim. Se fosse você o alvo deles, já teria sido executado. Onde foi que você falou a respeito do crime?
— Eu acho que eles me ouviram falando na escola. Só na quinta e na sexta é que Rosinha e eu fomos às aulas. Todo o mundo queria saber o que tinha acontecido. Rosinha ficou quieta, como a mãe recomendou, mas eu descrevi a chacina e a minha desconfiança de que se tratava de guerra entre quadrilhas de traficantes de drogas.
— Quem estava lá?
— Foi no pátio. Nós estávamos cercados pelos meus colegas de classe e por muitos outros alunos.
— Você disse que eles chamaram você de Teo. É assim que o pessoal chama você na escola?
— Em todo lugar. Já me chamaram até de Teodoro, porque Teotônio é mais difícil de imaginar.
— Onde mais você falou a respeito da chacina?
— Lá no escritório, os patrões se interessaram. Eu disse a eles tudo o que sabia. Mas não acho que ali podia existir ninguém...
— Onde mais?
— Hoje eu conversei com o Professor Ernesto, lá na Faculdade. Mas não havia mais ninguém com a gente.
Arnaldo ficou pensativo por uns momentos, enquanto Wilsinho esclarecia:
— Eu também conversei com os meus amigos. Eles eram da turma do Renato, mas ninguém fazia a mesma coisa que ele.
Teotônio bem que desejou interrogar melhor o irmão, mas deixou que o pai fizesse o interrogatório. Ao invés disso, Arnaldo apenas recomendou:
— De hoje em diante, nenhuma palavra mais a respeito. Se alguém puxar o assunto, digam que não estão sabendo de nada. Podem dizer que seu pai já deu tudo por encerrado e que a polícia não encontrou nenhuma pista. Isso só se insistirem. Falem como quem não está interessado em desvendar o crime. Puxem outros assuntos. Por exemplo, falem do caso do filho que matou os pais ou daquele seqüestro do ricaço que foi encontrado morto. Também vocês não podem andar tão tarde da noite por aí. Nem um só quarteirão. Se as ruas estiverem desertas, telefonem que eu vou buscar.
Arnaldo não era de se estender tanto sobre qualquer assunto, por isso as recomendações pareceram aos filhos que brotavam do fundo do coração. O sargento estava acuado, temendo pela vida dos dois.
Teotônio garantiu:
— Pode ter a certeza de que esta marca na testa vai desaparecer e eu vou continuar com a impressão de que estará sempre aqui. Pode ser que estivessem mandando um aviso para o senhor, mas foi o carteiro que correu do cachorro.
Se a intenção foi a de amenizar os temores dos familiares, a repercussão não correspondeu ao ato, porque ninguém achou graça alguma.



7. PADRE FULGÊNCIO

Na missa das sete do domingo, no banco da frente da Igreja de Santo Antônio, Rosinha e Teotônio acompanhavam Dona Flávia, mais os tios e a prima da moça.
Do púlpito, Padre Fulgêncio explicava:
— Esta missa é a missa de ação de graças pelo sétimo dia do falecimento do jovem Renato, assassinado cruelmente, aos quatorze anos de idade. Rogo a Deus que o tenha em seu reino de glória, essa alma juvenil, ainda imperfeita mas balsamizada pelo sofrimento. Não há como pensarmos em que criatura tão nova estivesse estigmatizada por algum pecado mortal, muito embora trabalhasse no vergonhoso tráfico de drogas, ele mesmo um viciado, conforme se apurou no exame cadavérico. Sabemos que o coração de sua mãe aqui presente está sendo oprimido por estas lembranças ruins. Mas também temos consciência de que os pais, hoje em dia, estão meio perdidos pela grande extensão da rede da maldade que nos afeta a todos. Gostaríamos de lembrar aqui os exemplos dos santos, repetindo os feitos de suas vidas de sacrifícios em prol da humanidade. Gostaríamos de repetir as histórias gloriosas dos mártires e de seu acolhimento no seio de Deus. Gostaríamos de falar sobre a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo, mandando perdoar e amar os inimigos. Todavia, todos nós estamos sob a pressão funesta da mídia, que não tem como deixar de registrar as notícias dos horrores que ameaçam todos os membros da sociedade, sejam ricos, sejam pobres, sejam famosos, sejam obscuros, sejam pessoas de bem, sejam bandidos. Valha-nos o nosso padroeiro Santo Antônio, que nos proteja, intervindo por nós junto à Mãe Santíssima, Maria, Nossa Senhora.
Teotônio prendia na sua a mão de Rosinha, sentindo que a namorada estremecia, ainda que sob o efeito calmante de alguns comprimidos.
O sermão ainda duraria alguns minutos, levando Fulgêncio a missa ao término sem demonstrar nenhuma pressa. No momento da comunhão, todo o banco da frente saiu para a frente do altar, inclusive Teotônio, que se recusara a entrar no confessionário.
Dona Flávia, assim que a cerimônia teve fim, dirigiu-se com a família para a sacristia, desejosa de agradecer ao padre toda a emoção que transmitira aos fiéis. Em momento nenhum, a pobre viúva o acusou de delação do filho, julgando que as palavras do sacerdote mais não fizeram do que alertar o povo ali presente.
Depois das palavras de encorajamento que naturalmente o padre não deixaria de pronunciar, Fulgêncio acrescentou:
— Dona Flávia, é justo que a senhora queira saber se seu filho está no Céu, no Inferno ou no Purgatório. Se ele foi um menino bom, apesar de tudo, se não brigava em casa, se era amoroso para com todos, garanto que está hospedado em alguma casa de tratamento de viciados, lá na esfera espiritual. Se a senhora tem dúvida a respeito do paradeiro dele, porque era rebelde...
Rosinha, que não estava gostando do rumo da peroração, criou coragem e interrompeu o sacerdote:
— Meu irmão era meu melhor amigo. Ele me defendia sempre. Quando nosso pai morreu, seu sentimento de perda foi ainda maior que o meu. Ele era uma pessoa muito boa.
Todos se julgaram obrigados a confirmar, de sorte que, quando Fulgêncio conseguiu falar, deu somente um conselho inesperado:
— Estejam atentos para as obras de caridade e benevolência em prol dos semelhantes. Quem sabe, logo vocês todos possam comprovar que o menino tinha poderes extraordinários, tanto que poderá oferecer alguns milagres às pessoas que orarem pela intervenção dele, em casos de doença e de mau-olhado. Recomendo, para todos os efeitos morais, que Dona Flávia procure um centro espírita sério, desses que o povo chama de centro de mesa branca, e peça aos dirigentes da casa orientação quanto a consultar os mentores, para relato da real situação do petiz. Vocês vão estranhar a minha sugestão, mas a verdade é que a Igreja está pondo muitas restrições quanto a que Deus envie seus filhos para sofrerem pela eternidade. É mais lógico entender que a perfeição não esteve ao alcance do jovenzinho e que, por isso, não deva ele estar no gozo eterno do paraíso celeste. Lá no centro, estas minhas considerações serão esmiuçadas por estudiosos da doutrina espírita e vocês terão, quem sabe, notícias do Renato.
Meio zonzos com as emoções da manhã, os familiares reuniram-se, no passeio público, para deliberar a respeito do que lhes dissera a autoridade religiosa.
Teotônio, atrevidamente, foi quem indicou o caminho:
— Posso levá-los ao Centro Espírita “Amor Perfeito de Jesus”, onde trabalha o nosso professor de Filosofia. Ele deve estar lá agora.
Foi assim que a pequena caravana seguiu a pé, percorrendo os doze quarteirões que separavam a igreja do centro, na direção da entrada da Favela do Corisco.



8. VIEIRA

Feitas as apresentações, Ernesto declarou que não poderia atender o grupo de imediato. Para que ninguém ficasse frustrado, chamou pelo celular o presidente da entidade, que morava próximo, recomendando-lhe que viesse o mais rápido possível.
Enquanto o convocado não aparecia, ficaram todos assistindo à atividade que Ernesto presidia no salão principal. Dava ele explicações aos jovens da Mocidade Espírita, rapazes e moças, pequena roda que discutia a respeito das transformações por que passam os seres vivos durante sua estadia na carne.
Dizia um:
— O que me impressionou na minha adolescência foi o fato de eu ter crescido mais de quinze centímetros, em três anos. Se eu pensar como era em criança, vou chegar à conclusão de que sou outra pessoa.
Dizia outro:
— A primeira vez que fiz a barba não tinha pêlo nenhum. Agora que estou barbudo, gostaria de não ter mais de fazer a barba. Pena que não está na moda.
Dizia uma jovenzinha:
— Pois eu gostei muito de ver crescerem os meus seios. Não que sejam grandes, mas eu acho que vou ser uma boa ama-de-leite para os meus filhos.
Rosinha sussurrou aos ouvidos do namorado:
— O que essas coisas têm a ver com a doutrina espírita?
Teotônio respondeu-lhe junto ao ouvido:
— Eu não sei. Mas o Professor Ernesto irá tirar as suas conclusões inteligentes de tudo isso.
Se tirou, não ficaram sabendo, porque, naquele momento, chegava Vieira, o presidente.
— Vocês são as pessoas que o Padre Fulgêncio mandou para nós? Sejam bem-vindos. André Vieira, ao seu dispor.
Falava e apertava a mão de cada um, ouvindo os nomes com muita atenção:
— Você é o aluno de quem o Ernesto tanto fala. Parabéns! Você é a namoradinha dele, colega de classe. A senhora é a mãe do Renato. Meus mais sinceros pêsames. O senhor é o tio do menino, a senhora, a tia e você, a prima.
Incomodado com a observação do orientador, Teotônio fez questão de esclarecer:
— O Padre Fulgêncio falou em centro espírita. Fui eu quem indicou este daqui.
— Muito bem, mas saibam que não são os primeiros. Venham comigo para uma sala desocupada, para conversarmos mais à vontade.
Logo estavam acomodando-se em torno de uma mesa coberta por uma vistosa toalha vermelha.
Rosinha ia observar algo ao ouvido de Teotônio, mas este impediu-a de falar, mostrando que entendera a idéia dela, pegando a ponta da toalha disfarçadamente.
Vieira assumiu o comando da entrevista:
— Suponho que vocês estejam interessados em ouvir que o rapaz está bem, que logo mandará uma mensagem para confortar a mãe, a irmã, os tios e a prima.
Dona Flávia meneou a cabeça afirmativamente. Não chorava mas tinha o lenço na mão.
Vieira prosseguiu:
— O que me estranha é que vocês não vieram antes, quando faleceu o pai do garoto.
Fez-se um instante de expectativa, pela explicação de como soubera o homem o que ocorrera alguns anos antes. Ele logo esclareceu:
— Nós discutimos, durante a semana, sobre as causas e conseqüências da chacina ocorrida aqui perto. De todos os mortos, foi sobre o Renato que mais conversamos, já que é muito difícil entender por que iriam eliminar um pobre menino. Um dos diretores sabia que ele não tinha pai...
Dona Flávia observou:
— Haroldo.
— Ele mesmo. A senhora podia tê-lo procurado...
— Nem me passou pela cabeça.
— É compreensível. Mas vamos ao que interessa. Das nossas discussões, extraímos uma conclusão que pareceu clara a todos: o menino deve estar recebendo total assistência da parte do pai, a quem o pimpolho muito queria. Não é verdade que se amavam muito?
Rosinha fez questão de acrescentar:
— O pai era o herói do meu irmão. Meu também. Não havia quem não gostasse dele.
Vieira fez questão de aproveitar a deixa para coroar as palavras de conforto:
— Pois a Doutrina Espírita afirma, com Jesus, que as pessoas que se amam se juntam pela eternidade. Mesmo que os ferimentos no corpo espiritual sejam graves, ainda assim, por amor, o pai sempre haverá de conseguir encaminhar o filho para uma casa de restabelecimento. Esses estabelecimentos existem no campo etéreo, conforme toda a literatura que nos transmitiram muitos espíritos superiores. Eu teria muito mais para lhes dizer, porém, é necessário que vocês tenham conhecimento das teses que esposamos e que se encontram nos livros de Allan Kardec, o codificador do Espiritismo. Quanto a ouvir dos amigos da espiritualidade, dos protetores e guias, dos anjos guardiães, que Renato está bem, é secundário, porque jamais nos diriam o contrário. Quem faria questão de perturbar as nossas almas seriam irmãos sofredores, sem mérito algum.
Teotônio fez questão de intervir:
— Quer dizer que ele pode estar mal e nós não vamos ficar sabendo?
Disse e se arrependeu, entendendo que os demais estavam deixando-se levar pelas emoções, quando ele levantou um problema meramente racional. De qualquer modo, Vieira não se deixou apertar:
— Vamos pensar da seguinte forma: o que é que podemos fazer por ele? Orar muito, que é o que o Padre Fulgêncio deve ter-lhes dito. Satisfazer a nossa curiosidade é apenas um conforto para o nosso egoísmo, pois sempre queremos estar dominando todos os sentimentos e pensamentos. No entanto, a vastidão do universo, acrescida das infinitas esferas da espiritualidade, nos faz crer em que devamos admitir que Deus escreve direito por linhas tortas, se me permitirem o velho anexim. Isto equivale a dizer que todos passamos por inúmeras provações para aprendermos a agir em consonância com as leis de Deus, muito especialmente aquelas resumidas por Jesus no “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.” Mas eu não vou fechar as portas da mediunidade responsável. O nosso grande Chico Xavier recebeu inumeráveis comunicações de filhos mortos nos primeiros vinte anos de vida, todas para tranqüilizarem as famílias inconformadas. Essas mesmas mensagens podem ser lidas por qualquer pai ou mãe, pois os temas que tratam devem servir a todas as pessoas na mesma situação. De qualquer forma, vou rogar para que alguém nos traga alguma informação do plano superior, nas próximas reuniões mediúnicas. Caso obtenhamos qualquer notícia, eu prometo que vou transmiti-las a vocês pessoalmente.
Ainda discutiriam mais alguns aspectos doutrinários, enquanto visitavam o prédio, admirando-se de que a cozinha estava em plena atividade, já que se preparava um almoço para diversas famílias de assistidos provindas da favela ali perto.
Dona Flávia quis ficar para ajudar, mas Rosinha pediu para que fossem embora, que não estavam vestidos de acordo com a alegria reinante. Ficasse para outra oportunidade.



9. AS PREOCUPAÇÕES DE WILSINHO

Nos três meses seguintes, Wilsinho buscou conhecer quem é que havia substituído Renato no tráfico junto à escola. Sabia ser extremamente perigosa tal investigação, contudo, era o que lhe parecia ser o mais justo em relação ao colega assassinado.
“Se eu consigo descobrir quem está vendendo, com certeza posso ficar sabendo quem praticou a chacina.”
Pensava como investigador da polícia, profissão que pretendia seguir, com certeza por influência paterna.
Ao cabo desse tempo, ofereceram-lhe a droga. Era uma menina de seus dez anos de idade, aluna da escola, filha de funcionária da limpeza.
Wilsinho surpreendeu-se. Não esperava jamais que as coisas estivessem naquele pé. Hesitou em contar ao pai. Imaginou que o melhor seria denunciar, ligando para o serviço próprio oferecido pela polícia, que garantia sigilo absoluto para o informante. Nesse caso, seria preferível avisar o pai, que lhe daria completa proteção. Também se viu perante o diretor da escola, apontando para a filha e para a mãe. Não lhe pareceu ser o caminho ideal, porque acabaria sendo arrolado como testemunha. Não era nada seguro. Finalmente, tendo resolvido não contar tudo quanto fizera para que lhe chegassem a oferecer a maconha, achou que poderia trocar algumas idéias com o irmão.
“Quem sabe o Teo me ofereça uma solução.”
Num sábado, esperou que o irmão voltasse da faculdade para entabular conversação:
— Você vai jogar hoje?
— Estou precisando ir, já que falhei com o time várias vezes. Assim, vou perder o lugar de titular. Eles me mandaram avisar que hoje ia um olheiro profissional.
— Eu posso ir com você?
— Você não tem idade...
— Eu só quero assistir.
— Está bem. A gente conversa no caminho.
De fato, Teotônio não havia acreditado no interesse do irmão pela partida. Contudo, a esperteza da intuição não impressionou o menor.
Às duas horas, saíram de casa. Iriam num ônibus fretado, porque o time adversário possuía um belo campo, com algumas arquibancadas.
Ocuparam os assentos da frente, logo atrás do motorista. Os outros ficaram batucando e cantando no fundo do veículo. Poderiam conversar sem serem ouvidos.
Rapidamente, Wilsinho pôs Teotônio a par do que sabia, perguntando-lhe o que deveria fazer.
— Eu acho que você já fez: contou pra mim. Daqui pra frente, eu tomo as decisões cabíveis.
— Você acha que a servente está metida no caso da chacina?
— Eu não acho nada. Até prova em contrário, ela é inocente. Quem me diz que ela sabe que a filha está vendendo?
— Eu vi as duas mexendo com dinheiro escondido.
— Você teve essa impressão. Não se pode acusar uma pessoa por fornecer dinheiro para a filha.
— Foi o contrário.
— Nem acusar porque a filha devolveu o troco do lanche.
— Você está querendo me embrulhar.
— Estou demonstrando que elas podem ter boas desculpas. Não há nenhuma prova material. São apenas conjeturas suas.
— Mas ela me perguntou se eu não queria um baseado. Disse que custava só um real.
— E se o tal cigarro não fosse o que estava sendo prometido? Vamos supor que alguém quisesse testar você. Aí lhe daria um cigarro de tabaco para experimentar. Se você reclamasse, dependendo do seu jeito, ela diria uma coisa ou outra.
— Mas a menina só tem dez anos.
— Os que lhe deram a responsabilidade devem tê-la treinado bem. Essa gente é mais esperta do que nós pensamos. Eles viram que o Renato não era um bom traficante, porque usava a droga. Essa aí não deve estar viciada.
— Então, por que se meteria no negócio?
— Pode ser pelo dinheiro. Pode ter sido ameaçada. Há muitos meios de atrair as crianças. Talvez até seja para ela ter importância maior do que a mãe faxineira. Pode gostar da sensação da adrenalina pelo perigo que corre. Quem sabe lá por que razão as pessoas fazem as coisas erradas!...
A conversa se encerrou ali. O ônibus chegava ao seu destino e todo o grupo já se encaminhara para a frente do coletivo.
Teotônio ainda teve tempo de acrescentar:
— Vou pensar num meio de ajudar você.



10. ROSINHA

Teotônio estava cheio de novidades. Havia sido selecionado para treinar em um clube de futebol profissional. Se tudo desse certo, estaria em breve iniciando uma carreira promissora. Aliás, Wilsinho também recebeu convite para testar as habilidades futebolísticas no setor infantil. Desenvolvido para a idade, tinha boa disposição para enfrentar os atacantes contrários no meio da área, como zagueiro central.
Quando Teotônio desejou contar para a namorada o que lhe havia acontecido naquela tarde, esta logo se manifestou:
— Finalmente, cheguei a algumas conclusões a respeito das questões colocadas pelo Ernesto. Preste atenção...
— Vou ouvir e comparar com o que ele me disse hoje cedo.
Rosinha não se importou com a provocação e prosseguiu:
— Ernesto estava querendo que seus alunos admitissem que todos os seres vivos mudam durante a vida, para extrair daí a tese da evolução das espécies, conforme ele mesmo explicou em aula a respeito do materialismo darwinista. Ora, Ernesto estava num centro espírita, onde o espiritualismo prevalece. Logo, estava buscando ensinar que os espíritos também evoluem ou progridem. Mas eu vejo uma diferença: os seres vivos vão transformando-se no sentido do amadurecimento biológico, até chegarem ao apogeu de suas constituições físicas e mentais. Este período dura mais para uns e menos para outros. A partir de certa idade, começa a degeneração física. Você sabe muito bem que os jogadores de futebol dificilmente ultrapassam jogando os quarenta anos de idade.
Teotônio tentou pegar o bonde andando:
— Era sobre o futebol que eu queria...
— Eu já lhe pedi para prestar atenção. Se os indivíduos se degradam e morrem, as espécies tendem a aperfeiçoar seus organismos, como o homem se aparelhou melhor a partir dos primatas, desenvolvendo o corpo e a inteligência. Eu mesma tenho notado que estou amadurecendo bastante, desde que meu pai morreu e agora o Renato. O sofrimento faz a gente pensar muito e a idéia da morte se associa, na nossa cabeça, à frustração de descobrir que, perante ela, somos impotentes.
Rosinha parou para tomar fôlego, no entanto, o namorado, em êxtase de admiração, nem pensou em atalhar aquela magnífica exposição.
— Eu ia dizendo que as coisas materiais tendem a se dissolver, o que demonstra que o equilíbrio que as mantém unidas é bastante frágil. Se fosse mais rigoroso, seria fácil de recompor os tecidos lesionados e a medicina iria cumprir a sua tarefa de salvar vidas com muito maior eficácia. Se eu estender o meu pensamento para todo o universo tangível, poderei concluir que a instabilidade é ainda muito maior do que neste momento, nesta partícula chamada planeta Terra. Sabe-se que haverá um tempo em que não mais haverá condições propícias para a vida e a humanidade encerrará seu ciclo, como tem acontecido com espécies que vão extinguindo-se durante o transcurso da história que o ser humano foi capaz de restabelecer.
Nova pausa e novo silêncio.
— Agora é que vou expor o núcleo das minhas conclusões.
— Você está surpreendendo-me.
— Não vou admitir essa gozação. Você sabe que venho preparando o discurso há algumas semanas. Pois bem, como a destruição do planeta foi datada pelos cientistas para daqui a milhões de anos, muito mais do que a existência da vida desde o início, é lógico esperar que os espíritos todos já tenham evoluído para esferas mais adiantadas, não sobrando ninguém para lamentar o desperdício deste lar maravilhoso, cuja natureza nos agasalha de forma tão perfeita.
Teotônio arriscou:
— Posso dizer o que ouvi do Ernesto?
— Faço questão.
— Ele disse que o objetivo da aula era demonstrar aos alunos que eles mais não faziam do que seguir a ordem natural das coisas, ao perceberem as mudanças em si mesmos. Insistiu comigo que se trata de um ponto muito importante, porque os jovens têm a impressão de que todo o seu poder físico será resguardado até o final de seus dias, ao contrário do que deveriam observar nos adultos.
— Só isso?
— Não. Essa era a intenção imediata. A mediata era que todos refletissem muito mais, desenvolvendo a tese da evolução dos espíritos, no sentido do aperfeiçoamento completo, conforme o entendimento que se pode fazer da pessoa de Jesus. Com o perecimento das pessoas, ele adentraria no aspecto da doutrina relativo às reencarnações, quando, em corpos cada vez mais ajustados ao meio ambiente, através da melhoria dos recursos sensórios e da expansão da inteligência, os habitantes destes círculos em torno do orbe terrestre iriam criar condições de serem encaminhados para mundos mais adiantados. Agora, antes que você teça qualquer consideração a respeito, devo revelar que fui convidado para participar dos treinamentos de um clube profissional.
— Que clube?
— O olheiro ainda não me contou. Ele me passou um contrato para ser meu agente, que eu vou pedir para meu pai assinar, não sem antes ouvir a opinião dos advogados do escritório.
Rosinha louvou a prudência do amigo e lhe recomendou que tivesse cuidado com a escola, pois poderia perder a melhor oportunidade para sua formação intelectual, concluindo:
— O futebol poderá dar bastante dinheiro, porém, pode atrapalhar o desenvolvimento espiritual.
Teotônio tentou uma brincadeira, mas foi muito mal recebido. Observou ele:
— Com esse dinheiro, vou poder comprar todos os diplomas.
Naquela noite, ficariam namorando no portão da casa, até Rosinha ser chamada pela mãe para entrar. Vinte minutos depois, Arnaldo, chamado pelo filho, foi buscá-lo.



11. O DOUTOR ROSALVO

— Quer dizer que você é um craque da bola? — perguntou ao Teotônio o Doutor Rosalvo, chefe do escritório de advocacia em que o rapaz trabalhava.
— O pessoal diz que sim.
— E o seu sonho de estudar Direito, como é que fica?
— Não pretendo parar os estudos.
— Não sei não. Os treinos são quase diários. Pelo menos você terá de deixar o emprego.
Teotônio não se atrapalhou:
— Eu gostaria de passar pela fase de testes. Se me der bem, com certeza vou ganhar mais lá do que aqui.
— Agora você gostaria que eu dissesse que dobro o seu salário.
— Só vou embora se ganhar pelo menos dez vezes mais.
— É assim que se fala, garoto. Mas deixe-me estudar o contrato.
Enquanto o advogado lia o documento, Teotônio entreteve-se a contar aos dois colegas que estava com um pé fora dali. Ouviu alguns queixumes da solidariedade que lhe emprestavam e muitos incentivos, para iniciar carreira bem mais promissora.
— Vamos ver. Vamos ver. — Respondeu cheio de si.
Da porta do escritório, o patrão fez sinal para que ele se aproximasse.
— Sente-se um pouco.
Ao mesmo tempo, Rosalvo se punha esparramado em sua poltrona, bem diferente do aprumo com que recebia os clientes.
— Não notei nada de estranho nos dizeres, a não ser que você terá de passar a ele dez por cento de tudo quanto ganhar jogando futebol, durante os próximos cinco anos. Vou mandar imprimir outro contrato, passando o valor para dois por cento, no prazo de dois anos. Se ele aceitar, tudo bem, caso contrário, eu mesmo providencio um período de testes no clube em que sou tesoureiro. A única desvantagem é que eu só posso influenciar junto a um time e ele vai poder levá-lo a vários.
Teotônio não viu muita vantagem na proposta do patrão, mesmo porque o clube para o qual se dedicava havia caído para a segunda divisão. Arriscou um palpite:
— Doutor, por que o senhor não liga para esse número aí e fala diretamente com o empresário? Talvez ele já possa dar-lhe uma resposta cabal.
Fazendo um gesto que havia aprovado a sugestão, imediatamente o advogado discou o número. Assim que atenderam, foi explicando:
— Meu nome é Doutor Rosalvo. Meu cliente trouxe-me um contrato seu que estou considerando abusivo. Se for alterado para, vamos dizer, dois por cento, nos próximos dois anos, o senhor, o que me diz?
Teotônio ficou atento para as transformações fisionômicas através das quais Rosalvo pretendia passar-lhe a resposta do interlocutor, mas não foi capaz de entender realmente o que o outro dizia. Passaram uns dois minutos até que o advogado retrucasse:
— Não me impressionam os dados que o senhor está demonstrando, pois o rapazelho ainda está muito verde para receber quantias expressivas. Dez por cento de duzentos ou trezentos reais por mês para o senhor não é nada, mas para ele seria muito.
Do outro lado da linha, o homem continuava a dar explicações. Pacientemente, Rosalvo ouviu mais uma peroração de minuto e meio. Enfim, acabou concordando:
— Sendo assim, é de todo recomendável que o senhor se comprometa a estabelecer que o nosso amigo futebolista irá receber vinte salários mínimos para manter-se, enquanto não assinar um contrato no valor de, pelo menos, quarenta salários mínimos.
Daí para frente, a conversa foi bastante rápida e entrecortada. Teotônio, é claro, só ouvia o patrão:
— Não é justo, porque o rapaz está recebendo três mínimos no seu emprego. [...] Os pais dele não estão precisando tanto do que ele ganha, mas sempre ajuda em casa. [...] Eu sei que o irmão também vai entrar no contrato. [...] Concordo que ele deva receber menos, mas também deverá constar, para ambos, que terão os estudos garantidos. [...] Aceito a sua proposta de cinco por cento nos próximos três anos, com o rendimento de quatro salários mínimos. Vou mandar redigir o contrato nesses termos e faço questão de assinar como testemunha. [...] Espero que ele não venha a se arrepender. [...] Felicidades para o senhor também. [...] Isso mesmo: o Teo levará o contrato assinado pelo pai ao seu endereço. Um abraço.
Teotônio estava maravilhado com o resultado da conversa, contudo, esperou pelas explicações do patrão, que não se fez de rogado:
— Vou dispensá-lo das formalidades do aviso prévio. Ou melhor, vou dar-lhe o direito de gozar as suas férias a partir de amanhã. Caso as coisas não se ajeitarem a contento, dentro de vinte dias já saberemos e você poderá reassumir as funções. Até o término do expediente, o seu contrato já estará pronto. Fica valendo também o meu empenho junto ao meu clube.
Teotônio agradeceu muitíssimo as providências do chefe e deu cabo das tarefas da jornada com grande alegria. Tinha a certeza de que o pai ficaria tão contente quanto ele.



12. OS PRIMEIROS PASSOS

Renato, ao contrário do que haviam suposto os entendidos da doutrina espírita, despertou logo para a condição de habitante da espiritualidade. Seu pai esteve ao seu lado durante algumas horas, deixando-o aos cuidados de um espírito familiar mais adiantado, porque o jovenzinho desfiava série imensa de questões para cujas respostas só quem estivesse acostumado ao aconselhamento no campo etéreo teria como responder a contento.
— Por que não estou sofrendo?
— Você tem consciência exata da extensão do crime que praticaram contra a sua encarnação. Como não está com ódio no coração, não merece sofrer.
— E o fato de eu vender drogas e de ser usuário?
— Com que objetivo você traficava senão que era por influência dos maiores? Era justo que experimentasse. Sua vida foi cortada rente e você não teve tempo de testar completamente a periculosidade do vício, pondo-se a enfrentá-lo por amor ao próximo e ao Pai.
— Lembro-me de haver combinado com meus orientadores de antes da encarnação que iria ficar exposto às drogas. Como é que não me deram tempo de avaliar como reagiria? Lembro-me da vida anterior em que estive sob a influência do álcool, terminando aos trinta anos com cirrose hepática. Mas, aos quatorze anos, não foi cedo demais?
— Não acredite que tal desfecho estivesse programado. Foram as coincidências do destino. Várias pessoas formando um grupo ameaçado e topando com adversários astuciosos e sanguinários.
— Quer dizer que terei de voltar à carne para novo teste?
— Não necessariamente. Caso você vença intelectualmente sua necessidade de padronizar o procedimento pela moralidade superior do evangelho de Jesus, irá receber tarefas compatíveis com suas aptidões. O que é certo é que deverá aprofundar bem mais estes simples conhecimentos que lhe estou ministrando, para alívio de sua ansiedade.
— Não sou capaz de dizer o que fiz de bom para merecer tanto apoio. Será porque fui bom filho e irmão?
— Principalmente por isso, embora ainda não estivesse correspondendo completamente às expectativas de sua mãe e de sua irmã.
— Como a morte de meu pai contribuiu para a minha funesta decisão de traficar?
— O trespasse de seu pai desencadeou uma tristeza muito grande, tendo em vista o muito de amor que você lhe dedicava. Mas não atribua responsabilidade ou culpa ao fado perverso. Se hoje você recuperou o discernimento de espírito maduro, na carne, estava ainda sob o efeito das emoções descontroladas. Tinha sido determinado que iria ficar sob tentação. Não se podia prever que seu pai morresse tão cedo. Os acontecimentos se cruzaram e você terminou sob os balázios terríveis dos desafetos. Aliás, não creio que você sequer saiba quem atirou. Você morreu por estar junto de sua turma.
— Nem era a minha turma. Eram os que me usavam para o comércio ilícito. Eu apenas vendia e utilizava. Será que manterei aqui o mesmo vício?
— Provavelmente, enquanto persistirem algumas impressões sensórias em seu perispírito, você poderá sofrer algumas recaídas. No entanto, não podemos dizer que você tenha chegado a um ponto em que a falta da droga lhe causasse grandes perturbações. Para tratamento de algo que possa haver ficado impregnado em você, existe todo um serviço ambulatorial e hospitalar de socorro médico.
— Esse será meu primeiro passo para recuperação total?
— Certamente, mas haverá muitos outros passos para que você consiga melhorar, a ponto de superar as crises que enfrentará inexoravelmente.
— Isso significa que estou com a mente alerta por efeito de alguma providência dos meus protetores e que logo vou imergir nas sombras dos distúrbios emocionais?
— Depende de você manter este tônus de vibração positiva. Nós apenas poderemos sustentar-lhe a deliberação de manter-se bem espiritualmente. Se você se entregar à dor, de nada lhe valerão os nossos cuidados.
— Ponho-me inteiramente em suas mãos. Quero testemunhar todos os riscos que meu procedimento irá oferecer-me.
— Então, acompanhe-nos em nossa oração em agradecimento ao Senhor.
Renato olhou com grande ternura para o amigo e fechou os olhos, ouvindo as palavras carregadas de afeto que dirigia ao Senhor. Mas não foi capaz de seguir até o final da prece. Adormeceu tranqüilamente e foi transferido para um quarto de recomposição do perispírito, no hospital da instituição de resguardo dos inocentes.



13. O TREINO

Teotônio foi levado pelo agente a um dos maiores clubes do Brasil. Chegou meia hora antes da convocação para o treino da turma profissional, de sorte que, por insistência do olheiro, o técnico responsável pela equipe se dispôs a colocar o jovem no meio dos jogadores.
— Você é canhoto?
— Sou, mas finalizo com ambos os pés.
— E não cai?
O rapaz demorou um pouco para atinar que se tratava de uma brincadeira. Então, revidou:
— Nem quando chuto duas bolas ao mesmo tempo.
Renildo, o gerente, que ouvia a conversa, fez sinal ao pupilo para que não atravessasse a resposta. Era tarde, porém, e já o técnico observava:
— Vamos ver se você é bom com os pés quanto é com a língua.
Levado para o meio do gramado, deram-lhe uma bola e lhe pediram:
— Faça uma embaixada.
— Quero dez minutos para alongar-me e aquecer-me.
— Se você não pedisse isso, estava fora. Dez minutos. Pode começar.
Teotônio sentiu-se examinado. Pôs em prática o que aprendera nas aulas de Educação Física, alongando a musculatura com bastante eficiência e coordenação. Após cinco minutos, passou a aquecer-se igualmente de forma o mais científica que sabia. Logo estava preparado para realizar os exercícios com a bola, no entanto, só a apanhou quando lhe deram ordem:
— Use só os pés, mantendo a bola no alto. [...] Agora controle só com o calcanhar. [...] O outro. [...] Com os joelhos e os pés alternadamente. [...] Só com os joelhos. [...] Use a cabeça e os ombros. [...] Saltite enquanto toca na bola. [...] Coloque a bola parada na nuca. [...] Muito bem! Pode parar.
Teotônio estava muito contente por ter feito exatamente tudo que lhe pediu o técnico. O homem que estava ao lado dele imediatamente tomou-lhe o pulso e, colocando um estetoscópio no peito e nas costas, ouviu-lhe a respiração.
— E então, doutor? — Perguntou o técnico.
— Tudo em ordem.
— Teo, vamos ver como é que você chuta a gol.
Chegaram à entrada da grande área, onde estavam dispostas em fileira cinco bolas. Teo recebeu ordem de chutar uma após a outra, imprimindo o máximo de força que podia. Acertou todas dentro das traves, estufando a rede com a violência dos golpes.
— Agora você vai caminhar com a bola controlada, batendo em movimento.
Teotônio não errou nenhum dos chutes que deu, variando bastante os ângulos.
— Acerte a bola sem que toque no terreno.
Foram dez tiros perfeitos a gol.
— Você vai passar por mim e chutar. Cuidado que vou colocar a perna na sua frente, como que fazendo falta.
Era o forte do rapaz, de modo que não perdeu nenhuma jogada.
Nessa altura, vários profissionais que estavam observando o teste aplaudiram a desenvoltura do novato.
— Parece que você tem alguns admiradores. Estou contente com a prova. Quando eu reunir o pessoal no centro, junte-se a nós.
Renildo, que presenciara tudo ao lado da linha lateral, fez sinal para Teotônio aproximar-se:
— Eu acho que o técnico ficou bem impressionado. Quando conversar com os parceiros, cuidado com as brincadeiras. Eles gostam de enrolar os calouros. Não vá ofender-se nem responda como você fez com o técnico.
— Eu só percebi que ele poderia pôr malícia no que eu disse depois.
Não deu tempo de dar maiores explicações e já estava na hora de se dirigir para o grupo. Todos sentados em torno do círculo central, o técnico fez uma longa peroração a respeito da última partida, quando saíram derrotados.
— Agora é com o Silva.
Silva era o preparador físico. Pôs a turma a alongar-se e depois a aquecer-se. Teotônio não se apertou com nenhum exercício diferente dos habituais.
Quando o técnico voltou a reunir o grupo, determinou que os titulares se enfrentassem defesa contra ataque, de modo que os reservas compuseram o restante dos dois times. Três ficaram de fora, entre eles Teotônio.
A bola correu por mais de meia hora, muitas vezes interrompida pelos apitos e correções do treinador, que exigia seriedade e empenho, tanto que, a certa altura, retirou um dos atacantes titulares, passando-o para os reservas. No lugar dele, entrou um dos reservas, permanecendo de fora os mesmos três.
Mais dez minutos, o técnico chamou os três e deu-lhes camisetas dos titulares. Teotônio iria ser testado no meio dos craques principais.
Na primeira tentativa de tocar na bola, sofreu uma entrada faltosa que o arremessou para além dos limites do campo. Renildo correu para o lado dele, mas logo o pupilo estava de pé, dando mostra de que não se machucara.
Quando recebeu a bola pela segunda vez, tocou de lado, deixou o marcador para trás, adentrou a área e cruzou a bola alcançando um companheiro que assinalou o gol.
Foi assim que adquiriu o respeito dos demais e se sentiu prestigiado pelo técnico.
Naquela semana, todos os documentos se prepararam, de forma que só faltava o registro na Federação de Futebol para ter o direito de participar da vida profissional do clube.



14. A MENSAGEM DO ALÉM

Conforme prometera a Dona Flávia, Vieira levou-lhe certa mensagem que um dos médiuns do centro escreveu, durante uma sessão mediúnica.
Estava assinada Renato e logo despertou o interesse de todos, reunidos na pequena sala para ouvir o texto.
Vieira fez questão de dar algumas palavras explicativas:
— É preciso que as pessoas leigas saibam que este tipo de comunicação gera muitas dúvidas, porque não se confia na honestidade do médium. Seria preferível que não conhecesse as pessoas nem os fatos, como em um centro do outro lado da cidade. O nosso amigo escrevente, Haroldo, pessoa que vocês conhecem, foi quem recebeu a mensagem. Sendo assim, muitas das informações contidas nesta página podem ter sido amealhadas junto à memória do encarnado, o que permitiria que algum espírito menos feliz, menos adiantado, pudesse aproveitar-se da passividade do médium para impingir uma porção de mentiras. Contudo, como todas as expressões são muito animadoras e respeitosas, como existem indícios outros do espírito que escreveu que não eram do conhecimento do Haroldo, como não se ofende nenhum princípio doutrinário nem se levanta nenhuma calúnia, é de todo razoável aceitar a origem como sendo da pessoa que apôs a sua assinatura na folha.
Rosinha quis saber algo específico:
— “Seu” André Vieira, o senhor tem levado para muitas famílias mensagens como essas?
— Para falar a verdade, esta é a terceira.
— Sempre do mesmo médium?
— Sempre de médiuns diferentes.
Enquanto Rosinha pensava em mais alguma questão, Dona Flávia solicitou que Vieira lesse o texto.
Todos suspenderam os cochichos e se puseram muito atentos.
Vieira ajeitou os óculos e deu início à leitura:
— Querida Mamãe Flávia, Maninha Rô, titio, titia e priminha. Apesar de ter tido a vida tirada através de violência, apesar de estar ainda sob a perniciosa influência das drogas, apesar de estar sendo acusado pela consciência de ter praticado o mal contra os colegas cujo vício alimentei, ainda assim, estou sendo generosamente bem tratado pelo pessoal que cuida de mim. Tenho recebido a visita do papai, que me mandou dizer que não se preocupem com ele, porque está trabalhando em prol dos necessitados daqui. O meu orientador moral me pediu que deixasse bem claro que a vida continua nesta outra esfera de Deus, onde os amigos da espiritualidade são muito cordatos e pacíficos. Espero que vocês se convençam de que a Doutrina Espírita é muito importante para facilitar a compreensão da realidade de após a morte. Por isso, eu recomendo que leiam as obras e estudem os pontos mais difíceis com os instrutores do centro. Agora eu devo falar a respeito de alguma coisa que só vocês sabem sobre mim, mas não quero incentivar nenhum pretexto para se descrer de que sou eu mesmo, Renato, que estou escrevendo. Não estranhem o meu domínio da linguagem: acontece que não só estou com a memória da vida anterior em aberto, como também recebo muita ajuda dos mentores desta casa. A Rô é que me pedia para estudar mais, como naquele dia em que me puxou a orelha. Ela não sabia das minhas atividades de traficante e usuário. Se eu pudesse, eu chamaria a atenção de todos, principalmente dos jovens, para o perigo de perderem a oportunidade de progredir, precisando voltar depois, de forma ainda mais infeliz e perigosa, e lutar muito para se vencerem os vícios. Como já escrevi muito e estou prevendo que vocês vão enxugar algumas lágrimas, devo afirmar que estou aprendendo muito rapidamente a dominar as emoções prejudiciais para a compreensão da existência. Fiquem com Deus, na certeza de que estarei com vocês, acompanhando a leitura do texto. Renato.
Não precisamos dizer que houve um longo silêncio entrecortado pelos soluços de Dona Flávia, que se deixava consolar pela filha.
Depois de alguns minutos, Vieira perguntou:
— Vocês adquiriram a convicção de que foi mesmo o Renato quem deu a comunicação?
Só Rosinha se manifestou, na ausência do namorado, que estava viajando com o time:
— É como o senhor disse: as palavras são muito reconfortantes e a mensagem é inteligente. Pareceu-me que foram ditadas por alguém que desejava tranqüilizar a gente, tanto que aquele puxão de orelha não passou de uma brincadeira entre irmãos e ninguém ficou sabendo. Mas como os espíritos estão sempre ao nosso redor, bem pode ter acontecido de algum deles ter visto o que fiz e ter posto na boca, ou melhor, na pena que atribuiu ao meu irmão.
— Pelo que você está dizendo, pelo menos está acreditando que seja uma comunicação do outro plano.
— Com certeza o Haroldo não iria querer enganar a minha família.
— Isto basta para me deixar tranqüilo e muito contente. Vai servir para nós prosseguirmos dando guarida a espíritos que desejam mandar lembranças aos parentes e amigos. É serviço de não pouca importância e benemerência.
Ainda trocariam algumas idéias, tomariam um cafezinho e se despediriam com a promessa de Dona Flávia de voltar ao centro para ajudar no que fosse possível.



15. WILSINHO INVESTIGA

Enquanto Teotônio excursionava pela Europa, Wilsinho ocupava-se com descobrir como é que a pequena filha da funcionária fazia para servir ao tráfico de drogas.
Notou que a menina era nova demais para freqüentar a quinta série, a mais baixa do Ensino Fundamental da sua escola. Por isso, estava à vontade no pátio, sem colegas e sem professora que a vigiassem. A mãe a trazia bem cedo e ela a ajudava na limpeza e arrumação geral.
O fato de ir treinar três vezes por semana, liberou Wilsinho da estreita observação exercida pelos pais. Estudava de manhã e jamais faltou à aula. À tarde, ficava livre para ir aonde quisesse. Nos tempos do Renato, quando este ainda não aderira ao tráfico, iam e vinham pela vizinhança, sempre atrás da bola. Era, assim, figurinha fácil entre os moradores do bairro e até da favela.
Um dia, não compareceu à aula, pondo-se à espreita do momento em que a traficantezinha saísse, o que aconteceu logo após o recreio da manhã. A menina capitaneava a sua bicicleta, de sorte que desapareceu antes que Wilsinho pudesse descobrir o caminho que percorria. Perdera as aulas à toa.
Uma semana depois, lá estava ele de novo, munido agora de sua condução sobre duas rodas, emprestada de um vizinho solícito a quem confiara a aventura, mentindo-lhe, contudo, a respeito do objetivo da busca.
Dessa feita, viu quando a pequena entrou na favela, seguindo-a a alguma distância, sem dar na vista, caso houvesse algum segurança da quadrilha. Estacionou a bicicleta junto ao terreno baldio em que batia bola, podendo observar a casa onde a menina havia entrado.
Ali ficou por duas horas. Estava chegando a hora do término das aulas e já se preparava para voltar, quando a garota saiu de casa, tomando o rumo da boca da favela, desta feita andando rápida, a pé. Isso complicava a situação do investigador, já que não conseguia ir tão devagar que não chamasse a atenção para si.
Wilsinho imprimiu velocidade e passou pela menina, notando que usava o uniforme de uma escola mais afastada. Não deu demonstração de reconhecê-la e foi esperar por ela no portão do educandário.
As crianças ali eram menores, pois se agasalhavam os alunos das quatro primeiras séries.
Quando a menina chegou, logo formou no grupo das maiores, integrando-se nos folguedos da turma. Foi fácil para Wilsinho deduzir que ela se transformara em inocente aluna, sem atribuições outras além das de estudante.
Como houvesse vários conhecidos, logo se inteirou do nome e da classe da pequena, insinuando os colegas que ela era muito perigosa por estar sempre rodeada de defensores hostis.
Foi assim que descreveu para o pai o resultado de sua investigação.
— Você faltou às aulas quantas vezes?
— Só duas.
— Está proibido de continuar a investigação. Vou mandar um detetive avaliar o caso. Não quero ver você metido em apuros. Fique longe dela e da mãe. Estou sendo claro?
— Claríssimo.
— Como vão indo os treinos?
— Estou sendo mantido no time. Por enquanto, vou dando conta da posição.
— Veja o seu irmão como está indo bem. Você sabe que ofereceram contrato no exterior?
— Sei.
— Não quer a mesma coisa para você?
— Quero.
— Então, concentre-se no que é de seu interesse. Você está na oitava série. No ano que vem, vou mandá-lo para uma boa escola particular. Agora o dinheiro não vai faltar. Vá investigando qual a escola que você vai querer freqüentar. Eu vou perguntar aos seus professores qual eles sugerem.
Wilsinho desconfiou de que era uma boa desculpa para o pai aparecer na escola, podendo imiscuir-se junto ao pessoal da administração para conhecer a servente que mandava a filha traficar.
Foi a última vez que se preocupou com a quadrilha que matou Renato. Uma semana depois, encontraram dois bandidos assassinados, sendo que a polícia logrou desmantelar a gangue da chacina. Entretanto, servente e filha continuaram trabalhando na escola.



16. TEOTÔNIO REGRESSA

Arnaldo quis fazer uma bela surpresa para o filho: foi buscá-lo no aeroporto de carro novo. Mais ainda: levou Rosinha, que muito tinha insistido com ele.
— Pai, não me diga que você já está gastando o meu dinheiro por conta.
— É um semi-novo, pouco rodado. Não precisei do seu dinheiro. Bastou falar que era o seu pai e logo me deram crédito. Todo mundo já está conhecendo você, depois das reportagens nos jornais e na televisão. Quantos autógrafos você deu?
— Nem sei. Foram muitos.
— Pois todo o mundo está admirando o seu futebol.
Rosinha confirmou:
— O pessoal da escola está louco para que você compareça às aulas. E não são só os alunos; os professores, também, principalmente o Professor Ernesto.
— Alguma novidade na escola?
— Nenhuma. As suas faltas não vão prejudicá-lo. Não chegaram ao limite máximo. Basta você aparecer nas últimas semanas.
— Tenho uma semana e meia de folga. Depois, volto aos treinos, apesar das férias dos outros. O Renildo me disse que eu só vou ter direito às férias depois de um ano de trabalho. Tudo bem.
Wilsinho não se cansava de olhar para o mano famoso. Queria participar da alegria geral, mas não tinha assunto. Foi Teotônio que o provocou:
— Você ficou sabendo que Renato deu uma comunicação mediúnica? Que foi que ele mandou dizer a você?
Rosinha quis intervir, mas Wilsinho apressou-se a responder:
— Eu li a mensagem. Ele não falou de mim nenhuma vez. Talvez porque eu estivesse procurando saber quem foi que o matou.
Arnaldo estava prestando muita atenção no rumo que a conversa estava ganhando, mas apenas pigarreou, como a determinar ao mais novo que se calasse.
No entanto, Teotônio insistiu:
— Talvez possa ter sido por isso mesmo. Acontece que ele perdoou os assassinos. Agora cabe à polícia dar um jeito nisso.
Wilsinho, que entendera o aviso paterno, aduziu:
— Não te informaram que os da chacina foram justiçados?
— Não estou sabendo de nada.
— Depois o pai, se ele quiser, vai te dizer o que aconteceu.
Todos esperavam que Arnaldo se pronunciasse, no entanto, guardou silêncio, a indicar que o assunto não era oportuno.
Foi Rosinha quem desviou a conversa:
— Estão dizendo que você marcou seis vezes. Foi isso mesmo?
Teotônio, que não deixara de escrever a ela a respeito de nenhuma partida, compreendeu-lhe a intenção:
— Isso mesmo. Marquei duas vezes em cada jogo. Duas vezes três: seis.
Logo Wilsinho observou:
— Gostaria de estar lá para ver o cracão jogar.
— Eu trouxe tudo gravado em CD-ROM. Tem até slow-motion. Câmara lenta, para quem não sabe. Vocês não viram a repetição dos lances pela televisão?
Todos responderam a uma só voz:
— Vimos.
Arnaldo foi mais completo:
— Só passou em alguns telejornais. E muito rápido. Eu vou gostar de assistir aos jogos completos. Aliás, eu tive uma boa idéia. No sábado, a gente dá um churrasco para todo o pessoal mais próximo, eu convido até alguns parceiros da ronda e aí todos vão poder ver a sua magistral atuação.
Teotônio acrescentou:
— Quem achou que foi magistral, tendo usado até a mesma palavra, foi o Renildo, tanto que vai propor uma alteração substanciosa no meu salário (fique só entre nós), ameaçando oferecer-me para outro time, dizendo que as cláusulas das multas no meu contrato são ridiculamente pequenas. O homem está falando grosso.
Arnaldo se interessou:
— Será que ele vem para o churrasco? Assim eu vou poder conversar com ele. Não se esqueça, Teo, que você ainda é de menor.
— Se ele vier, eu trago o Doutor Rosalvo, para pôr tudo em pratos limpos.
Ao chegarem ao lar, lá estava Dona Vilma, acompanhada de Dona Flávia e de metade do quarteirão, com bandeirolas do time e bandeiras do Brasil. Houve quem soltasse muitos rojões. Ao descer do carro, Teotônio foi empolgado pela multidão, que o ergueu no ar, carregando-o em triunfo.



17. PLANOS

No sábado, contados os convidados, haveriam de ser recepcionadas cerca quarenta a cinqüenta pessoas. Não haveria penetras porque a segurança estaria a cargo da turma do sargento.
Pela manhã, Teotônio foi à faculdade, porém, desconcentrado, pouco aproveitou dos ensinamentos do expositor. Mesmo Ernesto não conseguiu oferecer algum assunto importante, peça de resistência para o filosofar de ambos. Ao contrário, foi Teotônio quem mais falou, narrando os acontecimentos da viagem e expondo projetos para os próximos anos.
— Como o pessoal da escola foi muito bacana, vou poder vencer a segunda série e, no ano que vem, estarei preocupando-me com o vestibular. Mesmo que não possa freqüentar nenhum curso preparatório, não vou importar-me se me atrasar mais um ano, já que perdi um quando comecei a trabalhar.
— Você é inteligente. Sabe que pode aproveitar todas as folgas entre os treinos e os jogos. Vai acabar tendo mais tempo do que no escritório de advocacia.
— Isso eu já notei. Mas acontece que, quando o cansaço bate, não dá ânimo para pegar nos livros.
— Use a Rosinha como apoio. Ela irá passar-lhe toda a matéria e poderão estudar juntos.
— É verdade. Ela mesma já me propôs isso. Está de olho nas meninas que estão galinhando em volta de mim. E não é só na escola.
— O que é que você pensa a respeito?
— Sou muito novo para me preocupar com as fãs. Mas também eu sei que não devo dar atenção a elas. Se não tomar cuidado, alguma vai me pegar ficando prenhe.
— Só se você não gostar da Rosinha.
— Ao contrário, por gostar muito dela. Ela me excita mas não me satisfaz. Entendeu? Aí alguma outra sirigaita vai aparecer... Não quero nem pensar nisso.
— Solução?
— Casamento, se precisar estabelecer-me fora do país.
— Vocês hão de entender-se muito bem, já que se amam. Não deixe que seu sucesso esportivo atrapalhe a sua vida de realizações pessoais e familiares. Às vezes, é preferível ter pouco mas...
— Eu acho que, do jeito que as coisas vão, não vai demorar para aparecerem oportunidades de ouro. O Renildo falou que vai incluir no contrato uma casa ou apartamento, longe da bagunça da favela.
— E aí?
— Aí eu me mudo com a família e trato de pagar aluguel para uma casa melhor para a mãe da Rosinha e família.
— Como é que você vê aí a vontade de Deus realizando-se?
— Se a gente conseguir superar o luto pela morte de Renato, a felicidade atual eu vou precisar agradecer muito, porque existe, por certo, muito espírito bondoso e amigo protegendo a minha família. Se for o caso, não sei ainda, vou comparecer à sua aula amanhã de manhã no centro. Talvez consiga levar o Wilsinho. As opiniões dos rapazes e moças com certeza poderão auxiliar-me a decidir.
— Vá mesmo. Não espere muita coisa, contudo, vou esforçar-me para tratar de algum tema de seu interesse. Você pode sugerir agora.
— Vou colocar em forma de pergunta: por que Renato não denunciou os culpados pela sua morte?
— Não vou responder já. Vou tratar de pesquisar um pouco. Estamos chegando. Vou deixá-lo em sua casa e vou apanhar a minha família. A sua festa, tenho a certeza, vai ser muito agradável.



18. ANTES DA FESTA

Quando Teotônio chegou, os preparativos estavam bastante adiantados. Dona Vilma e o marido repartiram as tarefas, de sorte que coube a ela cuidar da salada e a ele, temperar a carne e ajeitar os tijolos no quintal, em extensa fileira, para colocar as grelhas sobre o carvão ainda apagado.
A família de Rosinha já lá estava, todos ajudando o casal em sua faina.
Assim que Teotônio quis pôr mãos à massa, foi impedido pela mãe:
— Rosinha, leve seu namorado daqui. Hoje é o dia dele. Não vai fazer nada.
— Eu queria arrumar as bebidas, observou o craque.
— O chope e os refrigerantes ainda não chegaram. Os copos estão alinhados sobre a mesa no quintal. O Wilsinho está encarregado de vigiar as crianças, para que não bebam nada alcoólico.
— Que crianças, mãe?
— Os filhos do seu professor e também dos colegas de seu pai.
— Eu não acho que o Wilsinho vai gostar disso. Ele ao menos está sabendo?
— Não voltou ainda do jogo.
— Que jogo? Lá no clube?
— Ele não disse nada?
— Não.
— Pergunte para o seu pai, que ele deve saber.
— Tudo bem.
Rosinha, o tempo todo, ficou agarrada ao braço do namorado, como que prendendo-o para não fugir. Vendo que ele ia em busca do pai, arrastou-o para o fundo do terreno, perto da pequena horta de Dona Vilma, onde havia algumas cadeiras, dizendo-lhe baixinho:
— Precisamos conversar.
Teotônio deixou-se conduzir sem resistência. Sentia o perfume que trouxera do exterior para a mocinha e se agradava daquela intimidade.
— Teo, a minha mãe está querendo freqüentar o centro espírita.
— E daí?
— A gente foi católica desde criancinha. O que não vai dizer o padre Fulgêncio?
— Não foi ele quem mandou vocês procurarem o centro?
— Eu sei disso. Mas andei estudando, enquanto você esteve fora, e não acho possível compatibilizar as duas crenças.
— Que é que você quer que eu diga?
— Eu não sei.
— Vamos fazer o seguinte: quando chegar o Professor Ernesto, a gente propõe o problema a ele.
— Ele vai dizer que a Igreja Católica...
— Vamos deixar que ele mesmo fale a respeito. Não vamos tirar conclusões apressadas. Veja: estão chegando os colegas do meu pai.
— Parece que eles passaram pela adega e estão ajudando a carregar a bebida.
Lá de longe, o Cabo Faria cumprimentou Arnaldo, perguntando pelo filho.
Teotônio teve um estremecimento. Perturbou-se tanto que apertou o braço de Rosinha, fazendo-a reclamar:
— Você está me machucando. Que aconteceu?
— Parece que reconheci a voz do bandido que me ameaçou naquela noite.
— Tem certeza?
— Estou quase afirmando que é ele.
— E se for?
— Não sei o que fazer. Se eu pudesse conversar com o meu pai...
Rosinha estava afogueada. Um pensamento bailava-lhe na cabeça. Finalmente, falou baixinho:
— Teo, pode ter sido ele quem matou o meu irmão...
— Querida, não vamos nos precipitar. Se os bandidos estão aqui em casa, nós não temos como acusá-los. Desculpe não ter pensado direito quando falei que reconheci a voz.
— Vamos fingir que não aconteceu nada. Mais tarde, você fala com o seu pai.
— Você vai conseguir...
Não deu tempo para terminar. Já o Cabo Faria e outros soldados se dirigiam até onde ele estava, com claras manifestação de alegria pelo sucesso do rapaz.



19. DURANTE E DEPOIS DA FESTA

Teotônio e Rosinha suportaram bem o assédio dos policiais. O cruzar das perguntas e das observações, a chegada de outros convidados, principalmente dos filhos dos próprios soldados, rapazes e moças entusiasmados com o futebolista famoso, a necessidade de colaboração nos cuidados dos comes e bebes e na arrumação da tela grande em que seriam projetados os jogos concentravam e imediatamente dispersavam os círculos que se formavam em torno do casalzinho.
Não houve incidente de monta, apesar de Wilsinho não ter ficado para tomar conta dos menores:
— Teo, me passa aí uma nota pra eu ir com a minha patota ao shopping.
— A mãe está querendo que você...
— Mas eu estou com a turma que não está a fim de ficar aqui. Entendeu?
Com uma nota de cinqüenta, o rapazelho desapareceu sem que os pais dessem pela proeza.
Renildo conversou longamente com o Doutor Rosalvo, ambos aconselhando que aguardasse pai e filho as novas propostas contratuais e que não descartassem a possibilidade de transferência para outro clube, não deixando escapar nada para a imprensa.
Durante a transmissão das partidas, o povo todo vibrou com as jogadas que redundaram em gols, enchendo de curiosidade toda a vizinhança. De resto, o quintal acabou ficando completamente cheio, já que não havia como deixar de atender os conhecidos. O almoço já havia sido servido e, no final, constatou-se que todas as sobras haviam sido consumidas.
Para Dona Vilma, foi muito bom que as suas comadres tivessem comparecido, porque, em menos de uma hora, às seis horas da tarde, estava toda a louça guardada e todos os móveis recolocados nos devidos lugares, tendo sido devolvidas as cadeiras que vieram da vizinhança.
A família de Rosinha ficou até o fim, tendo sido a última a retirar-se. Teotônio fez questão de acompanhar a namorada, ficando o casalzinho um pouco para trás, confabulando.
Dizia a mocinha:
— Você tem certeza de que o Cabo Faria foi quem o assustou?
— Não me restou dúvida alguma.
— Quando você vai contar para o seu pai?
— Eu acho que hoje não. Rolou muita cerveja e o sargento deve ter ficado com a cabeça quente.
— Também iria estragar a alegria dele e de sua mãe. Deixe para contar amanhã.
— Amanhã, eu combinei com o Professor Ernesto que iria ao centro. Aliás, eu disse que iria levar o Wilsinho. Preciso avisar o peralvilho. Você vai querer ir?
— Com certeza.
— É bom mesmo que vá porque eu pedi que ele explicasse por que seu irmão não revelou que atirou nele.
— Mais um motivo para você conversar com seu pai amanhã.
A conversa morreria ali. O mais foram carícias trocadas à sorrelfa, enquanto caminhavam.



20. EM FAMÍLIA

Wilsinho chegou quando Teo acompanhava Rosinha. Chegou esbaforido, tenso, querendo saber onde estava o irmão.
Dona Vilma observou:
— Esteve aqui até agora. E você, por onde andou?
— Fui ao shopping com meus amigos.
— Fazer o quê? Você perdeu toda a alegria da festa.
— Eu já vi os jogos todos.
— Estou falando dos convidados e dos vizinhos.
— Que é que tem?
— O Doutor Rosalvo veio tratar do novo contrato com o Renildo. O Professor Ernesto trouxe a família. Os colegas de seu pai...
— Eu vi toda essa gente.
— Mesmo assim, deixou de cumprir a sua obrigação de tomar conta dos pequenos.
— Tive meus motivos.
— Não sei o que poderia ser mais importante.
— Por exemplo: descobrir a quadrilha que assassinou o Renato.
Arnaldo, que ouvia sem intervir, resolveu intrometer-se:
— Eu não lhe disse para deixar de investigar?
— Disse e eu obedeci.
— Como obedeceu, se está dizendo que foi descobrir os assassinos?
— Fui ver como é que se consegue a droga longe da escola.
A mãe foi quem interpelou o garoto:
— Você está querendo ficar na mão dos traficantes? Não tem cabimento...
Arnaldo não a deixou prosseguir:
— Você está dizendo que foi comprar pó?
— Fui com meus colegas até a casa da servente...
O pai levantou-se e pegou o rapazelho pelas golas da camisa, completamente furioso:
— E não cheirou nem um pouquinho?
Wilsinho quis desvencilhar-se do agarrão mas não conseguiu. O pai fechara a mão como verdadeiro torniquete. Vendo que não podia fugir, enfrentou o soldado soltando o verbo:
— Não cheirei nem os meus colegas cheiraram. Se o senhor confiasse mais em mim, me deixava explicar tudo.
Sem soltar o filho, Arnaldo insistiu com a voz bastante alterada, rouca, vinda do fundo da garganta:
— Cheirou ou não cheirou?
A mãe interveio:
— Arnaldo, ele está dizendo que não cheirou.
Com um gesto mais brusco, o marido afastou a mulher, evitando que ela se agarrasse ao filho.
— Eu estou perguntando a ele. Responda!
— Não cheirei. Se o senhor me largar, eu mostro os papelotes.
Sem abrir a mão, Arnaldo vasculhou com a outra os bolsos do filho, sem encontrar nada.
— Onde está a droga?
— Me solta que eu não vou fugir.
O tom da voz do filho, vozinha sumida e vacilante, comoveu o pai, que o largou, empurrando-o de encontro ao sofá.
— Fique sentado aí!
Rápido, Wilsinho abriu a camisa, tirando do cós da calça um embrulho feito com o lenço. Abriu-o e mostrou as trouxinhas, explicando:
— Comprei só duas doses de dez reais.
— Onde você conseguiu o dinheiro?
— Pedi ao Teo.
— Ele sabia pra que era?
— Não.
— Diga a verdade.
— Estou dizendo a verdade. Eu nem pensava em ir comprar a droga. Fui porque um da turma queria experimentar. Só acompanhei, indo acabar lá na casa da servente. Aí é que tive a idéia.
— Seu amigo experimentou?
— Nós não deixamos. Ele até brigou com a gente e foi embora.
— Levou a droga?
— Levou.
— Por que vocês não impediram?
— Fizemos mais que isso. Avisamos o pai dele.
— E daí?
— Daí não sei o que aconteceu.
Nessa altura, Dona Vilma já havia abraçado o filho, protegendo-o da fúria do marido. Foi quando chegou Teotônio.
— Pai, antes que o senhor me repreenda, devo dizer que vim a pé porque ainda é cedo e tem muita gente na rua, tanto que precisei dar vários autógrafos.
O sargento disfarçou a braveza, respondendo:
— Tudo bem. Você já sabe o que faz. Eu vou dormir.
Ficou claro ao filho mais velho que o ambiente estava tenso. Dona Vilma fez-lhe um discreto sinal para que não dissesse nada, acrescentando em voz alta:
— Eu acho que todos estão muito cansados. Eu estou caindo de sono. Por que vocês dois não vão dormir mais cedo?
Wilsinho aproveitou a deixa e, pulando da poltrona, desejou boa noite aos pais, dando um puxão na camisa de Teotônio.



21. EM VOZ BAIXA

Deitados em suas camas, os irmãos trocaram confidências.
— Wilsinho, que aconteceu que todos estavam tão nervosos?
— O pai me deu uma bronca. Quase apanhei dele.
— Que foi que você fez?
— Caí na asneira de dizer a verdade.
— Que verdade?
— Que fui comprar cocaína na casa da servente, lá no Corisco.
— Explique isso direito.
Wilsinho repetiu tudo quanto havia dito aos pais.
Teotônio ouviu com atenção, franzindo o cenho, agitando umas idéias estranhas. Ao término da narrativa, contemporizou os pensamentos, buscando ganhar tempo para amadurecer as intuições. Então disse:
— O pai tem razão em brigar com você. Você está querendo acabar como o Renato? Agora vão saber que você é um consumidor e não vão largar de seu pé. A menina, na escola, vai procurar você para vender mais. Você não pensou nisso?
— Não pensei em nada, mas ela não me viu.
— Quem lhe vendeu as doses?
— Na verdade, eu dei o dinheiro pro Geraldo, enquanto esperava na esquina.
— Esse é o tal que quis experimentar?
— Ele mesmo.
— Você disse isso pro pai?
— Eu tremia feito vara verde. Ele me agarrou pela gola, quase me afogando.
— Então, a coisa foi feia. Não era para menos.
— Mas a minha intenção...
— De boas intenções o inferno está cheio. Aliás, por falar em inferno, eu prometi ao Professor Ernesto que você vai comigo ao centro amanhã cedo. Ele vai explicar a razão de o Renato não ter falado o nome do criminoso que o matou. Você não está interessado nisso?
— Será que ele recebeu alguma mensagem que não deu pra gente?
— Penso que não. Se tivesse recebido, ele me teria dito.
— A Rosinha também vai?
— Vai.
Depois de um momento de hesitação, Teotônio confidenciou:
— Eu sei quem foi que me cercou na rua. Se você me prometer não contar pra ninguém, eu digo quem é. Mas você tem de jurar.
— Eu juro.
— Veja lá!
— Juro por Deus que da minha boca...
— Repita comigo: Juro que não revelarei a ninguém o nome do bandido.
Wilsinho repetiu palavra por palavra.
— O cabo Farias.
— O amigo do pai?
— Esse mesmo.
— E como você descobriu?
— Reconheci a voz.
— Já disse pro pai?
— Combinei com Rosinha que hoje eu não ia dizer nada. Parece que estava adivinhando que ele não ia reagir bem.
Wilsinho aproximou-se do irmão e cochichou-lhe ao ouvido:
— E se os outros do bando eram os mesmos policiais que eu vi hoje na festa?
— Também pensei nisso. Se eu contar pro pai, talvez ele vá ficar em maus lençóis.
Essa última reflexão teve o dom de calar a ambos.
Após alguns minutos, Teotônio desejou boa noite a Wilsinho, apagou a luz e não se falaram mais, embora ambos percebessem que o outro tenha ficado acordado por bom tempo.



22. A CONFERÊNCIA

Os irmãos mais Rosinha chegaram cedo ao centro espírita. Juntos haviam ido à missa das sete e agora estavam dispostos a ouvir o Professor Ernesto.
Por toda a parte, Teotônio era reconhecido e cumprimentado, precisando distribuir autógrafos e conselhos. Achava tudo bastante divertido e não se acanhava diante do assédio dos admiradores. Mesmo no Amor Perfeito de Jesus, antes da reunião, o pessoal cercou o futebolista. A calma só foi estabelecer-se com a chegada do professor.
Diante do círculo formado pelos presentes, Ernesto esclareceu:
— Todos aqui tomaram conhecimento da mensagem do nosso confrade Renato, cuja irmã, Rosinha, está presente. Como vocês devem estar lembrados, o mensageiro omitiu o nome de seu assassino ou assassinos. Saber o porquê de se ter calado a respeito é o que tentaremos discutir nesta sessão de estudos. Vocês gostariam de levantar algumas hipóteses ou preferem que eu inicie o desenvolvimento do tema?
Vários levantaram a mão e Ernesto indicou Rosinha:
— A mais interessada deve ser a primeira a manifestar-se.
Sem hesitar, a jovem observou:
— Ninguém me tira da cabeça que meu irmão não disse nada a respeito com o fito de proteger a família e o próprio médium, cuja segurança estaria ameaçada.
Diante de tão incisiva consideração, os demais aguardaram que Ernesto respondesse.
— Minha cara, você matou a cobra e mostrou o pau. No entanto, em segredo, o médium poderia receber a informação, para efeito da investigação policial.
Rosinha não se conteve:
— Tudo bem, mas, se tivessem sido policiais os assassinos, teria o médium meios de revelar os nomes?
Novamente, Ernesto precisou de bastante sangue-frio:
— Simples acusação sem provas, seria inútil e perigosa, como você mesma disse. O que eu estou querendo sugerir é que qualquer citação de nomes iria enredar o encarnado que recebesse a mensagem. Na história do Espiritismo, encontram-se casos de revelações da inocência de pessoas consideradas culpadas pela justiça dos homens. Mesmo no Brasil, a intervenção do famoso médium Chico Xavier levou um tribunal a absolver um réu. Não conheço nenhum caso em que a vítima apontou o criminoso, a não ser nas obras romanceadas, para efeito de despertar nos leitores a desconfiança de que não existem atos ocultos, ao menos dos espíritos. Assim sendo, é fácil perceber que outros espíritos além do espírito de seu irmão também têm conhecimento da identidade do autor ou autores desse crime e de todos os crimes, ainda que ocorridos no âmbito apenas da consciência, pela intenção do dolo ou da má-fé. Mais alguém quer acrescentar algo?
Todos prestaram redobrada atenção quando Teotônio assumiu a palavra:
— Nos Estados Unidos, principalmente, por iniciativa da própria força policial, aconteceram consultas a médiuns que recebiam notícias de onde se encontravam os corpos de seqüestrados. A serem verdadeiras, temos aí a participação dos espíritos para a elucidação dos crimes.
Ernesto reassumiu a palavra:
— Muito bem lembrado. Nesses casos, a preocupação é com o fato em si e não com os criminosos, muito embora a descoberta dos corpos sempre possa levantar pistas a respeito dos autores. Agora eu quero partir para outra consideração, de caráter mais moral e doutrinário. Alguém pode imaginar a que me refiro?
Timidamente, Wilsinho ergueu o braço, sendo designado para falar. Meio embaraçado, conseguiu expressar-se:
— Renato era meu melhor amigo. Afastou-se de mim quando começou com as drogas. Quando li a mensagem que enviou, fiquei triste por não ver meu nome citado. Pensei bastante e concluí que ele não quis me colocar na berlinda, como parceiro no tráfico. Seria leviano acusarem-me de pertencer àquela gangue. Se pertencesse, talvez estivesse morto também. Ao contrário, tenho feito o possível para descobrir quem matou o meu amigo. Meu pai, que é policial, me proibiu, porque sabe que estou mexendo com gente muito perigosa, capaz de me eliminar sem titubeio. Ontem mesmo verifiquei que existe na favela um ponto de venda. Mas isso todo mundo sabe. Não é nenhuma novidade. Se fosse escondido, ninguém saberia onde comprar. Eu sei que estou me desviando do assunto, mas estou chegando lá. O caráter moral envolvido na falta do nome do assassino está no fato de se respeitarem todas as criaturas como filhas de Deus. Pelo que entendo, a doutrina espírita é cristã e Jesus nos pediu que amássemos até os nossos inimigos. Não sei se era isso que o professor queria ouvir.
Fez-se silêncio absoluto no salão. O rapazinho havia impressionado a platéia e Ernesto estava dando um tempo para que todos absorvessem aquele discurso juvenil.
Antes, porém, que o orientador dispusesse outras idéias, vieram avisar que estava servida a refeição para quantos fossem almoçar ali. Ainda assim, houve tempo para uma despedida formal:
— Meus queridos, como estamos próximos das festas de fim de ano, as aulas serão substituídas por atividades de regozijo, devendo os rapazes e moças ensaiar sob a batuta do Professor Aírton. Eu estarei apenas supervisionando para que a organização não nos embarace nas apresentações que faremos para os pais e os assistidos. Vão em paz, cada qual refletindo sobre tudo que ouviram durante todo o ano, aplicando as virtudes mais preciosas da fé, da esperança e da caridade. Quanto ao amor ao próximo, sendo o próximo até o nosso mais terrível inimigo, como temos repetido sempre, haveremos de reencarnar ainda muitas vezes para eliminar do procedimento todo resquício de perversidade. Pai nosso...
A prece ecoou no salão, enquanto se ouviam os petizes cantando no pátio externo.



23. CONVERSA PARTICULAR

Teotônio, assim que os demais saíram do auditório, dirigiu-se ao orientador:
— Professor, nós três não vamos ficar para o almoço. Em nome deles, eu gostaria de agradecer-lhe toda a atenção que nos deu. Eu acho que valeu muito para nós estabelecermos um roteiro espírita para entender as manifestações mediúnicas.
— Quando você vai retomar os treinamentos?
— Amanhã de manhã. Hoje à tarde, pretendo mostrar as dependências do clube a Rosinha. Talvez até me exercite um pouco nos aparelhos. O técnico me pediu para ganhar mais massa muscular. Ele disse que, do jeito que eu finto, os adversários vão querer usar de força bruta.
— E quanto aos estudos?
— Se não houver jogos à noite nem concentração, pretendo comparecer às aulas.
— Você tem levado algum livro para ler nas horas de folga?
— Quase não dá para ler. É que meus colegas mexem comigo. Sou o único que estou estudando, apesar de haver alguns mais velhos que possuem diplomas até de ensino superior. O que eles querem mesmo é formar-se em Educação Física, mais tarde.
— Atreva-se a ler as obras de Allan Kardec. Quem sabe você consiga interessar mais alguém, principalmente aqueles que estejam passando por problemas familiares.
Wilsinho perdia-se em devaneios. Parecia que seu espírito pairava muito longe da realidade. De chofre, contudo, perguntou, como que despertando:
— Não é verdade que o Espiritismo diminui a responsabilidade do assassino, mostrando que a vítima está bem e recuperada, muitas vezes até mais feliz do que estava em vida?
Os outros três trocaram olhares para descobrir quem iria responder. Rosinha se atreveu:
— Eu li muitas vezes a mensagem do Renato e senti que ele não está tão bem nem tão feliz. Além de se penalizar com a dor dos familiares, tem de responder pelo vício e pelo tráfico. O que ele tem de bom é a atenção dos protetores. Quem lê atentamente as suas palavras não acha que a importância do crime esteja diminuída. Ao contrário, deve fazer pensar que a vítima perdeu a oportunidade de progredir encarnada, o que nenhum tribunal nem nenhum código de leis prevê. Neste caso, além das eventuais punições aqui mesmo entre os homens e através da consciência, sempre haverá de enfrentar problemas na espiritualidade.
Ernesto acrescentou:
— Sobre isso é que eu ia falar ao término da aula, tintim por tintim. O que me admira é que estas lições estejam sendo compreendidas por jovens como vocês. Podem acreditar que muitos adultos, até formados, não têm tamanha compreensão.
Rosinha não deixou esfriar o ferrou e malhou:
— Foram suas aulas de lógica que nos fizeram tão inteligentes.
Wilsinho gracejou:
— Pois a minha sabedoria é natural.
Teotônio, que desejava trazer à baila determinado assunto, aparteou:
— A sua sabedoria levou o pai a castigá-lo. Professor, ele foi proibido de investigar a venda de drogas mas, assim mesmo, foi comprar cocaína na favela.
Ernesto, prudentemente, esperou por novas explicações, que de pronto Wilsinho fez questão de fornecer:
— Se eu soubesse que você tinha reconhecido o dono da voz do bandido que o ameaçou, juro que não...
— Não acredito em seu juramento. Ontem mesmo você jurou que não iria revelar nada a ninguém sobre o que conversamos e agora...
Rosinha interveio conciliadora:
— É até bom que vocês ponham o professor a par de suas desconfianças. Tenho certeza de que ele vai nos ajudar.
Através de um gesto, Ernesto solicitou que prosseguissem.
Wilsinho e Rosinha pousaram os olhos sobre Teotônio, como a intimá-lo a falar. Com muito cuidado, medindo as palavras, o rapaz desvelou sua suspeita:
— O senhor conheceu ontem os policiais amigos de meu pai. Pois um deles fala exatamente igual ao bandido que me ameaçou. Então, Wilsinho e eu ficamos com medo de contar tudo ao nosso pai, porque os outros soldados podem estar envolvidos na caso da chacina. Até me ocorreu que meu pai pudesse saber de tudo, mas, tanto no dia dos crimes, quanto no das ameaças, ele estava em casa. De qualquer modo, bem pode acontecer de a gangue estar usando meu pai como escudo dentro da corporação, mantendo o velho...
Ernesto fez um gesto para interromper. E disse:
— Não tire conclusões apressadas. Ainda que a voz seja do policial, mesmo assim é possível que ele tenha usado as ameaças como artifício para protegê-lo dos verdadeiros assassinos e traficantes. Neste caso, seu pai passaria a ser mentor de um ato positivo e não negativo, tendo em vista, por exemplo, que os jovens não atendem os pais, como no caso do Wilsinho aqui presente. Pelo que entendi, vocês só vão correr algum risco se mexerem com os criminosos. Então, é bom deixar que a polícia resolva os crimes. Comprar drogas, nunca mais.
Wilsinho sentiu-se na obrigação de dizer a razão da compra. Em duas palavras, pôs Ernesto a par de tudo, asseverando que fora estultícia o que fizera. Não iria cair noutra.
Ernesto ainda deu mais um conselho:
— Como tudo leva a crer, conforme me disseram ontem o seu administrador e o seu ex-patrão, o Teo vai assinar um bom contrato. Aproveitem para mudar com a família para um bairro melhor, fugindo dos marginais. Essa não é uma idéia que vocês não teriam. O que estou dizendo é que não hesitem. Principalmente, a família de Rosinha deve ser resguardada. Pensem muito nisso. Agora já estou precisando ir.
Rosinha ainda deu um último dedinho de prosa:
— Minha mãe não veio ajudar hoje. Ficou cansada com a festa para o Teo. Durante a semana, ela prometeu vir umas duas ou três vezes.
Um aperto de mão em cada jovem foi a despedida do professor, acrescentando para os rapazes:
— Bastante juízo, hem?!
— Muito obrigado, mestre.
Wilsinho foi mais ousado:
— O senhor também.
A brincadeira teve o condão de desanuviar o clima.



24. NA INTIMIDADE DO CASAL

Vamos surpreender Rosinha e Teotônio nas dependências do clube. Durante a viagem de táxi, permaneceram calados, de mãos dadas. Sentiam as vibrações um do outro e percebiam que algo deveriam decidir de muito importante.
Somente quando visitavam a biblioteca, onde havia apenas dois leitores distraídos, é que puderam ganhar uns momentos de paz, dado que, por onde andassem, sempre havia quem quisesse autógrafos ou posar para fotos.
— Querida, fiquei o tempo todo preocupado com o que Ernesto nos disse.
— Eu também.
— Acho que ele tem razão. Você tem visto como sou assediado.
— Até demais, principalmente pelas sirigaitas...
— Nada de cena de ciúmes, por favor.
— Se fosse comigo...
Teotônio, discretamente, puxou a namorada e lhe deu um beijinho nos lábios. Queria fazê-la calar-se.
— O professor pediu para tirá-la daquele bairro onde moramos. Ele sabe que os vizinhos são bem pobres, quase tanto quanto os favelados. Quando eu estiver ganhando mais dinheiro, posso vir a ser alvo de seqüestro. Você também.
— Eu não estava querendo admitir isso. Vejo que você está com os mesmos temores que eu.
— Existe outra coisa que me está metendo medo: a vingança que o Geraldo pode tentar contra os colegas, o que vai atingir meu irmão diretamente. Se ele cismar de contar aos traficantes que o Wilsinho está metido numa investigação, aí a coisa vai ficar preta.
— Você acha que ele vai querer perder a patota?
— Tenho a certeza de que alguma coisa ele vai tentar para revide.
— Parece que as coisas estão piores do que eu estava imaginando.
— Querida, a gente precisa tomar cuidado. E se meu pai estiver comandando uma gangue de assassinos, sem saber? E se estiver sabendo, não é pior ainda?
— Você não pode julgar seu pai.
— Está na Bíblia, eu sei. Todos nós precisamos honrar nosso pai e nossa mãe. Mas não podemos colocar uma venda nos olhos. O Cabo Farias é a pessoa que me agarrou naquela noite. E quem terá eliminado os bandidos suspeitos da chacina? Todos atribuem os crimes a uma guerra de traficantes. Mas qual o interesse dos policiais em me fazer ficar calado? Só se eles estão dando proteção ao tráfico. Talvez possam estar até mesmo...
— Como disse o professor, é melhor não ir longe demais nas conclusões.
— Concordo, mas é que todos os meus raciocínios me levam a deduzir que a mudança é urgente. O pior é que não tenho o dinheiro já.
— Quem poderia emprestar?
— Só o meu ex-patrão, o Doutor Rosalvo. No Renildo não posso nem pensar. Este vive de expedientes e está contando com o dinheiro que vai poder ganhar comigo.
— E os seus novos patrões, aqui do clube?
— Quem sabe eles me adiantem algum, assim que assinar o novo contrato.
— Não dá para acrescentar o aluguel de um apartamento aqui perto? Você poderia trazer sua família.
— Não estou preocupado com meu pai ou com minha mãe. Só se eu viesse morar com meu irmão. Afinal, ele também está vinculado ao clube.
— O seu irmão iria ser um peso para você. Pense bem.
— Vamos dizer que eu venha com minha família. E o seu pessoal?
— Nós não nos sentimos ameaçados. O Renato já foi morto. Quem mais iria interessar aos bandidos?
— E o seqüestro de que eu falei?
— Só depois que você tivesse muito dinheiro.
— Querida, e se a gente se casasse?
— Você está me pedindo?
— Se a gente se gosta, é o mais certo a fazer.
— Eu gosto de você e penso que vamos terminar casando mesmo. Mas eu queria que tudo fosse abençoado por Deus...
— Com vestido de noiva e festa para as famílias e amigos...
— É meu sonho de menina.
— Posso colocar uma aliança no seu dedo direito?
— Você vai conversar com minha mãe?
— Eu vou.
— Mas nem maiores nós somos...
— Que é que tem?! Os nossos pais não vão deixar de assinar a permissão.
Rosinha não se conteve. Levantou-se da cadeira, sentou-se no colo do moço e trocaram um profundo beijo, cheio de sensações novas para ambos.
Ainda fremente de amor, Teotônio sussurrou algo no ouvido da mocinha, que respondeu com bastante firmeza:
— Eu quero casar-me virgem.
Teotônio surpreendeu-se com tal reação e não conseguiu dizer nada. Esperou que Rosinha saísse de seu colo, o que já havia chamado a atenção dos dois leitores, e pediu que ela o perdoasse:
— Eu estava sugerindo para depois do noivado.
— E eu só vou querer depois do sacramento.
Ao saírem, estavam compenetrados de que haveriam de unir-se bem antes do que haviam imaginado.



25. ROSINHA SE CONFESSA

Na quarta-feira seguinte, tendo faltado ao trabalho, Rosinha desejou conversar com o Padre Fulgêncio. Aquela solicitação do namorado ao pé do ouvido estava a bailar em seu cérebro, sugerindo muitos pensamentos e vários sentimentos.
Esperou que a missa chegasse ao fim e foi à sacristia.
Enquanto Fulgêncio retirava os paramentos e dava instruções aos coroinhas e ao sacristão, Rosinha buscava esclarecer as idéias na cabeça, desejando ser o mais precisa possível.
Após se retirarem os coadjuvantes, o padre se dirigiu à mocinha:
— Deve ser muito sério o que você tem para falar, porque está procurando-me em momento bastante inusitado.
— Padre, eu gostaria de seus conselhos. Aliás, se o senhor quiser marcar outra hora, eu voltarei mais tarde.
— Como tenho mais uma missa marcada, não vou tomar minha refeição matinal. Por isso, disponho de meia hora. É suficiente para você?
— Acho que sim.
— Você deseja ouvir o que tenho a falar como amigo ou prefere ouvir o sacerdote. Neste caso, é como se se confessasse. Tudo quanto disser trancarei a sete chaves dentro do coração.
— Talvez eu venha a precisar de sua bênção e do perdão de Deus.
— Então vou colocar a estola. Você pode se ajoelhar neste genuflexório que eu uso para orar.
Fulgêncio puxou uma cadeira e a pôs de forma a ficar de lado para a Rosinha, podendo ver-lhe o rosto e as reações apenas com o canto dos olhos.
Após o ato de contrição, que Rosinha sabia de cor, Fulgêncio perguntou:
— Há quanto tempo você não se confessa?
— Desde a missa de sétimo dia de meu irmão.
— Quer contar os seus pecados?
— Tenho sentido muita raiva contra os assassinos.
— Você sabe que a justiça de Deus não falha, não é?
— Sei e confio nela. A fraqueza é toda minha.
— Você tem rezado pela alma do Renato?
— Tenho, sim. Principalmente depois que fiquei sabendo que ele está bem, de acordo com a mensagem que transmitiu no centro espírita, conforme o senhor sugeriu.
— Fiquei sabendo. Foi uma bela página cheia de bons sentimentos. Quando você acha que irá vencer o sentimento de vingança?
Rosinha ficou com vontade de falar a respeito das desconfianças de Teotônio relativas ao Cabo Farias, entretanto, para não perder muito tempo com outros assuntos, passou ex abrupto para o que a levara à igreja:
— Acredito que quando resolver o problema de meu namoro.
— É essa a sua preocupação?
— Sim. Eu falei para o Teo que queria casar virgem. Ele disse que vai pedir minha mão a minha mãe neste fim de semana. Como o senhor sabe, os noivos tomam certas liberdades bem mais ousadas. O senhor me entende. Aí, pode acontecer de a gente não ser suficientemente forte para não cair em tentação. Eu tenho medo de pecar, atendendo ao chamado da natureza.
— Querida, você não deve preocupar-se com isso. Se vocês se amam e estão planejando casar-se, eu recomendo que satisfaçam os desejos carnais, para que o seu noivo não caia nas garras de alguma mulher sem escrúpulos morais. Ele também pode buscar por prostitutas e acabar com alguma doença venérea e até mesmo com AIDS.
— A igreja aprova essas relações pré-nupciais, padre?
— A igreja não pode desaprovar o amor mais puro que brota dos corações juvenis. Eu recomendo, particularmente, que não mantenham vida marital, ou seja, como se estivessem casados. Vocês ainda não estão preparados para criar filhos. Assim, Teotônio poderá firmar-se como jogador profissional, ficando com a mente menos cheia de idéias libidinosas. Vocês são inteligentes e vão resolver esse tipo de problema com facilidade.
— Mas não estaremos cometendo um pecado mortal?
— Minha filha, eu raciocino assim: quem passou pelo sacramento do matrimônio pratica os atos sexuais sem pecado. Caso contrário, não cumpririam a palavra do Senhor: cresçam e multipliquem-se. Ora, quem não se casou diante do altar, faz o mesmo, em todos os sentidos. Por que uns estão pecando e outros, não? Você já fez as contas de quantas pessoas existem no mundo que não são católicas? Será que Deus vai mandá-las todas para o inferno? Seria justo? Eu sei que muitos companheiros meus não diriam nada do que estou dizendo. Mas eu estou considerando somente a circunstância de um casalzinho que se ama muito. Só isto já é uma bênção. Por outro lado, quantas colegas você tem que, aos dezesseis anos, ainda se conservam puras fisicamente falando? Quer dizer que deverão ser expulsas do seio da igreja? Bem pouca gente restaria para acompanhar as missas. Nem mesmo quando estiverem velhas, porque foram banidas. Você gostaria de perguntar mais alguma coisa?
— Vou ter de pensar muito a respeito de suas palavras, antes de tomar uma deliberação da qual não existe volta.
— Como penitência, reze três padres-nossos e três ave-marias. Pode rezar o Credo.
Rosinha cumpriu a tarefa rapidamente, despediu-se e foi de volta para a nave da igreja, desincumbir-se da obrigação.



26. GERALDO APRONTA MAIS UMA

Geraldo só apareceu na escola na quinta-feira, o que estava deixando a turma preocupada. Voltou com cara de poucos amigos, calado, sem responder a nenhum cumprimento.
Wilsinho, que notara que a filha da funcionária também não comparecera, aproximara-se de uma outra servente, estranhando que ela estivesse sozinha.
— A Maria entrou em licença. Pegou mais de um mês. Ela estava falando que o Estado paga pouco mas, se todos fizerem como ela, ninguém vai poder mais pedir aumento. Essa gente passa mais tempo em casa do que no trabalho.
A reclamação teria ido mais longe, contudo, Wilsinho arrumara uma desculpa e fora encontrar-se com o grupo.
Na hora do recreio, Geraldo ficou conversando com as colegas, com a desculpa de que precisava anotar a matéria que havia perdido. Aluno pouco exemplar, foi-lhe preciso prometer que cuidaria de devolver os cadernos na manhã seguinte. O sinal de entrada surpreendeu-o ainda na sala de aula, copiando a matéria.
A classe, no entanto, não entrou, porque havia faltado a professora de Geografia.
O inspetor de alunos foi verificar o que fazia Geraldo e, diante da explicação de que precisava recuperar os pontos dados nos três dias anteriores, permitiu que ali ficasse.
A Wilsinho nada passou despercebido. Em conversa com os colegas, foi indicado para representá-los junto ao dissidente.
— Está bem. Vou ver se ele está muito ou pouco aborrecido.
Como não quisesse fazer nada sem autorização, solicitou ao bedel que lhe permitisse realizar as lições de casa na classe, porque à tarde iria treinar. Com a anuência do funcionário, foi enfrentar o rancor do colega.
Foi Geraldo quem fez a primeira interpelação:
— Vocês ficaram contentes com o que fizeram?
Wilsinho não queria dar arrogantemente a impressão de que fora para o bem dele e disfarçou:
— Não foi só você quem enfrentou os seus pais. Eu caí na asneira de mostrar os papelotes ao meu e faltou muito pouco pra eu entrar na dança.
— Eu apanhei de verdade. Queriam me internar como se eu fosse um viciado. O que é que vocês aprontaram para que eles ficassem tão furiosos?
— Fui eu que conversei com seus pais. Simplesmente, eu disse que nós tínhamos ido comprar a droga e que todos achamos que não devíamos experimentar. Eu disse que só você insistiu. A conversa morreu aí.
— Você está sendo sincero?
— Juro por Deus!
— Você tem a mania de jurar. O seu juramento não vale.
— Acredite no que quiser. A verdade é que a trempa ficou com medo de que você procurasse os traficantes para se vingar.
— Pois eu procurei mesmo. Ontem de tarde, quando a vigilância em casa diminuiu, dei uma escapada e fui até a casa das drogas no Corisco. E contei que vocês iam avisar a polícia, já que o seu pai é meganha.
— Você foi ontem lá?
— Fui. Quer que eu jure?
— Não precisa.
— Agora vocês vão ter de se entender com os caras.
— Você não acha que enfrentar os pais, que amam a gente, é bem diferente do que enfrentar bandidos?
— Bandidos enfrentando bandidos.
— É assim que você vê seus colegas de oito anos?
— E o que vocês aprontaram comigo? Já pensou que eu poderia ter sido mandado para fora de casa? A minha vida estava perdida.
— Geraldo, talvez a gente não tenha pensado direito na hora. Mas o que nós fizemos foi com a intenção de que você não caísse nas garras da droga. Você já se esqueceu das lições do Professor de Ciências?
— Por que vocês não conversaram mais comigo?
— Foi você que foi embora xingando Deus e todo o mundo.
— Vocês estavam me tratando feito criança.
— Colocando dessa forma, você faz a gente pensar que nós é que estávamos errados. Se você quiser saber, nós estávamos tratando de ajudá-lo. Se o inferno está cheio de boas intenções, acrescente mais uma.
A palavra inferno repercutiu na alma de ambos. Por cerca de dez minutos ficaram absortos, dando a impressão de estarem entretidos com os temas das aulas.
De repente, Wilsinho deu um tapa na testa. Havia descoberto algo muito importante. Levantou-se e foi dar um abraço no companheiro, dizendo-lhe com a voz trêmula:
— Seu mentiroso. Você não foi a lugar nenhum. A traficante não está em casa desde a segunda-feira. Você está querendo nos dar uma lição.
Geraldo retribuiu ao abraço e pediu ao amigo:
— Vamos ver se os outros se assustam. Essa vai ser a minha vingança. Eu quero ver se eles suam frio.
— Nem tanto. Eu acho que eles não merecem isso. Basta que eu tenha passado por isso.
— Então, vamos dar cinco minutos e depois a gente alivia a barra.
— Só cinco minutos.
Ao término da aula vaga, já todos conversavam desanuviados. Haviam refeito os elos rompidos da amizade.



27. A VIDA ESTABILIZA-SE

Na sexta-feira, Teotônio foi chamado pelos diretores do clube para leitura do novo contrato. Também compareceram Renildo e Arnaldo, este decidido a fazer o papel do Doutor Rosalvo, porque não haveria como justificar a presença do advogado, ainda mais que conhecido representante de um clube rival.
Surpresa das surpresas, todos acharam que as cláusulas eram muito favoráveis ao jovem atacante, principalmente o que o dirigente chamou de luvas, justificando que era preciso dar condições de moradia mais tranqüila do que a proximidade da favela.
O tópico que representava maior ônus para o atleta era o de que o contrato se estendia por cinco anos. Renildo fez questão de acrescentar que haveria renegociação a cada aniversário do registro, quando poderiam ser reajustados os vencimentos, por força da valorização do que chamou de passe.
Mantendo o clube o direito de ajuizar sobre as pretensões, podendo negociar com outro clube, assinaram as cópias e mandaram para registro, não sem fazer constar que, ao término dos cinco anos, Teotônio ficaria livre e desimpedido de qualquer vínculo com a empresa.
Mais tarde, lamentaria Rosalvo que não tivesse sido consultado, principalmente porque desejava fazer uma proposta parecida para transferência do rapaz. De qualquer modo, não reprovou o documento.
Arnaldo ficou com o encargo de administrar o dinheiro a ser depositado numa conta conjunta com o filho. Sabia da intenção dele de se mudar para perto da sede do clube e, tendo achado que era da vontade dos dirigentes, não colocou obstáculo algum à realização do objetivo.
Antes de se apertarem as mãos, Teotônio saiu-se com esta:
— Quanto ao meu irmão, não seria útil estabelecer um vínculo empregatício, com carteira assinada, ainda que o salário não seja significativo?
O presidente do clube fez um sinal para o diretor de esportes e este apresentou a minuta de um contrato cujas lacunas deveriam ser preenchidas pelo pai do garoto. E explicou:
— Wilsinho está treinando bem e logo será inscrito na categoria infantil. Se for convocado para a seleção brasileira Sub-17, iremos formalizar um contrato. Por enquanto, vamos dar-lhe apenas uma ajuda de custo, que bastará para mantê-lo estudando sem preocupações. Aliás, ele não pode deixar a escola, porque gostaríamos que concluísse, ao menos, o ensino fundamental.
Arnaldo defendeu o filho:
— Aquele lá sempre desejou entrar para a Academia de Polícia. Quer ser investigador, no mínimo. Não creio que o futebol irá atraí-lo por muito tempo, a não ser que se destaque e venha a ser necessário para a equipe. Vamos preencher esta folha e apresentar os documentos pedidos.
Renildo aproveitou para fazer uma solicitação específica:
— É preciso que se procedam os exames médicos. Estando tudo bem, sempre haverá necessidade da cobertura de uma apólice de seguro. É uma garantia para vocês e para a família do menino.
Sorrindo, o presidente escarneceu do agente:
— Se você não nos avisa, nós nem iríamos pensar nisso.
— Vamos ver. Vamos ver.

À noite, para comemorar, foram as duas famílias amigas jantar numa cantina do outro lado da cidade. No bolso, Teotônio carregava duas alianças.



28. O JANTAR

As duas famílias iam em carros separados. Haviam marcado para encontrarem-se à porta do restaurante, de forma que Teotônio pôde palestrar com os pais a respeito de sua intenção de pedir a mão de Rosinha.
— O senhor é que deverá conversar com Dona Flávia, dizer que estou muito bem empregado, que tenho futuro alvissareiro...
Wilsinho não resistiu:
— Mas esse futuro não é mais como advogado. Por que fica gastando seu português?!...
Teotônio revidou:
— Em primeiro lugar, fedelho, o futebol vai servir para me dar condições de cursar a faculdade sem preocupação, podendo terminar o curso em mais de seis ou sete anos. Em segundo lugar, a expressão correta é gastar o latim, que eu acho que a sua ignorância nem lhe permite saber o que seja. Em terceiro lugar, por que você não vigia o uso que faz do idioma pátrio para evitar as cacofonias?!...
Dona Vilma, coitada, sentia-se meio ultrajada com a facilidade de expressão dos filhos, contudo, saiu-se com esta:
— Se vocês derem pontapés nos adversários como estão dando aqui, não haverá juiz que apite as faltas...
Arnaldo pôs ordem na conversa:
— Quer dizer, Teo, que eu devo pedir a mão da Rosinha à moda antiga?
— Isso mesmo.
— Penso que você tenha providenciado as alianças.
— Estão no meu bolso mas não vou mostrar agora, para não dar azar.
Wilsinho quis provocar de novo mas não foi até o fim da fala:
— Não me diga que essa superstição...
— Cala a boca, maninho, que o assunto ainda não chegou à cozinha.
— Por enquanto está na pocilga...
Arnaldo fingiu ficar bravo:
— Se você me chamar de porco de novo, vai apanhar. Porco é o palmeirense do Cabo Farias.
A menção do nome fez que os jovens se calassem. Teotônio bem desejou aproveitar a deixa para denunciar o soldado, porém, percebeu a tempo que isso poderia pôr a festa de noivado de ponta-cabeça.
O restante do trajeto se fez em silêncio, como se aquele nome também houvesse influenciado no ânimo do casal.
Quando estacionaram na frente da cantina, logo se depararam com a família de Dona Flávia, todos, como disse Wilsinho, na estica.
Teotônio cumprimentou a futura sogra, o tio, a tia e a prima de Rosinha. Em seguida, levando a mocinha pela mão, comandou a entrada, buscando o maître, que encaminharia o grupo para uma sala reservada, longe do bulício do salão principal. Mesmo assim, recebeu alguns cumprimentos, tendo de dar autógrafos e posar para fotografias.
Instalados confortavelmente, receberam os dois garçons encarregados dos aperitivos e das bebidas. Teotônio fez questão de bater com um talher no copo, pedindo silêncio e atenção. Disse algumas palavras:
— Esta noite é muito especial para mim. Estamos comemorando o meu novo contrato, mas eu fiz questão de que aqui estivessem só as pessoas da minha família. Vou fazer um brinde para festejar a minha boa sorte, ao mesmo tempo que agradeço a Deus estarmos todos com saúde, felizes e alegres neste dia. Acredito que até os espíritos de nossos parentes estejam brindando conosco.
Emocionados, sem estardalhaço, tocaram os copos e umedeceram os lábios.
Teotônio retomou:
— Meu pai tem algo muito importante para dizer.
Arnaldo se levantou, pigarreou e assim se expressou:
— Vejo que o Teo escondeu de todo o mundo o verdadeiro motivo desta reunião. Vou ser direto e franco. Dona Flávia, a senhora concede a mão de sua filha para o meu filho?
Tomada de surpresa, com os pensamentos e as emoções baralhando no cérebro, a pobre viúva tartamudeou:
— Se for da vontade dela, concedo.
Rosinha estava pálida, demonstrando que Teotônio não a havia prevenido.
Arnaldo prosseguiu:
— Rosinha, você nos deixaria muito felizes se aceitasse meu filho como marido.
A moça apenas fez um gesto afirmativo, apertando a mão do rapaz, dando-lhe com o pé nas pernas, debaixo da mesa.
Teotônio cochichou-lhe ao ouvido:
— Ainda bem que você joga no meu time.
Arnaldo continuou:
— Então, eu peço ao Teo que coloque no dedo da noiva a aliança que comprou escondido.
Era uma bela peça de ouro, trazendo o nome Rosinha impresso do lado interno.
Quando o rapaz foi enfiar o anel no dedo anular da mão direita da noiva, esta deu um repelão, não permitindo que a jóia atingisse a base do dedo.
Wilsinho é que se divertia, acabando por exclamar:
— Essa daí, maninho, vai te dar bastante trabalho!
Sem dar importância ao irmão, o noivo entregou a outra aliança para que Rosinha lhe pusesse no dedo. Aí fez questão de que o anel fosse até o fim, apregoando:
— A minha vontade é ser todinho da mulher da minha vida.
Um beijo formal selou o contrato festivo, passando a conversa a girar em torno de datas, de cerimônias, de proclamas, de moradias. Houve ainda um telefonema para o celular recentemente adquirido pelo esportista, tendo este ficado bastante feliz por ser cumprimentado pelo Professor Ernesto, a quem havia avisado a respeito da festa, do noivado e da necessária falta à escola.



29. A RODA DOS JOVENS

Como a Teotônio o técnico havia concedido entrar na concentração às vinte e uma horas, mal o jantar se encerrou, ele seguiu para o hotel de táxi.
Rosinha havia recebido dele a recomendação para que não usasse a aliança na rua, ao que respondera:
— E você deve usá-la sempre, para afugentar as assanhadas.
Lá no íntimo, sabia a moça que o efeito do uso poderia ser o contrário. Também tinha a convicção de que bem poderiam arrancar-lha do dedo, conforme as assustadoras histórias, segundo as quais muitos tinham dedos decepados, quando os ladrões não conseguiam tirar o ouro da mão das vítimas.
A manhã seguinte encontrou-a de aliança, que beijou em segredo, sem que a prima, que dormia no mesmo quarto, a surpreendesse. Lembrava-se do que lhe dissera o noivo:
— Quando assinalar os gols, vou beijar o anel para declarar-lhe todo o meu amor. Você vai assistir pela televisão.
Com essas lembranças e outros devaneios, passou a manhã de sábado sem ser incomodada pelos familiares. Todos lhe respeitaram os sonhos, admirando-lhe ou invejando-lhe a felicidade. O que não sabiam é que lhe crescia a preocupação com a perda da virgindade. Lembrava-se das palavras de Fulgêncio e mais ainda ficava macambúzia. O pessoal da casa interpretava o cenho franzido como de pura saudade do noivo.
Lembrou-se Rosinha de que à tarde poderia consultar Vieira, o mentor da casa espírita, senhor de respeito e conhecimento. Queria saber como é que o Espiritismo encarava a sua situação.
Como a prima não aceitou o convite para acompanhá-la ao centro, logo depois do almoço, para lá se dirigiu, tendo deixado a aliança em casa.
Vieira não se encontrava mas Ernesto preparava o salão para receber os jovens da reunião de estudos doutrinários.
— Você poderá ficar conosco, querida, até que chegue o nosso presidente.
— Não vou atrapalhar?
— Em absoluto. Hoje vamos tratar de um tema que interessa muito à juventude: a virgindade e as relações sexuais entre os jovens.
Rosinha sentiu-se corar. Parecia que fora encaminhada para lá por seus amigos e protetores da espiritualidade.
Prosseguiu o professor:
— Você pode folhear esta obra psicografada pelo Chico.
Passou-lhe um exemplar do livro Vida e Sexo, da autoria espiritual de Emmanuel.
Rosinha deixou-se entreter com alguns trechos, sem fixar atenção no sentido. Meditava a respeito da falta de imagens de santos, da inexistência de altar, recordando-se de que ouvira que, nos centros espíritas, não se realizavam cerimônias de batizado, crisma, comunhão ou casamento. Sabia que visitavam os doentes e oravam por eles, sem crucifixos ou hóstias consagradas. No canto do palco, sobre a pequena mesa, repousavam alguns copos e uma jarra. Era, segundo pensou, a água benta dos espíritas. Ia por aí, quando chegaram em bando os rapazes e moças entre os quinze e os dezoito anos.
Verificada a presença de todos, Ernesto expôs o tema e retirou-se, explicando que dava oportunidade a que conversassem livremente. Rosinha pensou que o professor não queria conhecer os problemas dos alunos, matéria que lhe traria preocupação.
A turma, acostumada a discutir de forma pessoal as questões relacionadas à vida privada, logo se pôs à vontade, ignorando a presença da adventícia.
Disse o primeiro:
— Eu não entendo a razão de haver uma pele no aparelho genital feminino, como se fosse uma proteção, mas que sabemos que pode causar problemas com infeções, caso ali se alojem fungos, bactérias ou microorganismos. Vocês sabiam que, na Roma antiga, cabia a um sacerdote utilizar o que chamavam de falo para romper o hímen das mocinhas? Segundo o programa a que assisti na televisão, assim se evitava o trauma do rompimento pelo marido na noite de núpcias, podendo as mulheres iniciar a vida sexual com o prazer do orgasmo.
Rosinha acompanhou o discurso com a máxima atenção. Não esperava que o nível das informações fosse tão elevado.
Outra jovem aduziu:
— Nos países nórdicos, Dinamarca, Suécia, Noruega, e em outras partes do mundo, as virgens vão a festas apenas para serem defloradas por alguém que as atraia. Depois disso, voltam para casa e nunca mais vêem o rapaz. Eu também vi isso num filme. E sabem do que mais?! Mesmo estando noivas e até casadas, caso se sintam cortejadas por alguém, não hesitam em entregar-se, cientes de estarem mantendo o amor pelos maridos. De resto, a mesma liberdade têm eles. É o fim dos ciúmes.
Uma outra acrescentou:
— Aqui no Brasil, não são raros os pais e os irmãos que seduzem as menores. Mas esse processo é altamente estressante, causando problemas psicológicos para o resto da vida. Se a polícia for acionada, tem obrigação de prender o criminoso. O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que a gente não pode importar soluções de outras culturas, sejam antigas, sejam atuais. Entretanto, não pensem que eu esteja sendo careta. O que valeu para minha avó, não valeu para minha mãe e muito menos para mim. Minha avó casou virgem, de véu e grinalda. Minha mãe, apesar do véu e da grinalda, me levava no ventre. Eu, se vocês não se ofenderem com o que vou dizer, faz tempo que namoro. Foi meu primeiro namorado que me desvirginou. Não estou dizendo que me desonrou. Dei a ele o que era meu. E tenho dado aos outros namorados. Quando me casar, se me casar, porque a minha fama é ruim, não vou fazer como aquelas que se permitem agir fora do leito matrimonial. Se me casar, vai ser por amor. Aí vou respeitar o homem da minha vida, o pai dos meus filhos.
Naquele momento, Vieira chegou, cumprimentou a mocidade reunida e chamou Rosinha, avisado que fora por Ernesto que ela esperava por ele.
— Senhor Vieira, só quero fazer-lhe uma pergunta.
— Se eu for capaz de esclarecer...
— Como é que os espíritas encaram a união sexual antes ou fora do casamento?
— Com a maior naturalidade. Se as pessoas se amam, não precisam estar casadas. No entanto, nós, espíritas, devemos estar vigilantes para não magoar nenhuma pessoa, seja o cônjuge, sejam os pais, sejam as pessoas que contam conosco para uma vida mais próspera espiritualmente falando, como os nossos filhos. Se da união momentânea se produzir um rebento, caso os pais se separem, a mãe haverá de arcar com a responsabilidade de criar o filho sozinha. A falta de um pai tem deixado muitas crianças verdadeiramente órfãs, pois a natureza nos prescreve que tenhamos um pai e uma mãe. Moralmente, é preciso vigiar para que as conseqüências não nos afetem mais tarde.
— E entre noivos?
— Entre noivos, se não houver outros interesses em jogo, as relações sexuais nada mais são do que o erotismo posto em prática e o erotismo é uma força da natureza. Se você acreditar que foi Deus quem deu origem a tudo, vai verificar que o desenvolvimento das espécies nos deu uma dupla responsabilidade: o instinto e a inteligência. Sendo assim, sempre recomendamos que os apelos carnais sejam analisados, contornando-se os problemas inerentes ao desvairamento das paixões através de medidas preventivas, como o uso de camisinha, por exemplo, o que, como você sabe, é proibido pela Igreja Católica.
Rosinha se lembrou das palavras de Fulgêncio mas não as revelou a Vieira. Ao contrário, foi suficientemente hábil para perguntar:
— Não existem pecados mortais para os espíritas?
— Como lhe disse, se ninguém for prejudicado, nem a consciência da própria pessoa, não há razão para temer nenhuma estadia nas trevas do Umbral por causa de algumas prazerosas contrações musculares, sem querer ser desrespeitoso.
— Muito obrigado. Seus esclarecimentos foram preciosos.

Em casa, a mocinha precisou de algumas horas para colocar de volta a aliança, desta feita, escondida dos familiares, no dedo anular da mão esquerda.



30. CONSEQÜÊNCIAS DA FAMA

Teotônio entrou em campo no domingo precedido pelo alarde que os meios de comunicação de massa fizeram a respeito do contrato.
Durante o jogo, teve ocasião de beijar a aliança por três vezes, repetindo para as câmaras da televisão:
— Rosinha, eu te amo!
Apesar de sua atuação brilhante, ainda assim o jogo terminou empatado, possibilitando ao adversário manter-se na liderança do campeonato. Mas o desempenho do jovem atleta foi elogiado por todos os comentaristas.
Enquanto os jogadores, depois de se banharem e de se trocarem, esperavam que a multidão fora do estádio se dispersasse, Arnaldo constatou que a rua em que morava se enchia de gente, muitos com faixas e cartazes alusivos ao vizinho preeminente.
Dona Vilma estava assustada com o movimento. Não fora o marido militar e ela se sentiria ameaçada.
— Querida, que você acha de eu ligar para o Teo, para avisar sobre o que está acontecendo?
— Se ele chegar sem saber, pode ficar aborrecido.
Wilsinho foi mais contundente:
— O Teo vai chegar muito cansado. Se for dar atenção ao povo, vai acabar prejudicando a forma física que tem conquistado com tanto esforço. Não é hora para grandes festas, afinal nem ganharam o jogo.
Arnaldo, que se mantivera distraído, acabou por exclamar:
— Tenho uma idéia. Vou pedir que dê uma entrevista em que afirme que vai dormir no hotel da concentração. Ele vai ter de arrumar uma desculpa.
Dito e feito. Dez minutos depois, os microfones abertos dos jornalistas da rádio e da televisão transmitiram a informação evasiva. A vizinhança começou até uma pequena vaia, mas ninguém da família pôs o nariz para fora. O plano deu certo, de forma que logo a rua estava quase deserta.
Quando o pai voltou a ligar para o filho, recebeu dele a notícia de que Renildo havia aplaudido a idéia e providenciado um quarto onde pudesse passar a noite sossegado. Isto decepcionou o casal, que havia programado um jantar de gala, inclusive para a noiva e família.
Assim que se viu instalado confortavelmente, Teotônio sondou o gerente quanto a trazer a noiva para passar a noite ali. Mostrou a aliança, fazendo questão de evidenciar o nome gravado no interior.
— O senhor não precisa justificar-se. Só poderá ocorrer algum problema se a jovem for menor de idade.
Com um gesto desanimado, o craque explicou:
— Somos os dois menores de idade, pois ainda não completei dezoito anos.
— Nesse caso, eu não posso fazer nada, a não ser que venham os pais dela...
— Muito obrigado. Vou recolher-me. É possível que desça para jantar. O restaurante fica aberto até que horas?
— Fecha às onze mas a boate fica aberta até às quatro.
Teotônio bateu uma alegre continência e buscou o refúgio do quarto, onde desejava assistir aos programas esportivos. Queria ver na tela como saíram as suas jogadas, o que mais não fazia do que acatar a recomendação do técnico, que lhe afirmava que muitos defeitos podem ser analisados para serem corrigidos.
Enquanto o programa esportivo não se iniciava, retirou da mochila as roupas que levara para a concentração, achando um conjunto de camisa e calça sem uso. Colocou o pijama sobre a cama e, ainda vestido, recostou-se na cabeceira do leito, apoiando-se nos travesseiros, pondo-se a ver a programação variada de domingo à noite.
Acordou às quinze para as onze, com dor no pescoço. Ligou para a recepção do hotel, tendo sido avisado que poderia descer para jantar. A cozinha ficaria aberta para ele. Fez o pedido, coisa pouca, de forma que poderia encontrar a refeição pronta quando descesse.
Sossegado e feliz, tomou um banho rápido, perfumou-se, vestiu a roupa limpa, penteou o cabelo e desceu.
O salão abrigava umas vinte mesas e estava quase vazio. Apenas três casais conversavam diante das taças e das garrafas quase vazias. Duas aparentes prostitutas notaram que o rapaz estava sozinho, reconhecendo-o desde logo. Aproximaram-se de sua mesa e, sem cerimônia, sentaram-se, aconchegando as cadeiras junto à do cliente, uma de cada lado.
— Meu bem, você está com fominha, está? — foi perguntando a da direita, enquanto abria o guardanapo de pano e o colocava sobre o colo do moço, aproveitando para lhe fazer uma carícia.
Teotônio reagiu como se um zagueiro lhe desse um carrinho. Pegou o pulso da atrevida e o colocou sobre a mesa.
— Nossa, que bruto!
Chegava o garçom com a bandeja, percebendo logo que as raparigas estavam aborrecendo o freguês. Com um gesto, expulsou-as dali, não conseguindo impedir que a da esquerda se achegasse ao ouvido do moço, enquanto lhe esfregava os seios no braço, dizendo-lhe baixinho:
— Se você gosta de gays, estamos aqui para servi-lo.
Saíram rebolando, deixando o moço meio alvoroçado, meio envergonhado.
— O senhor me desculpe, mas esses estão aguardando que a boate abra. Não são hóspedes do hotel. Está tudo aí?
Teotônio examinou as travessas: as batatas fritas, o macarrão ao sugo e o espinafre refogado estavam apetitosos.
— Traga uma água mineral sem gás, gelada, por favor.
Dois dos casais saíram enquanto comia. O terceiro esperou que terminasse a refeição e só então marido e mulher se aproximaram da mesa. Vinham cumprimentar o atleta, pedindo-lhe que autografasse a carta de vinhos que haviam surrupiado do restaurante.
Tendo sido a despesa registrada na conta relativa ao seu quarto, Teotônio desejou conhecer a boate. Não entrou mas da porta pôde perceber que havia alguns casais trocando carícias no meio do salão, ao som de um bolero vibrante de paixão. A escuridão do ambiente, o cheiro de cigarro, um forte perfume de produto de limpeza logo o afastaram dali, encontrando o porteiro, que lhe disse:
— O show vai começar à uma. Vale a pena. As garotas são da pesada.
— Muito obrigado. Se der, volto depois.
O que ele mais queria era ver-se longe dali. Apanhou a chave que deixara na recepção e entrou no elevador que o levaria ao quarto andar. Precisava pôr os pensamentos em ordem.
No corredor, esperavam por ele os mesmos que o assediaram no restaurante.
— Querido, você pensa que vai se livrar da gente assim? Vamos fazer a maior zorra no seu quarto.
Agarraram-no, pegaram a chave, abriram a porta e o empurraram com força para dentro.
Rápido, como se penetrasse na área para marcar gol, Teotônio correu para o banheiro, fechando a porta.
Os do lado de fora caçoavam e gritavam desaforos e palavrões. Pareciam fora de si.
“No mínimo, estão drogados” — refletia consigo o moço, enquanto teclava no celular o número de casa:
— Pai, estou preso no banheiro do hotel. Tem dois travestis no quarto. Estão doidões. Mande alguém que esteja aqui por perto.
— Desligue para eu poder avisar os companheiros. Daqui a cinco minutos, ligue de novo: a gente precisa manter o contato para você me pôr a par de tudo.
No quarto, começou uma cantoria. No primeiro momento, Teotônio pensou que eram os homossexuais; em seguida, caracterizou o vozerio como sendo o som da televisão ligada bem alto.
De fato, não demorou para o recepcionista do hotel receber uma reclamação. Chamou um boy e mandou averiguar. O rapazinho logo voltou, dizendo que o som da televisão estava muito alto.
Através do telefone, o responsável pelo plantão do hotel tentou entrar em contato com o hóspede, imaginando que se embebedara e que estivesse em plena orgia, conforme lhe revelava o garçom a respeito do sucedido no restaurante. Mas os chamados não foram respondidos.
Naquele momento, já se reuniam no saguão vários hóspedes, todos muito preocupados com o que pudesse estar acontecendo, principalmente porque foram informados que se tratava do craque do dia. Munidos de câmaras fotográficas e de vídeo, antegozavam a hora de surpreender o jovem em plena fuzarca.
Não podiam, porém, invadir o quarto sem a presença de autoridade policial. Quando estavam a providenciar a presença de um guarda da viatura que costumava estacionar nas imediações, surgiu o Cabo Farias com mais três soldados.
— Ainda bem que os senhores chegaram. Está havendo um problema...
— Fomos avisados pela vítima, que está fechada no banheiro. É bom todos ficarem aqui, porque são dois meliantes que estão promovendo a baderna. Só o gerente sobe com a chave para abrir a porta pra nós.
Um soldado ficou tomando conta do pessoal, enquanto subiam os outros dois pelas escadas, reservando Farias o elevador para si e para o gerente.
A ação de aprisionar os travestis foi rápida. Aberta a porta, encontravam-se os dois debaixo das cobertas, inteiramente nus. Farias reconheceu a dupla:
— Quer dizer que vocês estão com vontade de levar uma sova?
Acabava ali a loucura de ambos. O cabo era temido entre os marginais e dele se podia esperar que cumprisse a promessa.
— Vocês vão ficar quietinhas. Tratem de pôr os vestidos e de arrumar esta bagunça.
O gerente estava aflito:
— Pode deixar que eu mando vir a arrumadeira.
— Pode mandar vir para trocar a roupa de cama. Por enquanto, os companheiros vão dar uma busca em regra. Esses aí costumam andar armados.
Logo a procura redundou no achado de duas navalhas.
— Agora a coisa vai ficar mais feia ainda. O que vocês pretendiam fazer?
— O carinha nos esnobou.
— E daí? Vocês iam matá-lo? Iam mutilá-lo?
Não houve resposta.
Nisto Teotônio abriu a porta e deparou-se com a cena inusitada dos meliantes sendo submetidos à força policial.
Quis intervir:
— Por mim, eles podem ser soltos.
O gerente concordou:
— Por mim também.
O cabo dirigia a cena:
— Vocês não sabem o risco que o Teo correu. Se caísse nas mãos delas, poderia perder a vida. Mas eu compreendo que o hotel não queira nenhuma propaganda negativa. Também não é conveniente para a carreira do meu amigo que este caso se divulgue. Sendo assim, vou enquadrar essas duas por porte de arma branca e trottoir. O que vocês querem alegar em sua defesa?
Um dos travestis, com voz sumida, em tom másculo, resumiu o pensamento de ambos:
— Se vocês nos deixarem em liberdade, podem ficar seguros de que não vamos delatar ninguém aos jornais.
Farias cresceu para a figura descomposta do infeliz:
— E se vocês puserem a mínima palavra na imprensa, vão ter de enfrentar o Sargento Arnaldo, pai do nosso craque.
Por essa não esperavam os travestis.
O que se mantivera calado julgou que era hora de moderar a atitude:
— O Sargento Arnaldo é boa pessoa. Não merece que a gente ponha o filho dele na roda. Em nome de meu colega e no meu, eu peço perdão pelo acontecido.
Foram as últimas declarações, antes que fossem levados algemados para a viatura. Sem mais ameaças, foram soltos dez quarteirões adiante. Sabiam que haviam mexido com vespeiro.
O gerente sugeriu que Teotônio passasse para outro quarto no mesmo corredor, mas este preferiu pedir ao pai que o fosse buscar. A história de sua liberdade terminava melancolicamente.
Enquanto aguardavam a chegada do pai, Farias dispersou os curiosos, com a ajuda do gerente, afiançando que Teotônio estava bem e que estava repousando. Evitava-se assim que batessem alguma foto comprometedora, além dos flashes que haviam pipocado sobre os travestis cobertos por lençóis.
À uma da manhã, na mesma hora em que começava o show na boate, Teotônio, na escuridão do quarto, exausto, contava a sua aventura para o irmão.



31. VIDA NOVA

Teotônio dormiu bem, acordou tarde e logo despertou para um problema: a possibilidade de a sua história vazar para a imprensa.
Não vazou, apesar de algumas fotos dos travestis terem ido parar nas mãos de um repórter, que não quis pagar o preço pedido. Todavia, como repórter, cumpriu a obrigação de verificar junto ao recepcionista do hotel a veracidade da história.
— É verdade que o Teo sofreu um assédio durante o jantar, porém, o garçom expulsou os meliantes e a polícia, a nosso chamado, prendeu-os.
Com o nome do policial responsável, o jornalista procurou o Cabo Farias, encontrando-o de saída do plantão. Apesar disso, obteve uma declaração:
— Estávamos dando a nossa ronda, quando fomos avisados da perturbação da ordem. As meninas quiseram tirar proveito do dinheiro do jogador e, como este se recusou, elas quiseram dar-lhe uma curra. Mas o moço é sério e, pelo celular, acionou o pai, o Sargento Arnaldo, que logo providenciou a nossa presença.
— Quer dizer que os travestis foram recolhidos?
— Positivo. Lavramos o auto e aguardamos o despacho do delegado. Se você quer saber a minha opinião, não vai dar em nada, porque a família do Teo não quis prestar queixa contra os dois. Afinal de contas, não passou de um susto. Talvez até torçam por outro time.
O repórter concluiu que não valia a pena levar adiante o caso, mas, mesmo assim, redigiu simples nota, que o chefe da redação incluiu na edição da tarde, sem escândalo.
Enquanto isso, Renildo foi à casa do pupilo para verificar o que havia ocorrido, já que não o encontrou no hotel, tendo sido a conta paga.
Teotônio explicou:
— Só descansei um pouco e jantei. Depois meu pai foi buscar-me, que havia dois gays me estranhando.
— Pois bem, eu tenho três apartamentos mobiliados para você ver. Os dirigentes estão empenhados em que você saia deste bairro, tanto que os imóveis são de pessoas ligadas ao clube. Estou com as chaves. Vamos?
— Não vou sem a Rosinha. A gente tem de passar pelo emprego dela.
— Tudo bem.
Meia hora depois, estavam os três visitando o primeiro apartamento, do qual gostaram muito, achando, porém, que era grande demais.
Explicou Teotônio ao empresário:
— Nós estamos querendo casar dentro de três meses, durante as férias. Por isso, é bom que não venha ninguém morar conosco. Se houver mais de dois quartos, vou ter de trazer, no mínimo, meu irmão. E eu não quero. Até vou recomendar que ele fique morando nas dependências do clube, que é melhor do que em casa.
— E a escola?
— O Professor Ernesto sempre me disse que, se eu quisesse, ele me transferiria para uma escola da rede particular, onde ele dá aulas. Se eu me mudar logo, também vou ter de ir para outra escola; eu e Rosinha, naturalmente.
Renildo considerava justas as observações do rapaz:
— Você está pensando direito. E quanto ao emprego dela?
— Já avisei a minha futura sogra para passar por lá e pedir o aviso prévio. Não é uma questão de dinheiro, porque eu vou reservar uma quantia todo mês para cobrir a falta do pagamento. Aliás, eu prometi o dobro mas posso dar até três vezes.
Vistos os outros dois apartamentos, optaram de menor número de aposentos, mas bem mais confortável, com área de construção superior às dos demais.
Renildo convidou o casalzinho para almoçar na casa dele, convite que não foi aceito.
— Fica para outra oportunidade, disse Rosinha. Mas aceitamos que me leve até minha casa. Estou louca para contar as novidades para minha mãe.
Teotônio, entretanto, recusou a gentileza e achou melhor liberar o agente, para que providenciasse a respeito da aquisição da propriedade. Queria o moço conversar em particular com a noiva. Sentia como que um dever, uma obrigação, narrar-lhe todo o sucedido na noite anterior.
De qualquer modo, Renildo fez questão de ver o casal dentro do táxi, o que não demorou a acontecer, não antes de que vários motoristas e passageiros dos carros que passavam acenassem alegremente para o futebolista.
O taxista que os recebeu logo abriu conversa:
— Parabéns, rapaz, pela partida de ontem. Essa é a Rosinha de sua declaração de amor?
— Sou eu mesma. Ele não é lindo, dedicando os gols pra mim?!... E logo três...
O motorista acrescentou:
— Eu torço por outro time, mas fiquei muito contente de ver que temos mais um jogador digno do selecionado. Soube que o seu contrato foi renovado. Quer dizer que está com o burro na sombra...
Teotônio estava incomodado mas respondeu, numa tentativa de fazer o outro calar:
— Estou ganhando mais do que antes, mas muito menos que os craques do time.
— Você vai ver que, se continuar assim, irá receber propostas até do exterior.
— Se continuar assim...
— Quer ir pela avenida principal ou acha melhor que eu fuja do trânsito?
— Continue pela avenida. As transversais sempre estão mais cheias.
— Quando eu contar lá em casa quem esteve no meu táxi, eles não vão acreditar.
— Quer um autógrafo?
O outro procurou algo para o efeito, mas foi Teotônio que lhe entregou o lenço assinado.
— Muito obrigado! Você está sendo tão gentil que eu não vou ficar bravo se você marcar gol contra o meu time.
— Que time?
— O que foi para a segundona.
Só então Teotônio pôs tento no distintivo colado no painel.
— Contra vocês vai demorar para eu fazer gol.
— É verdade. Você acha que vai ser convocado para a Sub-20?
A conversa parecia não ter fim. Só se encerrou quando desceram à porta da casa de Teotônio.
— Querida, explicou ele, é melhor você ir a pé até a sua casa, porque você já viu qual é o meu drama na rua.
— Estranhei que você não tenha aceitado vir com o Renildo.
— Era para conversar com você sobre algumas coisas. Mas o tal do táxi...
— Vou entrar e a gente conversa.
— Tudo bem. Mas eu preciso estar no clube às duas. Fui dispensado da parte da manhã porque joguei ontem. Mas preciso comparecer logo mais. Só vou comer um pouco, talvez um caldo. Mas dá para a gente conversar.
Já estavam na sala, onde o sargento via televisão, enquanto D. Vilma não chamava para o almoço.
— Olá, mocinha, gostou de algum apartamento?
— Escolhemos um muito lindo. Parece que estou pisando em ovos. As coisas têm acontecido tão depressa que às vezes eu peço pra minha mãe me beliscar para ver se não estou sonhando.
Teotônio pôs pressa, resumindo as próximas providências:
— Pai, assim que o Renildo acertar o preço e as condições e o senhor tiver aprovado a compra, vamos ter de ir juntos para assinar a escritura. Espero que o negócio saia logo, porque o que aconteceu ontem não quero que se repita.
Rosinha observou:
— Isso de não poder voltar pra casa porque o povo se reúne do lado de fora...
Teotônio acrescentou:
— Sem contar os que entram, como no dia da festa. Mas o que eu queria contar a você...
D. Vilma assomou à porta, anunciando:
— O almoço está servido. A Rosinha vai comer com a gente? Quase tudo é sobra de ontem à noite.
— Muito obrigado, sogrinha. Já estou indo pra casa.
Teotônio viu as horas no relógio da parede e julgou que precisava apressar-se.
— O que eu tenho pra te dizer pode esperar.
— Eu também tenho muitas coisas pra te dizer.
Despediram-se junto à porta e a mocinha foi embora, como se vagasse por entre nuvens.
Teotônio apenas provou do arroz e feijão. Não quis os ovos fritos, dizendo que tinha de vigiar o peso. Tomou um suco aguado e já ia saindo quando o pai, que estava empanturrando-se, perguntou:
— Não quer que eu leve você? Já estou mesmo de saída.
— Vamos lá.
Demoraram mais uma meia hora até que o carro saiu da garagem rumo ao estádio.
No caminho, Teotônio ia indeciso quanto a contar ao pai que reconhecera a voz que o havia ameaçado. Acabou deixando para depois.



32. PAZ AMEAÇADA

Assim que Teotônio se encontrou com os companheiros, sentiu, no âmago da alma, um confrangimento inesperado. Em tom de arrelia, mexiam com os seus brios de jovem honesto:
— Quer dizer que o goleador beija a aliança e sai com as bicha¬s?
— Caiu na farra e saiu no jornal. Desse jeito vai mal.
— Você deu nelas ou apanhou?
Teotônio quis resolver logo o mal-entendido:
— Quem está com o jornal?
De pronto, um dos gozadores lhe entregou o recorte que havia separado justamente para ele:
— O que eu li está aqui. Não sei se há outras reportagens.
Não havia reportagem alguma. Era só um comentário:
“Ontem à noite, Teo se envolveu com dois travestis. Se a polícia não estivesse por perto, a coisa poderia ter ficado preta. Cuidado, mocinho!”
— Não vou deixar isto sem esclarecimento. Mas vou conversar primeiro com o Professor Santoro.
Não precisou procurar o técnico. Foi este quem veio ao seu encontro:
— Que aconteceu de verdade?
— A história do jornal está correta. Entretanto, pela provocação, estão querendo me acusar de algo imoral. O que ocorreu foi simples: meu pai achou que eu deveria ficar no hotel, porque estava formando-se uma multidão diante de casa. No restaurante, enquanto esperava o jantar, sentaram-se dois sujeitos vestidos de mulher, que quiseram bolinar-me. Como não deixei, brigaram comigo. A polícia resolveu o caso. Depois disso, chamei meu pai, que me levou para casa.
— Vamos dar o assunto por encerrado.
— Eu lhe agradeço, mas o pessoal está com gozação para o meu lado.
— É natural. Daqui a pouco acontece algo com outro e eles vão esquecer o caso.
— O problema é que minha noiva não ficou sabendo de nada. Agora a notícia no jornal pode provocar confusão. Posso ligar para ela?
— Você tem dois minutos.
— Obrigado.
Teotônio correu para o telefone mais próximo e ligou para o celular que havia deixado com Rosinha. Esta atendeu:
— Pronto.
— Rosinha, sou eu.
— Muito bonito. Eu já soube de tudo...
— Não tire conclusões apressadas. Era sobre isso que eu queria conversar com você. O técnico me permitiu dar-lhe uma palavrinha, para tranqüilizá-la. O que você leu no jornal é pura maldade. Hoje à noite eu lhe explico tudo.
— Querido, eu confio em você. Minha mãe me disse que eu deveria ouvir as suas explicações. Eu disse a ela que não precisa nada disso. Basta você dizer que não procurou...
— Não procurei nada.
— Então, tudo bem. Até à noite.
— Tchau!
Teotônio sentiu que não estava nada bem. Precisava entrar em mais detalhes, contando tudo direitinho, mais do que tinha feito para o técnico.
O treino constou de alongamentos e exercícios leves sem bola. Houve também uma preleção de Santoro a respeito do resultado do jogo e do procedimento dos jogadores:
— Vocês estão muito devagar. Se não fosse o Teo marcar três, dois em jogadas totalmente isoladas pela esquerda, e nós estaríamos amargando uma derrota. Aliás, parece que o Teo andou driblando também uns marginais, conforme ele me contou. Mais alguém aqui saiu ontem com travestis? Se alguém saiu, que eu não fique sabendo, nem os jornais. Os escândalos na imprensa diminuem a nossa reputação e aumentam a responsabilidade dos dirigentes.
A palestra prosseguiu por mais quarenta minutos, não tendo sido interrompida nem pela grossa chuva que inundou o gramado. O aguaceiro teve o mérito de irritar os mais velhos, contudo, tiveram de reconhecer que precisavam mudar de atitude, principalmente quanto a depositar no ombro do jovem atacante a iniciativa das jogadas.
Fazia tempo que Teotônio não se sentia tão mal. Os acontecimentos do hotel não foram nada em comparação com o destaque que lhe fora outorgado. Ainda se lembrou daquela voz encapuzada no meio da noite, percebendo que toda a euforia dos últimos tempos poderia terminar de uma hora para outra. Mais que nunca ansiou por encontrar-se com Rosinha.



33. CONVERSA FRANCA

Finalmente, naquela noite, estando Teotônio e Rosinha a sós no quintal da casa do rapaz, naquele mesmo lugar da festa, puderam trocar confidências, no desejo de pôr todos os assuntos em pratos limpos.
Teotônio estava aflito para desvendar para a noiva tudo quanto passara na noite anterior:
— Querida, vou referir todos os acontecimentos e você vai ver que não dava para falar na presença do Renildo nem do taxista. Até mesmo ao meu pai e à minha mãe achei que não deveria contar.
— Foi tão grave assim?
— Passei um real risco de vida. Os caras estavam armados de navalha. Não fosse o Cabo Farias chegar e enquadrar os bandidos, eu estaria em grande perigo.
— Por que você convidou os travestis...
— É isso que você está pensando? Eu não convidei coisa nenhuma. Eles é que vieram sentar à minha mesa, enquanto o jantar não vinha. Precisei agir duro para impedir que eles tomassem certas liberdades. Não fosse o garçom e nós teríamos passado às vias de fato ali mesmo.
— E como é que eles foram parar no seu quarto?
— Burlaram a vigilância dos funcionários do hotel e me esperaram no meu andar. Quando desci do elevador, me pegaram e me obrigaram a abrir a porta. Foi aí que dei um arranco e me tranquei no banheiro. Por sorte, estava com o celular. Por falar em celular, não foi uma excelente idéia tê-lo deixado com você na hora do almoço?
— Adiantou pra eu saber que você estava preocupado comigo.
— Estava, não. Estou, porque estou sentindo que você tem certas desconfianças...
— Não tenho mais. Você já me explicou tudo direitinho.
— A conclusão que tirei disso tudo, querida, é que precisamos nos casar o quanto antes. Se formos morar naquele apartamento, estaremos bem seguros e você não irá precisar mais passar por transtornos como o de ontem.
— Ontem eu só fiquei imaginando como é que você estava passando sozinho no hotel. A preocupação só surgiu hoje à tarde, quando ligaram para você e eu atendi. Disseram que era do jornal e que desejavam saber se você pretendia dar uma resposta à matéria que havia sido publicada. Disseram o nome do jornal e eu saí para comprá-lo. Foi assim que li a notícia. Quando você ligou pra mim...
Teotônio, que ficara pensativo, trouxe uma observação em descompasso com o tema da conversa:
— Não vou querer colocar mais lenha na fogueira. O assunto deve morrer ali. Quem será que deu o meu número para o cara?
— Não faço a menor idéia.
— Talvez o Renildo, talvez meu irmão; talvez meu pai. Deixei o número na secretaria do clube. Alguém de lá pode ter fornecido para o repórter. Vamos ver se isso não vai me causar mais nenhum problema. Sabe que os malandros do time mexeram muito comigo e até o técnico tirou uma com a minha cara?!
Rosinha também vagava noutra direção:
— Minha mãe me recomendou que, antes de nos casarmos, precisamos fazer um curso pré-matrimonial. Lá na igreja, dão cursos para noivos. Eu liguei para o centro espírita e me disseram que só ensinam para adolescentes grávidas.
— Eu andei pensando nisso. Vai ser muito bom, porque nós somos completamente...
Ia dizer inocentes ou incompetentes. Rosinha completou a frase:
— Somos inexperientes. Para ser bastante sincera, devo dizer que minha mãe insistiu em que deveríamos fazer os exames pré-nupciais, com o fito de saber se não temos nenhuma doença congênita. Ela não usou a palavra, mas eu acho que era isso que ela queria dizer.
— Ou queria fazer referência a alguma doença sexualmente transmissível, como a AIDS, já que sugeriram que eu ando com as bichas.
— A bem da verdade, ela falou nesse sentido, mas eu fui categórica, dizendo que por você eu punha a mão no fogo.
— Será que já estou começando a ter problemas com a sogra?
— De jeito nenhum. Ela adora você. Mas você não explicou as coisas para ela.
— Será que terei a oportunidade disso?
— Eu falo com ela. Por falar nisso, devo contar-lhe que estive conversando, aliás, me confessando, com o Fulgêncio, a respeito da gravidade do pecado dos que mantêm relações antes do casamento.
— Ele só pode ter dito que a virgindade é sagrada.
— Mais ou menos. Ele sugeriu que fosse mantida, que a gente poderia contornar o problema.
— E não é a mesma coisa?
— Também penso como você. Por isso, tive uma entrevista com o Vieira. Queria saber dele se os espíritas possuem o sacramento do matrimônio.
— É claro que não.
— Eu queria saber mais: se eles aprovam o sexo fora do casamento.
— Entre pessoas casadas? Isto é: se aprovam que o marido ou a mulher pulem a cerca?
— A impressão que eu dei foi essa mesma. Mas tudo ficou bem esclarecido e ele me explicou que, acima de tudo, em havendo amor, o respeito ao cônjuge tem de ser absoluto.
— Foi aí que você ficou com medo que eu não estaria respeitando você, mesmo sem casar?
— Não, bobinho. Foi aí que pus a aliança no dedo da mão esquerda, compreendendo que nós já temos tudo de que precisamos para sermos felizes completamente.
Ia Teotônio responder mas foi impedido por um beijo apaixonado que Rosinha lhe deu, acendendo-lhe o fogo da libido.
Quando iam mais adiantadas as carícias, Rosinha deu um empurrão no noivo:
— Está certo que eu desejo entregar-me a você a qualquer hora, contudo, tem de ser em nosso ninho de amor.
— Como eu faço agora?
— Vire-se. Se fosse o Fulgêncio, lhe passava três padres-nossos e três ave-marias. Se fosse o Vieira, mandaria que você pedisse a proteção dos benfeitores espirituais. Eu lhe peço que tenha paciência.
Ficaram abraçados por mais algum tempo, até que resolveram entrar. Estava ficando tarde e Teotônio queria ligar para o Professor Ernesto, para desencadear o processo de transferência escolar dos dois pombinhos.



34. A HORA DA VERDADE

“O homem põe e Deus dispõe”, pensava lá consigo Teotônio, assim que soube que haviam executado o Cabo Farias.
Trinta tiros em todo o corpo e mais doze no rosto, que ficou totalmente desfigurado.
O Sargento Arnaldo tremia ao contar à família o que havia acontecido ao subordinado. Ele mesmo escapara por muito pouco, apenas com um tiro na perna.
Dentre os facínoras, três jazeram por terra, quatro foram levados ao hospital, muito feridos, e um número indeterminado, não menos do que cinco, conseguiu fugir. Nenhum foi levado preso.
O parceiro do cabo quedou imóvel no banco do passageiro da viatura, sangrando, com três balas no braço e duas no pescoço. O médico que o atendeu disse que sobreviveria, mas tinha grande chance de ficar paralítico.
D. Vilma precisou ser atendida no hospital por causa da queda da pressão.
Wilsinho se fechou no quarto, só aparecendo quando a vizinhança tomou toda a largura da rua.
Tudo se passara bem em frente da casa do sargento, quando a viatura que o trouxera se preparava para retornar. Arnaldo estava junto à porta aberta, escudando-se atrás dela e atirando com a arma fornecida pela corporação.
Quem havia feito o tamanho estrago na quadrilha tinha sido mesmo o cabo, que disparou com arma de repetição, estourando os vidros dos três carros, não permitindo que os meliantes saíssem logo para atirarem à queima-roupa.
Com as sirenes abertas, outras radiopatrulhas espantaram os sobreviventes, que conseguiram fugir em dois carros.
Tudo não demorou mais do que cinco minutos.
Quando Teotônio voltou do treino, encontrou só a balbúrdia do povo, já recolhidos os mortos e feridos, medicados o pai e a mãe, no portão o Wilsinho reunido com Geraldo e outros colegas.
Wilsinho logo foi tranqüilizando o irmão:
— Não aconteceu nada com o pai. Ele está lá dentro, repousando. Não vá causar nenhum problema a mais.
E o rapazinho fazia um gesto para lembrar ao mais velho que tudo indicava que as desconfianças deles quanto ao homem da ameaça e, talvez, ao envolvimento do pai estavam corretas.
— Se ele quiser explicar as razões do tiroteio, eu vou ouvir, porque as coisas devem ser postas a limpo. É verdade que o Cabo Farias morreu?
— Morreu.
“O homem põe e Deus dispõe.”
Lá dentro, em estado de letargia por causa dos tranqüilizantes, Arnaldo olhava com olhos vítreos para o noticiário da televisão, em destaque, a chacina. Entrevistava-se um major:
— A Corregedoria da Polícia irá investigar o que motivou o crime. Sabemos que os meliantes formavam quadrilha de narcotraficantes. Por ora é tudo que podemos deduzir e informar.
Cortava-se para o estúdio, para os comentários do âncora, que insistia em que nada justificava crime tão brutal, a não ser que os policiais envolvidos estivessem prestes a desbaratar o crime organizado da Favela do Corisco.
Ao avistar o filho, Arnaldo quis abraçá-lo, dizendo:
— Você sabe de onde nós estávamos voltando? De visitar o seu apartamento. Autorizei o Renildo a fechar negócio. Agora não sei se não será melhor a gente ir embora daqui. Eu acho que estou marcado para morrer, porque devo ter acertado um ou dois bandidos.
— Depois a gente pensa melhor sobre isso. Onde está a mãe?
— Na cozinha. Você sabe que ela foi parar no pronto-socorro, por causa da pressão baixa? É bom você ir dar um conforto a ela.
— Antes, pai, diga por que tudo isso. Eu não lhe disse mas reconheci a voz que me lançou as ameaças. Era a voz do Cabo Farias.
Arnaldo não teve nenhuma reação aparente. Permaneceu lívido como já estava. Repetiu a informação do major e acrescentou uma recomendação cautelosa e mais alguns dados:
— A Corregedoria vai apurar as responsabilidades. Só lhe peço para não bancar o herói, repetindo o que você me disse para os investigadores. Quanto menos a gente falar, menos seremos envolvidos. Eu, por exemplo, estava a ponto de denunciar o meu subordinado. Só não fiz isso porque não tinha provas conclusivas de que ele estava metido com o tráfico. O maior indício foi quando eu pedi que pusesse uma campana naquele ponto de venda de drogas da favela e as pessoas da casa sumiram. Achei que foi ele quem avisou.
Teotônio prestou muita atenção nas palavras do pai, mas foi movido por um sentimento de piedade:
— E dizer que o Cabo Farias foi tão positivo para comigo, livrando-me dos travestis. Deus o agasalhe em seu reino...
Não concluiu. As idéias espíritas que vinha absorvendo contradiziam tanta facilidade de superação do estágio de sombras em que deveria estar aquela criatura, no desconsolo da tragédia sangrenta em que tirara a vida a várias pessoas.
Não pôde levar mais longe as reflexões, recebendo da mãe um abraço em pranto e sofrimento. Com os soluços, não conseguiu expressar todo o medo de que estava possuída. Precisou de alguns minutos para refazer-se, sem largar o filho. Enfim, exclamou:
— Graças a Deus, o seu pai não morreu. Foi um verdadeiro milagre. Foi por vontade de Deus, que tem abençoado tanto o nosso lar. Que vamos fazer agora, Teo? Você vai ser a nossa salvação.
— Vocês ligaram para a Rosinha?
— O Wilsinho ligou, sem querer. Ele queria falar com você e foi ela quem atendeu.
— Eu passei o celular pra ela. Agora preciso comprar outro e fazer a troca. Mas isso pode esperar. O importante é saber que ela está a par de que nada nos aconteceu. Vou ligar pra ela.
O telefone estava fora do gancho, tendo concluído o moço que os pais não queriam ser incomodados pelos jornalistas. “Com isso, bloqueiam-se as comunicações com os parentes.”
Realmente, foi só colocar o gancho no lugar e soar a campainha. Era do serviço de caixa postal avisando que havia vários recados.
Não deu tempo de ouvir. Batiam à porta.
Teotônio foi atender, voltando para a sala em companhia do Tenente Gamão, que não hesitou em revelar a que veio:
— Sargento, o senhor vai ser recolhido ao quartel. Deve levar roupa para um bom tempo. Quanto aos rapazes e à senhora, devem procurar um parente que os receba, de preferência longe daqui. Dentro de uma hora, a favela do Corisco vai ser posta de cabeça pra baixo.
Foi interrompido pelo locutor da televisão:
— Atenção, acaba de ser invadido o hospital para onde foram levados os feridos do atentado de hoje à tarde. Por telefone, o nosso repórter Freitas.
— Estamos diante do edifício do Hospital das Clínicas. Há menos de dez minutos, saíram daqui cerca de doze bandidos, levando dois companheiros. Deixaram um rastro de sangue. Estamos sendo informados que o terceiro ferido foi morto na UTI, enquanto o soldado internado foi abatido em plena sala de cirurgia.
O próprio tenente tomou a iniciativa de desligar o aparelho:
— Não vamos perder mais tempo. O senhor pode caminhar sozinho?
— Posso.
— Então, vamos.
Dona Vilma apareceu com uma valise:
— Coloquei meias, lenços, camisetas e peças brancas. Também pus a escova de dentes. Achei que...
O tenente interrompeu-a:
— Se o sargento precisar de mais alguma coisa, ele pede e a senhora leva ao quartel. Não podemos perder mais tempo.
A viatura desembalou de volta, com a sirene aberta.
Wilsinho, que se encolhera dentro do abraço da mãe, lembrou:
— Vamos ficar com o Tio Tomás.
Teo discordou:
— Se não estivermos seguros aqui, o melhor é vocês irem para um hotel. Eu não posso ir junto porque parece que todo o mundo me reconhece.
Dona Vilma foi quem decidiu o destino de todos:
— Eu e o Wilsinho vamos para a casa do meu irmão. Quanto a você, Teo, vai para a casa do Renildo. Ele irá arrumar um bom lugar para você ficar. Enquanto vocês arrumam as malas, eu ligo para o Tomás e logo ele estará aqui. Vou pedir que traga um dos seus primos para dirigir o nosso carro. Aí o Teo vai com o dele e nós vamos com o nosso.
Teotônio ia sugerir que poderia ele mesmo guiar o carro, mas julgou que a mãe não aceitaria. Calou-se, pensando em avisar a namorada.
O telefone havia ficado fora do gancho. Ao tentar uma linha, recebeu uma chamada:
— Pronto.
— Quem fala?
— É você, Rosinha?
— Sou eu mesma. Não reconheci a sua voz.
— Escute com atenção. Meu pai está bem. Levou um tiro, mas não é nada de grave. Agora ele está indo para o quartel, por ordem do comandante, que mandou o tenente vir buscá-lo. Minha mãe e o Wilsinho vão para a casa do meu tio. Eu não vou. Prefiro ficar onde o Renildo me levar. Depois eu ligo pra você e aviso onde estou. Tudo bem aí?
— Estão todos muito nervosos e com medo.
— Se vocês tiverem para onde ir, vão, por uns dias. A polícia vai invadir a favela. Parece que há um clima de guerra. Você soube que resgataram os feridos que foram presos e executaram o polícia que estava no hospital?
— Santo Deus!
— As coisas estão pretas. Preciso desligar. Fique com o celular sempre com você. Eu vou ligar assim que possível.
Desligou sem se despedir.
A mãe já o esperava com a mochila estufada:
— Coloquei várias mudas de roupa. Vamos deixar tudo bem fechado. Tenho quase a certeza de que a casa vai ser visitada por ladrões, porque os vizinhos vão ficar escondidos.
Teotônio, antes de atender à campainha, ainda disse:
— Vou ver se o pessoal do centro espírita pode fazer uma ronda por aqui.
Na porta, Tomás e o filho mais velho. Em menos de cinco minutos, todos iam em busca dos novos endereços. No caminho, cruzaram com dezenas de estridentes radiopatrulhas.



35. A PRESSÃO AUMENTA

Renildo desconsiderou a sugestão de levar Teotônio a outro hotel:
— Estou com as chaves do apartamento em que você irá morar. Ele é praticamente seu. Nada mais lógico do que colocá-lo lá.
— Será que poderei instalar-me? Não há roupa de cama nem de mesa.
— O que for para providenciar, eu providencio. Se você ficar com fome, mande vir uma pizza. Não há toalhas mas há talheres. Que horas são?
— Passa um pouco das dezenove.
— Eu coloco você lá dentro e dou uma volta pelo shopping. Pode ter a certeza de que você irá passar uma noite de rei.
— Isso bem pouco me importa. O que eu quero, mesmo, é não ser apanhado pela imprensa para Cristo.
— Fique calmo.
Vinte minutos depois, estavam convencendo o zelador de que o futuro proprietário, conhecido jogador de futebol, desejava saber como era o apartamento durante a noite.
— Não se ouve o movimento das ruas. É um sossego só. Ninguém faz barulho. Vocês podem subir que eu vou ligar a força e abrir os registros da água e do gás. Boa noite.
Renildo observou:
— Não estranhe mas eu vou ter de fazer umas compras para acomodar o Teo. A antena da televisão está ligada?
— Perfeitamente. Ele pode escolher entre os canais abertos e os da antena particular. Se precisarem, eu vou explicar como é que se faz para captar as imagens.
Teotônio foi quem dispensou o porteiro:
— Pode deixar que eu me viro. O telefone está ligado?
— O interruptor está no quadro geral. Estão indicados para que servem os comutadores.
Renildo deixou o rapaz às voltas com o quadro de interruptores e foi atrás das utilidades domésticas.
Teotônio, dentro em pouco, estava com a televisão ligada, buscando um canal jornalístico, para ver se transmitiam a invasão policial. De fato, estavam mostrando uma reportagem sobre o tiroteio, com as fotos dos militares e dos bandidos. Haviam conseguido cenas de um vídeo caseiro, em que se viam os corpos. Os feridos foram filmados pela equipe de reportagem, aparecendo o Sargento Arnaldo dando entrada no hospital.
O jovem lembrou-se de passar o número do telefone à mãe bem como a informação de onde se encontrava.
— Mãe, estou no apartamento que vou comprar, trazido pelo Renildo.
Forneceu o endereço e o número do telefone e ficou sabendo que Dona Vilma estava vendo o mesmo telejornal. Por isso desligaram.
Nisto o locutor do estúdio passou para a repórter que estava cobrindo a ação policial, ao vivo.
As imagens estavam sendo produzidas de dentro do carro, justamente diante da casa em que se travou o tiroteio. Junto ao portão, um soldado fazia a guarda do local.
A repórter desceu e perguntou a respeito de quem morava ali.
Um curioso, rapaz de pouca idade, que Teotônio conhecia de vista, foi informando:
— Esta é a casa do Teo.
— O craque do dia?
— Ele mesmo. O pai dele é o sargento que levou um tiro na perna. Mas não tem ninguém em casa. Mais adiante mora a noiva dele, a Rosinha. São só alguns quarteirões para o lado da favela.
Apressados, cinegrafista e repórter entraram no carro que se movimentou rápido. Logo estavam chegando junto a uma aglomeração. Teotônio reconheceu a casa da noiva.
Havia três soldados tentando afastar as pessoas que desejavam entrar. Eram, dentre outros, o Padre Fulgêncio, o Professor Ernesto e Vieira. A repórter não encontrou resistência e venceu o cerco dos policiais conhecidos. Precisava do furo de reportagem. Dentro, destacava-se a figura do Tenente Gamão, que conversava com Dona Flávia abraçada à filha. Ao fundo, os demais habitantes da modestíssima residência.
Teotônio não hesitou: discou o número do celular.
Quem atendeu, tirando o aparelho do bolso, foi o tenente:
— Pronto.
— Tenente Gamão, não se assuste: estou acompanhando a sua visita pela televisão. O senhor está na casa de minha noiva.
— Teo?
— Sim
— Disseram que era a casa de um traficante.
— Traficante de quatorze anos que morreu numa chacina. Renato era irmão de Rosinha. Essa casa está limpa. Na época foi vasculhada pela polícia. Meu pai estava junto. O senhor pode conversar com o Padre Fulgêncio que está aí fora. O nosso Professor Ernesto também está.
O tenente sentiu-se perturbar com a insistência da reportagem em filmá-lo. O nome pronunciado pelo militar despertou a atenção da repórter, que puxou Rosinha para o lado:
— Não deixe o tenente desligar. Pegue o celular e converse um pouco com o seu noivo. O povo vai ficar ciente da incúria da polícia.
Rosinha não precisou tomar nenhuma providência, pois Teotônio solicitou que o telefone fosse passado a ela.
— Alô, querida, você está na televisão. Estou no nosso apartamento. Você tem o endereço?
— Tenho.
— Anote o número deste telefone.
Foi a repórter quem forneceu lápis e caderneta. Anotado o número, o celular foi ter às mãos da jornalista:
— Teo, qual é o seu papel nos acontecimentos?
— O mesmo do meu pai: apenas uma vítima. O pior é que esta bola estou chutando pra fora. Espero que vocês cubram a invasão da favela. Pareceu-me ouvir uns estampidos ao longe. Boa sorte.
Disse tudo num tom de voz monótono, alterado e vibrante, como se estivesse profundamente emocionado. O público haveria de entender o seu drama.
Mediante as palavras de Teotônio, o tenente chamou os soldados que reviravam a casa e deu ordem de retirada. Ao passar pelos amigos da família, fez sinal indicando que podiam entrar.
No alvoroço que se seguiu, a repórter, disfarçadamente, já na rua, passou de leve o lápis sobre o decalque da letra de Rosinha, obtendo o número do telefone do noivo. Imediatamente, entrou em contato com a emissora, solicitando o endereço correspondente.
Enquanto isso, Dona Vilma, que presenciou tudo pela televisão, perguntou a Wilsinho:
— Você não acha melhor a gente ir ao apartamento do seu irmão?
— Vá a senhora. O tio me larga na concentração do clube. Prefiro passar a noite lá. Eu sei que amanhã não vou poder ir à aula, mas poderei treinar.
— Vão dar acomodação a você?
— Eu me ajeito. O pessoal é muito bacana. O nome do Teo abre qualquer porta.
Dentro de pouco tempo, munida de material de limpeza e de uma sacola com frutas, verduras e legumes, mais a mala de roupas, partia a mãe ao encontro do filho.
Na casa de Rosinha, precisaram acudir a família com água com açúcar e muito vinagre nas têmporas e nas massagens nos braços e nos pescoços. Estavam todos muito aflitos. A um convite do Padre Fulgêncio, aprontaram-se para deixar a casa vazia.
Propusera ele:
— Eu agasalho vocês na casa paroquial. Há acomodações para todos.
Rosinha firmou pé noutra direção:
— Eu quero me encontrar com o Teo, no apartamento.
Dona Flávia concordou:
— Ele deve estar precisando que arrumem tudo. Vamos fazer as malas, cada um apanhando as suas coisas. Eu e Rosinha vamos ao apartamento. Os outros ficam com o Padre Fulgêncio.
Não demoraram para pegar os pertences pessoais, tendo Rosinha tido o cuidado de separar roupa de cama e toalhas de mão, de banho e de mesa, que retirou do enxoval que vinha preparando há algum tempo.
Seguiram em dois carros, levando Ernesto a noiva e a sogra. De contrapeso, ia Vieira. Fulgêncio levava os demais, que deixou na igreja, acompanhando, em seguida, o carro do professor.
Nesse meio tempo, Renildo enchia três caixas de mantimentos e mais três de roupas.
Por coincidência, os quatro carros chegaram ao mesmo tempo ao edifício.
Naquele momento, Teotônio recebia uma chamada do dono do apartamento:
— O seu procurador me ligou avisando que você iria passar a noite aí. Tudo bem, porque o negócio está assegurado. Na qualidade, porém, de membro da diretoria, por dever de lealdade, devo avisá-lo de que estamos todos muito assustados com o que vimos nos jornais e na televisão. Fique preparado para se apresentar perante o presidente, que irá argüi-lo a respeito de sua vida particular.
— Muito obrigado pelo aviso, doutor. Não fique temeroso, pois sou apenas um profissional dedicado ao futebol. O senhor acha que precisarei apresentar-me com algum advogado?
— Só se tiver culpa no cartório.
— Levo o Renildo?
— Seu pai seria mais interessante.
— Não sei se ele vai poder deixar o quartel. Mas isto eu vou explicar aí. De qualquer modo, estou esperando o Renildo com algumas compras e vou deixá-lo a par da situação o quanto antes. Será que posso convidar minha noiva e a mãe para virem ficar comigo?
— Vou ligar para a portaria para liberar as visitas. O que nós não vamos admitir é que a imprensa entre para entrevistá-lo. Em boca calada, não entra mosca.
— Entendi e agradeço.
— Boa noite, meu jovem.
— Boa noite, doutor.
Pela terceira vez, soava a campainha do interfone. Teotônio demorou um pouco para descobrir onde se achava o aparelho.
— Pronto.
— Está aqui a sua noiva com outras pessoas. Posso fazer com que subam?
— A propósito, o dono do apartamento, com quem acabo de conversar, vai ligar para avisar os porteiros que podem admitir os familiares e amigos. Só não podem passar os jornalistas. Mas ele vai confirmar.
Teotônio ouviu soar o telefone e concluiu:
— Vai ver que é o doutor que está na linha. Até logo e obrigado por tudo. Tchau!



36. VENCENDO O MEDO

De repente, Teotônio estava recebendo oito pessoas, todas preocupadas com os gravíssimos acontecimentos do dia.
Dona Flávia e Dona Vilma logo se puseram na cozinha, a guardar, a limpar e a preparar uma refeição ligeira para a maioria, porque apenas Renildo, que se propôs a ajudar na cozinha, e Vieira disseram que não estavam com fome e que preferiam ir jantar em casa. Ernesto não fazia questão de comer, nem Fulgêncio. Desejavam conversar com Teotônio. Rosinha desapareceu de vista, tendo anunciado que iria cuidar do banheiro e do quarto. Apenas o irmão de Dona Vilma se pôs diante da televisão.
Ernesto puxou Teotônio para perto da janela. Queria ter uma conversa particular. Não conseguiu, porém, porque o padre se intrometeu, desejoso de atestar o grau de nervosismo do moço.
— Estou bem, disse ele, a uma provocação do sacerdote. — Mantive a calma depois que vi pela televisão que Rosinha havia sido liberada pelo tenente.
— E quanto ao sargento, seu pai?
— Está resguardado no quartel.
Foi Ernesto quem insistiu:
— Você acha que o atentado comprovou as suas desconfianças?
— Analisei o tiroteio e achei que os assassinos estava interessados só no cabo e no soldado. Se quisessem meu pai, teriam facilmente dado fim a ele. Os senhores estão sabendo o que se passou no hospital?
O padre recebeu um gesto de confirmação do professor e esclareceu:
— Sabemos de tudo. O guarda e um dos feridos morreram. Os outros dois foram resgatados. Não compreendi quanto às suas desconfianças.
Teotônio explicou rapidamente todo o episódio do atentado, do reconhecimento da voz e da conversa com o professor.
Fulgêncio assegurou:
— Vocês podem ter a certeza de que o Sargento Arnaldo não deve estar metido nessa camisa de onze varas. Se pertencesse à quadrilha, teria dito no confessionário. É sagrado o segredo do que me contam, mas não existe nenhuma restrição quanto a comentar o que não se diz.
Teotônio acrescentou:
— Ele me falou que estava prestes a denunciar o Cabo Farias, porque desconfiava de que estivesse dando cobertura aos traficantes da favela. O que não combina com as nossas conclusões é o fato de ter sido arrebatado de casa pelo comando da guarnição.
Ernesto tentou extrair a lógica do ato:
— Mataram dois: um dentro do carro, outro no hospital. Nada mais justo do que preservar o único que poderia testemunhar, ainda mais porque nem todos os criminosos estavam de máscara.
Fulgêncio aduziu:
— As máscaras foram inúteis para os que morreram. Através da identificação destes, logo a polícia chegou aos demais, tanto que a favela foi invadida. Eu ouvi o pipocar das armas e os estrondos das bombas. A coisa deve ter sido ainda mais feia. Os meus fiéis e os assistidos do centro espírita vão dar-nos a dimensão exata dos acontecimentos.
Nisto o tio de Teotônio chamou os homens para diante do aparelho de televisão:
— Venham ouvir esta notícia.
Chegaram a tempo de saber que os dois traficantes resgatados do hospital foram achados do outro lado da cidade, executados e jogados num matagal.
O repórter levantou a suspeita de que os bandidos não fossem da favela do Corisco.
Vieira, que se mantivera descansando na mesa da sala de jantar, observou:
— A conclusão do jornalista está errada. Os que resgataram os bandidos pertencem à quadrilha do policial assassinado. Não querem ser denunciados por ninguém.
Teotônio precipitou uma tese:
— O senhor está querendo dizer que a invasão da favela pela polícia foi para calar os que fugiram?
— Não. Estou dizendo apenas que os que se evadiram não teriam meios nem oportunidade para conhecer o paradeiro dos sequazes, muito menos o aparato de segurança que os protegia. Para isso, haveriam os comparsas do policial, talvez policiais eles mesmos, de saber exatamente aonde ir e o que enfrentar.
O jovem insistiu com Vieira:
— Que papel o senhor atribui ao meu pai nessa história?
— Seu pai é um homem honrado. Basta dizer isso.
Não deu tempo para Teotônio inquiri-lo a respeito da assertiva: Dona Vilma vinha avisar que o lanche estava pronto, pedindo ajuda para arrumar a mesa da sala.
Logo os dois espíritas se puseram à disposição, enquanto Renildo vinha para se despedir:
— Estou de saída. Você ainda precisa de mim?
— Preciso. Fui avisado de que o presidente do clube vai falar comigo amanhã. O que você pensa disso?
— Resolvo já. Ligo pra ele e ponho o padre, o professor e o presidente do centro na linha.
— Disseram...
— Quem disse?
— O dono do apartamento.
— Ah!
— Ele disse que era melhor levar o meu pai.
— Seu pai está impedido, com a melhor das desculpas: levou um tiro. Nesse caso, vá sozinho e enfrente o homem. Como eu sei que ele tem juízo, não vai fiar-se nas suas informações.
— Esquisito...
— O que eu quero dizer é que irá atrás das autoridades. Se não estourar nenhum escândalo nos jornais...
— Todos os jornais vão publicar amanhã, como os telejornais hoje, a história dos tiros, das mortes e dos sobreviventes...
— Estava fazendo referência ao seu nome e ao nome do clube.
— Ah!
— Se aparecer algum repórter, não atenda.
— Deixe comigo.
Renildo despediu-se e se foi. Rosinha reapareceu, pondo-se a ajudar na arrumação da mesa.
Enquanto os famintos se reuniram para o lanche, Dona Vilma e Dona Flávia solicitaram ao Padre Fulgêncio que abençoasse o apartamento, levando-o para a parte íntima. Foi quando Dona Flávia se surpreendeu com o arranjo do quarto: lá estavam as peças que a filha tinha comprado para seu leito nupcial, inclusive a camisola e o pijama.
As duas senhoras trocaram um olhar significativo, ao mesmo tempo que Fulgêncio se desconcentrava da oração, percebendo a admiração das mulheres. No banheiro da suíte, as toalhas e os tapetes pareciam aguardar os nubentes.
— Dona Vilma, perguntou o padre, a senhora pretende passar a noite aqui?
— Eu pretendia.
— E a senhora, Dona Flávia?
— Também.
— Mas o ninho está preparado para o casalzinho.
Houve um momento de hesitação, até que Dona Vilma interpelou o sacerdote:
— O senhor parece estar aprovando a união deles sem o sacramento.
— Posso aprovar oficialmente, ou seja, posso dar-lhes a bênção em nome de Deus, na qualidade de representante do Cristo na terra.
Foi a vez de Dona Flávia manifestar-se:
— Mas eles são tão jovens! E depois não passaram pelos cursos nem pelos exames pré-nupciais.
— Se as senhoras me permitirem o atrevimento, vou abrir o criado mudo. Aposto que vou encontrar preservativos e outros petrechos para a ocasião.
Foi Dona Flávia quem encontrou o material citado. Foi Dona Vilma quem extraiu a conclusão:
— Não há dúvida de que Rosinha planejou tudo. O Teo deve estar totalmente alheio a isto.
E a conversa morreu aí.
De volta à sala, encontraram Teotônio conversando com Ernesto a respeito da transferência de escola.
— Eu vou levar os requerimentos para o meu pai assinar. Deixe comigo.
— Você vai pessoalmente?
— Peço para um dos boys do clube. Eles estão acostumados com os serviços que lhe dão os jogadores que não querem ser alvo dos fãs.
As mães se acomodaram junto à mesa e tomaram um pouco de café com leite, acompanhado de alguns poucos biscoitos. Estavam com os olhares distantes, como em expectativa.
Foi Rosinha quem as despertou para a realidade:
— Vamos deixar tudo limpo, porque amanhã o Teo vai ter um dia cheio. Aliás, só Dona Vilma deve ficar aqui. Eu e a mãe vamos com o Padre Fulgêncio para junto dos tios.
E tudo se resolveu pela forma determinada pela mocinha.



37. NOITE AGITADA

Nada poderia fazer crer a Teotônio que não teria sossego à noite; menos ainda Dona Vilma, que se arrogou o papel de vigilante do filho, propondo-se a obstar todo e qualquer contato telefônico que pudesse afligi-lo.
Realmente, após ter colocado o filho a par de que o pai estava bem e de posse do endereço do apartamento, logo soou o interfone.
A senhora atendeu:
— Pronto.
— Madame, está aqui uma equipe de reportagem...
— Por favor, dispense todo e qualquer repórter. Diga que, por ordem dos dirigentes do clube, o Teo não pode atender.
— Perfeitamente.
Não deu tempo sequer para contar a conversa ao filho e ressoou a campainha do telefone:
— Pronto.
— É a Dona Vilma?
— Eu mesma.
— Eu sou repórter do telejornal que transmitiu a conversa de seu filho com o tenente e com a noiva. A senhora poderia colocar seu filho na linha?
— Vocês é que estão aí na portaria?
— Sim.
— Então está valendo o que lhes disse o porteiro. Boa noite.
Não demorou um minuto para nova chamada. Desta feita, Dona Vilma demorou para atender, o que chamou a atenção do filho que cochilava diante do aparelho de televisão ligado.
— Mãe, a senhora não vai atender?
— É aquela repórter da casa da Rosinha.
— Deixe que eu falo com ela.
— Cuidado que essa gente é perigosa. Você fala uma coisinha de nada e ela enche uma página inteira.
— Vamos ver. Pronto.
— Teo, obrigado por me atender.
— Escute, mocinha, porque vou dizer uma vez só. Estou proibido de dar entrevistas por contrato. Preciso de autorização do Diretor do Departamento de Futebol Profissional do Clube. Mas para que você não diga que fui indelicado, entregue por escrito as perguntas que eu prometo devolver-lhe com as respostas amanhã de manhã.
— Sem consultar o patrão?
— Vou usar o mesmo aparelho que agora vou desligar. Boa noite.
De fato, Teotônio desligou, mantendo o fone fora do gancho.
Dona Vilma observou:
— Não vai demorar meia hora e você irá receber o questionário.
— Melhor assim, porque aí vou poder colocar funcionando o telefone.
Nem dez minutos depois, soava o interfone:
— Pronto.
— Madame, a repórter aqui está perguntando se pode deixar as perguntas gravadas numa fita.
— Um momento. Filho, ela quer saber se pode ser em fita cassete.
— Não.
— Alô. Meu filho disse que não. As perguntas devem ser feitas por escrito.
Após desligar, afiançou ao filho:
— Ela está provocando o pessoal lá embaixo. Daqui a pouco a segurança do prédio vai colocar essa gente para fora.
— Vamos apostar que dentro de alguns minutos vão perguntar se eu desço para retirar as perguntas ou se eu prefiro que me entreguem aqui em cima?
— Quantos minutos?
— Vinte, no máximo.
— Está apostado. Se você ganhar, eu deixo a televisão com você. Se eu ganhar, vou querer ver a novela, que vai começar dentro de vinte minutos.
No noticiário da televisão, as informações repetidas dos telejornais da tarde. Na falta de material fotográfico, houve quem tentasse reproduzir as cenas através de desenhos. Quanto às imagens, apenas as dos corpos sendo retirados do hospital e do matagal em que se acharam os bandidos assassinados e dos policiais invadindo a favela do Corisco, sendo recebidos por saraivadas de balas. No fim, a informação de mais dois marginais mortos bem como de um policial gravemente ferido. Aí o locutor mencionou o Sargento Arnaldo, apresentando-se um retrato dele extraído de um documento de identidade. Não houvera nenhuma prisão.
Dona Vilma nem precisou passar para outro canal: sua novela era naquele mesmo.
— Mãe, é cedo, mas eu vou dormir. Boa noite.
— O Senhor Vieira deixou dois livros na estante.
— Eu sei. Vou tentar ler um pouco.
Teotônio desconhecia o fato de que Rosinha havia aprontado o quarto com as peças do enxoval. Foi uma agradabilíssima surpresa.
Voltando à sala, o rapaz interrogou a mãe:
— A senhora sabia que Rosinha tinha...
— Sabia e não falei pra não estragar a surpresa. Ela não lhe disse nada? Não deu nenhuma pista?
— Ela apenas me disse para sonhar com ela.
— É isso aí.
— Vou ver se chegaram bem.
Estava ainda o fone fora do gancho. Ao ser recolocado, soou.
— Pronto.
— Filho, a sua mãe está por aí?
— Mãe, é o pai.
— Que foi, querido?
Teotônio esticou o ouvido, mas não percebeu o que dizia o pai. A mãe, calada, fazia sinais para o filho de que estava tudo bem. Depois de dois longos minutos, ela concordou:
— Está certo. Estamos esperando. Até logo. O seu pai está vindo para cá. Vai passar pelo clube e trazer o Wilsinho. Ele disse que o Senhor Vieira e o Padre Fulgêncio também estão vindo.
— Que aconteceu?
— Ele disse que o seu irmão está aflito com o noticiário.
— Mãe, a senhora precisa dar outra arrumação no apartamento. No quarto do casal, dormem a senhora e o pai. No menor, eu e o Wilsinho.
— Vou pôr a roupa que eu trouxe de casa e embrulhar a da Rosinha. Valeu a intenção.
— Vou ligar pra ela. Ela ficou com o celular.
Em meio minuto, estavam conversando:
— Você chegou bem?
— Tudo bem mas quem me trouxe foi Ernesto. Fulgêncio e Vieira foram visitar o seu pai.
— Estou sabendo.
— Gostou do seu cantinho de dormir?
— Malvada. Serviu só para me dar água na boca.
— Eu te amo, por isso quis lhe dar o maior prazer de uma noite passada sozinho.
— Entendi. Eu também te amo e não lhe dei nada...
— Este telefonema é a maior prova de amor...
— Preciso desligar. Meu pai e meu irmão estão chegando. Minha mãe está ocupada, então vou ter de atender ao interfone. Boa noite, querida.
— Sonhe comigo, amor da minha vida.
De fato, o porteiro solicitava permissão para subirem o padre e o sacristão.
Em breve, Teotônio abria a porta para os dois.
Fulgêncio foi logo avisando:
— Não se assuste. O seu pai providenciou todos os documentos para uma licença médica prolongada e foi liberado pelo comandante. Para efeito da segurança dele, pediram para não voltar para casa. Foi assim que ele desejou vir para cá. Quem nos preocupou foi seu irmão, que ligou desesperado, querendo que o seu pai esclarecesse alguns fatos, porque o pessoal no clube estava ouvindo que o sargento estava preso, incomunicável. Como você está percebendo, não é nada disso. A imprensa é que forjou a notícia falsa, principalmente porque ele é o pai do jogador do momento.
— Eu preciso agradecer-lhes tudo o que vêm fazendo pela minha família. Seu apoio vai ser fundamental para elucidar os fatos para o meu irmão. Acabei de ligar para a Rosinha. Ela e a mãe chegaram bem à casa paroquial.
— Nós temos acomodações para vinte ou trinta pessoas, dado que, muitas vezes, recebemos gente expulsa de casa pelas enchentes. Você já esteve lá?
— Só conheço o prédio do lado de fora.
— A construção é boa e os cômodos dão para quatro pessoas, havendo um banheiro para cada conjunto de quatro quartos. Atualmente, estão lá umas quinze pessoas, contando as cinco da família de sua noiva.
Demorava o sargento para chegar. Vieira tentou incluir outro assunto:
— Você deu uma olhada nos livros?
— Estava me preparando para dar uma lida. Mas, preciso dizer que era mais para chamar o sono, porque hoje o dia foi difícil e cansativo.
Fulgêncio se interessou:
— Aposto que você lhe trouxe duas obras de Kardec: O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo.
— Quase: Nosso Lar, de André Luís, e O que é o Espiritismo?, de Kardec. Mas registro a sugestão, porque são obras fundamentais, do chamado pentateuco kardequiano.
— Os que você trouxe servem para despertar a curiosidade e o interesse pelos temas da doutrina espírita.
Teotônio não se conteve:
— Padre, o senhor parece conhecer tudo a respeito. Aprova, então, essas leituras?
— Não iria recomendá-las do púlpito, porém, não impediria ninguém de lê-las, se não fosse por outro motivo, para poder refutar os ideais nelas contidas. Mas não serei eu quem irá propor esse tipo de discussão. Eu estarei sempre pronto para ouvir a confissão dos fiéis, para perdoar os arrependidos, em nome de Deus.
Vieira limitou-se a sorrir e a dar uns tapinhas nas costas do vigoroso sacerdote, como a perdoá-lo por sua vez.
Foi quando se ouviu o interfone chamando.
Com a mãe ocupada, Teotônio atendeu, dando ordem para que subissem os visitantes e que trouxessem o envelope deixado pela repórter.
Wilsinho estava abatido. Percebia-se que havia chorado. Como, porém, saíra do elevador abraçado ao pai, o irmão supôs que se haviam entendido.
Arnaldo entrou e logo demonstrou que estava bem:
— Teo, deixaram isto pra você lá embaixo.
— Obrigado.
— Preciso sentar e colocar o pé pra cima, caso contrário vai inchar mais ainda.
Vieira logo providenciou um lugar no sofá, tendo posto uma almofada sobre a mesa de centro, onde Arnaldo apoiou a perna.
Dona Vilma teve tempo de ajudar o marido a sentar-se, de sorte que logo estavam entretidos em colocar os assuntos em dia. Discretamente, os demais se afastaram.
Teotônio ardia de desejo de perguntar ao irmão o que o fizera abandonar as dependências do clube, todavia, julgou melhor calar-se para não dar ensejo a que o mocinho voltasse a se emocionar. Disse apenas:
— Venha conhecer o apartamento.
Tendo passado o braço pelo pescoço do mais novo, Teotônio verificou que o irmão estava quase da altura dele, com a diferença de que era bem mais carregado de músculos.
— Você está forte, hein?!... Vou pensar duas vezes antes de mexer com você.
Wilsinho se desprendeu do abraço para passar pela porta que levava aos quartos e ambos saíram do campo de visão dos visitantes.
Fulgêncio sussurrou:
— Vieira, acho que todos estão bem.
— Tudo indica que sim. Mas vamos esperar mais um pouco. Quem sabe eles ainda vão precisar da gente.
Nisto, Dona Vilma passou por eles visivelmente preocupada, dizendo que o marido queria conversar com os dois.
— Diga lá, querido paroquiano. Em que poderemos servi-lo?
— Vocês têm sido muito gentis. Mas eu vou abusar mais um pouco. Como não trouxe nada de casa, decidi que vou voltar pra lá. A Vilma disse que não quer que eu fique sozinho, então ela vai também. Os meninos vão ficar muito melhor aqui.
Fulgêncio arriscou uma observação:
— O senhor vai desobedecer uma ordem do comandante. Não será arriscado voltar ao cenário da tragédia?
— Se eu desaparecer do bairro, vão dizer que estava mancomunado com os bandidos de uma ou de outra quadrilha. Como o major mesmo concluiu, eu não tenho nenhuma posse que não tivesse sido adquirida com o soldo que recebo todo mês. Ele checou até a compra deste apartamento, inteirando-se do contrato do Teo. Se alguém tentar algo contra mim, estará visando um inocente. Quem não deve não teme.
Vieira contradisse o sargento:
— Eu tenho a certeza de que não devo nada nesta vida, contudo, tenho muito medo de sair de casa e receber uma bala perdida. Sei de muitos casos de pessoas que morreram assim dentro de casa.
Fulgêncio insistiu:
— Eu levo Dona Vilma para pegar os seus pertences e a trago de volta. Não me custa nada.
Arnaldo estava irredutível:
— Nenhum lugar do mundo é melhor do que a casa da gente.
Nisto Teotônio irrompe sala adentro, dando ares de muita preocupação:
— Pai, a mãe está fazendo as malas. Por que o senhor não quer ficar aqui?
— Preciso demonstrar ao povo do bairro que sou inocente. Ninguém irá tentar contra a minha vida.
— O senhor está sabendo de alguma coisa que não nos contou.
— Por certo, puseram alguém pra me vigiar. Sendo assim, terei proteção gratuita. Vocês vão ficar aqui mas, se quiserem, poderão ir comigo pra casa. Se eu estivesse preocupado, não arriscaria a vida de vocês.
Nesse ponto, Dona Vilma e Wilsinho apareceram carregados de malas e mochilas.
— Estamos prontos.
Teotônio interpelou o irmão:
— Você também vai?
— Vou.
— Então, eu também vou.
Aí foi a mãe quem protestou:
— Se souberem que você foi pra casa, vai chover jornalista. É melhor que fique por aqui.
Para pôr pressa no pessoal, Arnaldo se esforçou para colocar-se de pé, recebendo o amparo de Vieira.
Fulgêncio quis saber:
— Vamos pegar o seu carro?
— Não estou em condições de dirigir. É melhor deixar onde está, com meu cunhado. Vamos andando.
Teotônio maquinalmente marcou a hora da saída: onze horas da noite.



38. A VIDA SE ACALMA

A noite de Teotônio não lhe proporcionou o descanso de que necessitava. Apesar de não ter aberto o envelope, as perguntas o atormentaram durante as três primeiras horas de sono. Corria por entre os altos prédios do centro da cidade, sempre alguém com um microfone acossando-o para que falasse. “Seu pai morreu virgem ou você não está dando bola pra torcida?” Aí olhava para o gramado verde, molhado e escorregadio, e tombava, torcendo o joelho, inutilizado para o futebol. Aparecia o irmão: “Você foi o rojão que estourou antes da hora. A seleção é minha. Quem vai desistir primeiro?”
Acordou às três e meia. Foi à cozinha. Bebeu um copo d’água. Abriu um dos livros, sem prestar atenção no título, mas depositou-o de volta na estante sem ler. Só aí notou os dizeres da capa: Nosso Lar. Desencadearam-se sentimentos de profunda angústia:
“De repente, meu lar se desfez. Cada um para um lado. Ainda bem que meu pai tomou a decisão de levar os outros para casa. Será que este apartamento algum dia vou chamar de nosso lar, meu e de Rosinha?”
Lembrou-se do enxoval que ficara guardado. Instintivamente, foi desembrulhar o pacote, mas não teve coragem de desdobrar as peças. Limitou-se a sentir o perfume de que estavam impregnadas. Era a mesma lavanda da noiva. Inebriante.
Voltou para o leito e só então conseguiu conciliar um sono tranqüilo. Três horas depois, soava o despertador. Acordando assustado, custou para reconhecer o quarto. Lembrou-se de que precisava estar no clube às oito, o que lhe daria bastante tempo para meditar a respeito das coisas que iria enfrentar durante o dia.
Após uma chuveirada prazerosa, passou o aparelho de barbear no rosto úmido, retirando os pêlos que despontavam. Vestido apenas com a toalha, dirigiu-se à cozinha para preparar uma refeição bem leve. Não se apertou, acostumado a isso desde criança, quando a mãe saía a trabalhar e o irmão era deixado sob sua responsabilidade.
Pôs uma toalha sobre a mesa da sala, encontrando ali os requerimentos de matrícula esquecidos no tumulto da noite sem assinatura do pai.
Ligou para Renildo, explicando-lhe a situação.
— Deixe comigo. Considere-se matriculado. Quer que eu passe pra apanhar você?
— Se não for atrapalhar...
— É caminho. Daqui a quarenta minutos, mais ou menos.
Quando foi avisado para descer, o apartamento estava em ordem.
Renildo foi quem puxou o assunto:
— Você está preparado para conversar com o presidente?
— Perfeitamente. Estou até levando o questionário da repórter para que ele aprove ou não.
— Você respondeu?
— Nem li.
— Melhor assim.
O trajeto era curto mas o portão do clube estava infestado de jornalistas.
O agente recomendou:
— Deixe o vidro levantado mas acene e sorria para eles. Não se esqueça de que estão fazendo imagens.
Teotônio não sabia se havia algum representante da estação cuja repórter lhe enviara o envelope. De qualquer modo, agitou-o significativamente, demonstrando que não se esquecera do compromisso.
O roupeiro o recebeu no vestiário, admirado:
— Você está chegando cedo. Caiu da cama? O treino é só às nove.
— Pensei que fosse chegar antes dos repórteres.
— Hoje vai encher de fotógrafos e de entrevistadores. Preciso esperar o professor para saber qual uniforme que pretende usar.
— E eu vou dar uma volta por aí.
Faltavam dez para as oito mas o carro do presidente já estava no lugar reservado. Quem não havia chegado era o dono do apartamento.
Teotônio resolveu que deveria entrar na sede administrativa:
“Quem sabe tenha sorte de ser visto e convidado para entrar.”
No mesmo instante lhe ocorreu outra idéia:
“Não tenho feito muitas orações ultimamente. Nos tempos da infância, por qualquer coisa, lá ia uma ave-maria. Às vezes, quando complicava um pouco a situação, era a vez do padre-nosso. Em casos extremos, dizia uma salve-rainha; isso, sem contar os atos de contrição do confessionário. Agora, quando já sei que tenho protetores atentos que me ajudam em todas as circunstâncias, esqueço-me de pedir que velem por mim. Então, em lugar de ter sorte, requeiro a boa vontade dos meus amigos da espiritualidade para um feliz encontro com o presidente...”
À menção do presidente, como num ato de mágica, a porta da diretoria se abre e o homem estende o braço, acenando para que o rapaz se aproxime:
— Vi que você estava no clube e ia descer para chamá-lo quando você resolveu entrar. Precisamos ter uma conversa séria.
Desta vez, lá no íntimo, Teotônio agradeceu:
“Muito obrigado, meus queridos. Não se esqueçam de que só encontrar o presidente não é suficiente; é preciso deixá-lo satisfeito com as explicações que solicitar.”
Notou o moço que era capaz de pensar de um modo e agir segundo os estímulos do ambiente. Foi assim que atendeu ao convite de se sentar na poltrona, enquanto o presidente se acomodava no sofá, tendo às mãos uma pasta de plástico fechada.
— Teo, os acontecimentos de outro dia me deixaram preocupado, entretanto, as repercussões na mídia foram mínimas. O que me pareceu é que o povo o está adorando, pelo seu ótimo desempenho em campo. Mas os fatos de ontem foram gravíssimos. Você me poderá dizer se o seu pai está envolvido de algum modo?
— Doutor, o senhor está sabendo que ele foi para casa, depois de ser entrevistado pelo comandante da guarnição?
— Não sabia. Na verdade, pensei que estivesse preso, conforme os noticiários da noite.
— Se ele pertencesse a qualquer quadrilha de traficantes, teria dinheiro e propriedades. No entanto, eu trabalhava como office-boy, quando fui contratado pelo clube. Precisava ajudar em casa, porque o soldo de sargento não dava para nós quatro, principalmente porque meu irmão era poupado para estudar.
— Desculpe-me, mas preciso fazer-lhe uma pergunta direta, apesar dos exames médicos por que você passou: você consome ou consumiu drogas?
O dirigente olhava fixamente para o jovem, como a observar-lhe as mínimas transformações fisionômicas.
— Jamais.
Teotônio poderia acrescentar vários argumentos contra o uso dos psicotrópicos, mas preferiu não sugerir que poderia estar preparado para esse tipo de interrogatório.
“Agradeço-lhes, queridos irmãos, as intuições que me estão enviando.”
— De qualquer modo, meu caro, vamos ter de estar atentos em relação aos jornalistas...
— Permita-me, senhor. Tenho aqui um envelope que uma repórter me enviou com algumas perguntas para que eu responda por escrito.
Tirou do bolso de trás da calça o envelope dobrado e estendeu-o para o presidente.
— Está fechado. Você não teve curiosidade de abri-lo?
— Eu disse a ela que, se não fosse aprovado pela diretoria, eu não lhe entregaria as respostas.
— Muito bem. Vejamos.
Abriu o envelope, leu rapidamente o conteúdo e devolveu-o ao jovem:
— Estas perguntas, por si mesmas, não têm significado algum. As respostas que você daria é que poderiam comprometê-lo e ao clube. Para não criar nenhum mal-estar entre os jornalistas, vou marcar com eles uma coletiva após o treino. Vá pensando nas possíveis perguntas que lhe farão, com base neste roteiro.
— Não seria conveniente o senhor e eu darmos uma passada nas minhas respostas?
— Não vejo necessidade. Sei que você está adiantado na escola e que uma de suas matérias prediletas é filosofia. Aplique os seus conhecimentos e fale com clareza toda a verdade. Se alguém for inconveniente, estarei lá e assumo a direção da entrevista. Até daqui a pouco.
Teotônio saiu com o coração aliviado.
“Não vai ser fácil passar pelo teste dos repórteres, mas, com a ajuda dos protetores, desde que eu seja honesto e humilde, irei sair-me bem. Não é verdade?”
Ao chegar ao vestiário, já lá estavam muitos companheiros, todos interessados em saber como é que estava o baleado e o filho.
“Vamos dar-lhes uma resposta positiva e otimista. Certo?”
Antes, porém, que Teotônio pudesse exprimir-se, manifestou-se o técnico:
— Todos nós temos de dar apoio ao nosso companheiro. Ele está aqui hoje corajosamente enfrentando todo tipo de desconfiança. Não devemos nós tornar-nos um pólo de desunião. Como dentro do gramado, também aqui temos de constituir um grupo coeso, porque a derrota de um será a derrota de todos. Podem crer que Teo terá todas as respostas para as perguntas que lhe farão logo mais na coletiva com o presidente. Sempre que vamos enfrentar os adversários, nós nos abraçamos e oramos, pedindo por integridade física e moral a Deus e aos santos de nossa predileção. Vamos abaixar a cabeça e dizer um padre-nosso fervoroso para que Jesus ampare o rapaz e a todos nós.
De fato, fez-se um silêncio compungido por instantes, até que recitaram todos a prece solicitada por Santoro. Terminada a oração, Teotônio requereu a palavra:
— Caríssimo professor, prezadíssimos colegas, não imaginei jamais que seria recebido com tamanho carinho. Todos querem saber como está meu pai. O sargento está em casa, recuperando-se do tiro que recebeu na perna. Vai passar uns tempos de licença, como acontece com os militares feridos em ação. Também deverá depor no inquérito em que se apura o envolvimento dos soldados assassinados no tráfico de drogas. Quanto a ser ou não culpado, devo dizer-lhes que eu mesmo desconfiei disso, quando reconheci a voz do cabo que morreu no tiroteio como a do bandido que me fez ameaça de morte, por eu estar investigando quem havia matado o meu futuro cunhado. Ontem, na porta de casa, depois que meu pai desceu da viatura e ia entrar, apareceram os que abriram fogo. Se quisessem matar meu pai, teriam conseguido facilmente, creio eu, porque seu poder de fogo era muito maior que a arma com que meu pai se defendeu. A nossa casa é pobre e honrada e meu pai é um policial honesto e pai amoroso.
Pela primeira vez os sentimentos iam transformando-se em pranto. A própria alocução comoveu o rapaz, cônscio de que estava sendo merecedor de um pouco da luz dos espíritos protetores. Mas foi a recordação do progenitor que o comoveu e abalou emocionalmente.
Recebeu o abraço do técnico e muitas expressões de solidariedade e compreensão.
Durante o treino, Teotônio empenhou-se mais em servir os parceiros, atuando com maior objetividade, no sentido de realizar jogadas em progressão contra a meta adversária. Ao contrário do habitual sistema de dribles, conseguiu, através de toques ligeiros, imprimir maior velocidade à bola, sempre colocando-se no espaço que conseguia abrir entre os adversários, de forma a poder tabelar ou lançar os atacantes melhor situados.
Nas arquibancadas, os torcedores vibravam a cada lance, aplaudindo e gritando frases de estímulo ao jovem atleta e a toda a equipe.
Santoro percebeu que se esforçava o moço, como a corresponder ao afeto que havia recebido. Então, suspendeu o coletivo, misturou os titulares com os reservas, deixou Teotônio no banco, ao seu lado, e determinou um treino leve de dois toques, mera recreação, sem finalidade de estabelecer táticas ou estratégias. A torcida não gostou mas não vaiou, tendo em vista que Teotônio se aproximou do alambrado, atendendo aos pedidos de autógrafos, rodeado por fotógrafos e cinegrafistas.
“Com certeza, receberei o mesmo auxílio quando me vir frente a frente com os repórteres. Posso contar com isso?”
Sabia que sim.
Realmente, no salão nobre do clube, diante de dezenas de microfones, Teotônio, mais ou menos, repetiu a atuação do vestiário e do campo, saindo-se muito bem do interrogatório a que foi submetido. Nos telejornais da tarde e nos noticiários noturnos, foi dada ênfase à naturalidade com que o rapaz enfrentou as questões mais espinhosas, tudo muito bem ilustrado com sua performance no treino.
Caso especialíssimo de referência elogiosa, foi a da repórter que teve todas as perguntas respondidas com muita clareza e veracidade.



39. DESFECHO

Vamos deixar o nosso herói, noiva e respectivas famílias ajeitando-se para as transformações que adviriam às suas vidas com a aquisição do apartamento, com a transferência das escolas e com as demais atividades concernentes ao casamento.
De fato, Renildo se pôs a campo para a efetivação das matrículas dos jovens em escola indicada por Ernesto. Em três dias, estavam os processos sobre a mesa do delegado de ensino, porque o ano ia adiantado e só com uma justificativa bem fundamentada iria obter o deferimento da autoridade escolar. Mais dois dias, o despacho foi positivo, com as razões fornecidas ao vivo e em cores, dado o drama, que repercutira na mídia em geral, em que o jovem atleta viu ameaçada a vida do pai.
O apartamento foi comprado de forma ainda mais simples, tendo o clube pago de acordo com o contrato, à vista do interesse demonstrado por Arnaldo, procurador oficial do filho. No cartório, tudo foi assentado conforme a lei, passando Teotônio a possuir sua primeira propriedade.
Mais complicados foram os cursos e exames pré-nupciais, exigência de que não abriu mão Dona Flávia, desconfiada de que o noivo poderia ter contraído o vírus da AIDS ou alguma outra moléstia sexualmente transmissível, já que ela não se satisfizera com as explicações do moço relativas aos acontecimentos que envolveram os homossexuais.
Rosinha também enfrentava o mudança de estado civil com alguma hesitação ou muita ansiedade, ardentemente apaixonada numas horas, nostálgica e distante quando se imaginava entrando vestida de noiva na igreja. Foi assim que a aliança mudou de mão várias e várias vezes, enquanto as proclamas produziam o seu efeito legal.
Os exames médicos preventivos esbarraram na firme resistência do rapaz:
— Rosinha, eles estão querendo examinar meu esperma. Para isso, preciso masturbar-me dentro do laboratório. Eu não vou fazer isso. Acho uma violência e sinto profunda vergonha. O pessoal do time ficou sabendo e não se cansam de mexer comigo. É uma situação vexatória.
Rosinha supôs um expediente:
— Eu vou com você...
— De maneira nenhuma. Nós nunca nos permitimos essa liberdade e não vai ser naquele ambiente que iremos...
— Você não me deixou concluir.
— Vamos ver aonde você quer chegar.
— Eu vou com você ao apartamento...
— Eles já me disseram que não posso levar nada de casa. Tem de ser ali mesmo, dentro do copinho que me mostraram.
— Ainda não consegui concluir o meu pensamento.
— Desculpe.
— Se a gente for ao apartamento, vou resolver o problema que estou enfrentando: o da virgindade.
— Esse é problema seu, não da Medicina.
— Eles querem fazer exames ginecológicos. Podem realizar mesmo em mulheres virgens, mas os exames não são completos.
Teotônio sentiu um calor muito forte passar-lhe por todo o corpo.
“Será que esse é o chamado fogo da paixão?”
Pensou e se arrependeu, como se estivesse exprimindo um pensamento pecaminoso. Mas os pruridos de moralidade incutida desde a infância pela religião católica esbarraram no determinismo absorvido pelo estudo das ciências e da doutrina espírita.
— E seu desejo de subir virgem ao altar?
— A virgindade deve ser da alma e não do corpo. Não me coloque mais caraminholas na cabeça.
Três dias depois, cada qual era examinado nas alas do laboratório correspondentes aos noivos e noivas.
Esperariam mais quinze dias pelos resultados dos exames clínicos, para marcarem as datas definitivas das cerimônias civil e religiosa. Nesse meio tempo, cabularam aula cerca de dez vezes, sempre estudando por quais transformações fariam passar a decoração do apartamento.
Ernesto foi convidado para testemunha da solenidade oficial, ele e a esposa. Vieira foi encarregado de dizer algumas palavras essenciais, segundo o Espiritismo, convocando os espíritos de luz para darem assistência ao jovem casal.
Para a cerimônia religiosa, Teotônio convidou para padrinho Renildo, o Doutor Rosalvo e o presidente do clube, tendo todos rejeitado a honra, argumentando que ficariam os familiares sentidos se não estivessem junto ao filho no altar da igreja. Foi assim que Arnaldo, apoiado numa bengala, e Vilma, ficaram ao lado do filho, aguardando a entrada da noiva. Do outro lado do altar, Flávia não conseguia conter o pranto, porque Rosinha dava o braço ao tio, na falta do pai.
Fulgêncio fez questão de elogiar os nubentes, perante a nave cheia de torcedoras infelizes, que buscavam saber o que a noiva possuía que faltava a elas. Mas precisaram calar-se, porque Rosinha entrou deslumbrante em seu vestido branco de rendas, cuja cauda se estendia vários metros pelo corredor. Trazia no corpete um botão de rosa vermelha, cujo significado não passou despercebido da maioria.
Enquanto se deixava embalar pelo quarteto de cordas que entoava a Marcha Nupcial de Mendelsson, Teotônio dirigia-se aos amigos da espiritualidade:
“Muito obrigado, irmãos, pela glória desta profunda alegria e felicidade. Sei que devo trabalhar para manter-me sob sua divina luz. Sei também que poucos momentos serão tão bons quanto estes. Então, protejam-me dos males, insuflando em meu espírito a mansuetude e a compreensão, porque...”
Não concluiu. Tinha de receber sua esposa.
No dia seguinte...


Quem não estiver satisfeito com o encerramento abrupto desta narrativa não deixará de apontar os mistérios que ficaram sem solução. Que importa? A vida de ambos haverá de sofrer o impacto dos acontecimentos. Sob a luz do Espiritismo, no entanto, saberão atribuir a cada vicissitude o correspondente valor cármico, tornando a luta de cada dia mais valiosa para o efeito evolutivo que se busca em cada encarnação.
Por exemplo.


No dia seguinte, estando Teotônio apreciando a vista da janela do apartamento, enquanto ouvia Rosinha transformar a felicidade em meigo canto, pela reprodução de um sucesso do momento, soou o telefone celular:
— Pronto.
— Estou ligando para felicitar o amigo pelo magnífico casório.
Teotônio estremeceu. Parecia estar recebendo uma ligação do Cabo Farias, lá do outro mundo. Mas não teve tempo para refletir, que a voz prosseguia imperturbada:
— Quero agradecer por você ter reconhecido a voz do encapuzado como sendo a do defunto meganha. Também tenho de deixar clara a razão de seu pai não ter encontrado o mesmo destino do outro, naquela tarde do tiroteio: é que não quisemos fazer sofrer quem nos dá tanta alegria.
Teotônio ainda teve presença de espírito para observar:
— Como é que você acha que estou sentindo-me, depois de ouvir tudo quanto você está dizendo?
— Você deve sentir-se muito bem, porque ficou sabendo que sua família está a salvo, desde que, ouça bem, ninguém queira interferir em nossos negócios.
Desfeita a ligação, buscou o rapaz o registro no seu aparelho da origem da chamada. Imediatamente, discou o número, porém, encontrou como resposta o som que indicava que o telefone estava ocupado.
Tentou mais três vezes, obtendo sempre o mesmo ruído intermitente. Enquanto esperava, refletiu que, se não tivesse contado a ninguém a respeito das ameaças que recebera, não teria sofrido os inúmeros dissabores morais das desconfianças, principalmente porque acusara publicamente o cabo de tê-lo acuado e de pertencer a uma quadrilha de justiceiros ou de narcotraficantes.
“Vou adotar o sistema que reina nas favelas: a lei do silêncio, porque, em boca fechada, não entra mosquito. Meus benignos protetores, por favor, inspirem-me a melhor maneira de proceder, para não prejudicar meu relacionamento com a Rosinha, pois, se conto a ela o que acaba de ocorrer, ela vai concluir que o assassino do irmão está solto. Se não conto, vou começar muito mal a nossa vida em comum, escondendo dela algo de tamanha importância. Que fazer? Ponham tudo isto na conta das coisas ruins a que ontem fiz referência, no altar.”
Iam por aí as idéias do moço, quando recebeu novo telefonema:
— Oi, Wilsinho, e aí?
— Oi, mano, tudo bem?
— Tudo bem.
— Grandes novidades: saiu a convocação para a Sub-15. Adivinha quem está lá. Nada mais, nada menos que este que lhe fala.
— Parabéns, querido. Agora a sua ajuda de custa vai duplicar...
— Já sextuplicou. Tudo bem com a cunhada?
— Ela vai ficar exultante quando eu contar a ela.
— Preciso desligar. Você foi a segunda pessoa que ficou sabendo pela minha boca.
— Parabéns!
— Logo vai chegar a sua vez.
— Estou esforçando-me para isso.
Ia dizer que, se fosse por vontade de Deus, estaria convocado.
Teotônio ainda permaneceria a olhar absorto para a cidade a seus pés, enquanto se lembrava da pergunta que Ernesto lhe fizera um dia: Você não acha que a vontade de Deus é imperscrutável?





FIM


Indaiatuba, de 14.11.02 a 20.02.03.

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