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Contos-->VIDAS E MORTES DE EULINO CABRAL -- 22/01/2005 - 15:35 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AQUI JAZ EULINO CABRAL. UM HOMEM QUASE FORTE, UM HOMEM QUASE REALIZADO, UM HOMEM QUASE POETA, QUASE UM HOMEM

[*1970 +2004]

Epitáfio 1

- É engraçado como essa festa, esse frege, me faz lembrar tão nitidamente a figura do Cabral. Acho que poucos, como ele, saberiam aproveitar um momento assim para mostrar sua verve, sua retórica sempre tão aplaudida. De resto, grande valsante, perfeito gentleman, sempre com um sorriso para as damas, uma frase espirituosa para os cavalheiros. Mas implacável no tribunal. Seria capaz de fazer verter lagrimas nos jurados pelo assassino confesso da mulher e dos filhos ou ainda provar (isso foi antes do DNA) que uma criança era, de fato, filha de um alegado pai apenas porque ambos passavam a língua constantemente nos lábios. O que ninguém sabia é que o Cabral tinha passado xarope de groselha e mel na boca da garotinha antes da seção do júri. Ah! Ah! Ah!

- Era uma raposa, pelo jeito?

- Sim, sim. Mas não apenas em termos profissionais. Aliás, confesso que nunca fui capaz de entender como um sujeito meio calvo, com uma barriga proeminente e uns olhos de carneiro destinado ao sacrifício fosse capaz de tantas conquistas amorosas. Lembra-me, por exemplo, a mulher do Costa Teles, um financista sólido da construção civil, que rendeu-se ao Cabral apenas por ouvi-lo recitar em voz alta uns trechos de Shakespeare que, aliás, acho que nunca foram de Shakespeare coisa nenhuma. Ah! Ah! Ah!

- Pelo que você está dizendo, esse sujeito era um espertalhão, no pior sentido do termo...

- De certa forma, sim. Mas era também um homem que sabia dar tudo de si por uma causa quando a considerava justa. Ou então de arriscar família, posição social, amigos, tudo, para viver uma daquelas paixões irracionais. Acho que... sim ... acho que o Cabral era pequeno demais para conter toda a vida que existia nele ou para se fazer amado por muito tempo pelo que era, ou como era. Mas, por favor, não o julgue tão ínfimo ou safardana. Vi (e inclusive ajudei-o) a fazer a fome menos negra para alguns. Também o vi passar a noite em claro velando por sua filha febril, ou chorar pela morte de um velho cão que tinha em casa. Não, não. Eulino Cabral era um pouco de tudo, de paz e guerra, de amor e gozo irrefreável, de pai e sedutor. Era um homem que viveu, amou, que sorriu quando pode e que chorou quando não suportou a dor. Eulino era um homem que, aos quinze anos, fugiu com um circo, para se tornar dono do destino. Era um indivíduo que se fez por conta própria, uma espécie de ditador de si mesmo. Ele era, antes de tudo, um autor consciente de seus vícios e conquistas.

- Você ainda não me disse como ele morreu...

- É verdade. Não disse. Talvez por que o Cabral não tenha morrido (Calma, não estou bêbado, não se preocupe.). Acho que o Cabral apenas abdicou de continuar a ser o Cabral. Talvez tudo tenha começado quando sua mulher descobriu que ele tinha um caso de longa data e, pior do que isso, um filho não muito bastardo, com outra mulher. Depois, descobriram que ele havia forjado provas num julgamento de direito de posse. Coisa grande, uns dois ou três mil hectares de terras. A OAB estava tentando casar o registro dele. Pode ser também que tenha descoberto, de repente, que a moça linda e loira com a qual se casara tornara-se uma matrona rabugenta ou que a filha (uma riponga que fumava maconha no café da manhã) estava decidida a frustrá-lo permanentemente, vivendo com uma espécie de hippye temporão; talvez também o tenha abalado ver-se no espelho como um homem que envelhecia, cada vez mais calvo, barrigudo e que precisava tomar viagra para se sentir másculo. Pode ter ocorrido ainda que, ao ter uma ereção, Eulino já não colocasse uma camisinha, mas sim estourasse uma garrafa de Dom Perignom. O fato é que seu carro saiu da pista num lugar absolutamente plano e o conduziu para o limbo. Foi advogar a causa perdida do diabo. Sabe de uma coisa? Ainda acho isso tudo uma merda! Ainda sofro pela ausência não comunicada de um cara que sabia ser amigo como poucos. Mas não vou deixar de fazer um brinde a um homem que conseguiu viver como todo homem deveria viver.

Epitáfio 2

- O Lino era um cara muito doido, tá sabendo? Sangue bom pra cacete, maluco mermo, da hora. Seguinte: a primeira vez que a gente se cruzou, o cara tava numas de horror, tá ligado? Tipo assim, maus mermo, sem rango, sem money, fodido pra caralho. Mas tava com aquela nóia de topar tudo, relá geral. Flagrei o cara na quebrada, levei uma idéia, botei fé. Fui com ele lá no barraco da minha coroa, tá ligado? O cara comeu que nem um boi, meu! Depois a gente saiu pra night. Sabe cumé, né não? O cara tava precisando de uns troco, eu também, o Lino meteu o cano nums gringos que tava de bobeira. Aí, ó! Não te falei, cumpadi? O cara era de rocha, topava qualquer parada. Sangue bom na veia. Daí a gente voltou lá pro barraco, na moral. Peguei minha mina, mas o Lino só na vela não virava. Aí a gente chamou uma outra cachorra que eu flagrava e todo mundo foi dar um rolê. Altas paradas, tá sabendo? Tipo assim, ó: restaurante, com pinguim e tudo, táxi, motel. De boa, véio. A gente dormiu pacas, meu. As mina dormiu com a gente, mano, tudo no relax. Daí em diante era só ficar na fita, tá sabendo? De noite a gente passava o cerol nos gringos, depois ia pro sacode. Chovia mulher, véio. Com o Lino não tinha crise, cumpadi. Era só correr pro abraço. Dinheiro, muita mulhé, os bagulho só papa-fina. O cara era animal mermo. O maluco já tinha ralado peito geral. Com quinze ano, meu cumpadi, o cara fugiu de casa com um circo. Ah! Ah! Ah! Porra, brou, fugir cum circo! Muito louco!

- E o que rolou depois, véio?

- O Lino tava de caso com uma guria, que era esquema de um maluco do CV. Tipo assim, o sujeito fechava geral, ninguém botava banca nem fazia frente, ligou? Maior atividade. Mas o Lino não tremia na base e ficava só machucando as carnes da mina, sem neura. E tem mais: as treta lá dele não tinha pilantragem não. Neguinho que queria tirar uma não precisava nem procurar, o Lino tava lá, de boa, nunca ralou peito. E guentava bucha legal, tiro, faca, braço. Ali no pedaço já tinha nego da comunidade pedindo favor pro Lino, dono de boca pagando proteção e outros babado. O problema é que o vagal do CV tava ligado na fita, morou? Ficava de bronca, na maior fissura de ventilar o Lino, mas não guentava a chinfra. Aí levou uma idéia sinistra com uns caras da pesada, na moral. Liberou uma verba manera, tipo dólar mermo, tá sabendo? E o Lino sem se ligar na fita. Só ralando coxa, que a nega era gostosa pra caralho!

- E aí?

- Aí que o santo não ajudou, né, cumpadi. O Lino tava tirando onda no bar do Neguinho (tu flagra qualé?), pagando no ouvido de uma mulata que fazia ponto na quebrada quando o barulho rolou. Os caras chegaram num Opala preto, assim de magnata, já de cano na mão. Trabucão mermo! 765, Doze, o caralho. E o porra do Lino só no love com a mina. Nem sacou o bafon. Só ligou as idéias quando a mulata gritou e saiu correndo, mas aí o auê já tava rolando. O cara da escopeta atirou primeiro, acertando o ombro do Lino, mas o cara era fodido mesmo e deitou rolando, pegando o cano da cinta e metendo os peito pra riba dos cara. Conseguiu furar a barriga de um e ainda deu um teco na cabeça de um gordão. Mas o cara da escopeta, puta merda, também tinha treta com o demo e descarregou os dois canos na barriga do Lino. Porra, que bosta. O sangue bom ainda tentou levantar a cabeça, mas depois perdeu geral. Morreu matando. Puta maluco taí, meu cumpadi. Maluco não morre na cama mermo. Mas é um maluco que merece vela e reza, ligou?

Epitáfio 3

Tereza colocou a mão suavemente sobre o ombro de Amélia, numa carícia sutil e confortadora.
- É difícil pra você deixar de pensar nele, não é?
Amélia mordeu levemente o lábio inferior, talvez porque não quisesse chorar naquele momento ou talvez porque apenas as palavras não poderiam jamais fazer sarar feridas tão profundas. Tereza, porém, era sempre tão empática, tão suave, que o silêncio não bastaria a Amélia naquele instante.
- Sabe o que é pior? Não é a falta física do Euli. Ele era apenas um homem, afinal. O que mais dói é não ter o todo dele, entende? Sua alma, seu coração, sua voz no escuro dizendo pequenas obscenidades ou aquele jeito de me olhar nos olhos e dizer que me amava apenas com gestos. Sabia que ele uma vez chorou abraçado às minhas pernas, assim, sem mais nem menos? O engraçado é que apesar dessa devoção que eu sentia nele, sempre soube que o Euli era livre, que não tinha cadeias, compromissos ou essa noção vulgar de responsabilidade. Aliás, desde que ele fugiu com um circo que estava na sua cidade, aos quinze anos, acho que ele de certa forma fez um pacto com um destino: não me importo com a direção a ser seguida, desde que eu esteja ao leme ou algo assim.
Tereza permaneceu em silêncio, limitando-se a fitar a amiga com olhos que quase nunca condenavam, apenas compreendiam.
- É tão difícil, às vezes, você entender os poetas. Ele era capaz de se extasiar diante de um vitral de igreja ou de ser indiferente a uma pintura famosa, por exemplo, mas sempre conseguia ver, no que adorava ou detestava, formas de expressão de vida, de dor, de sentimentos, mas não desse modo banal que eu conto, e sim de forma muito mais visceral, meio sacra, quase como um gourmet de palavras, que saboreia os traços, os sons e as idéias.

- Sei que é um lugar-comum mas, no seu caso, é verdade, Amélia: o importante foi o que vocês viveram...

- É, pode ser. Ou talvez não. Talvez o que tenha realmente importado foi saber que quando ele estava com outras mulheres, era em mim que pensava ou que sua embriaguez boêmia tinha algo de mim como mote. Em seus versos, acho que minha alma deve ter flutuado e naquelas noitadas loucas em nos amávamos, acho que eu o absorvi inteiro, completo, até a última gota. Euli, talvez, tenha morrido já sem alma. De certo modo, acho que eu devorei a alma de um grande homem, numa epifania entre doce e dolorida.

Epitáfio 4

Joana esfregava a roupa furiosamente, como se quisesse estraçalha-la. Suada, com um lenço sujo amarrado na cabeça, vez por outra soltava um palavrão, meio cuspido, misturando raiva com saliva. Entre mais um xingamento e o bater furibundo da roupa na tábua do tanque, não notou a chegada de sua vizinha, a Das Dores, que já chegou saudando no seu jeito debochado:
- E aí, muié, já tá na academia de ginástica a essa hora?
A Joana parou um instante, limpou o suor da testa com as costas da mão direta e resmungou:
- Fazê o quê? Com um traste de marido igual ao meu não tem muita escolha: ou é tanque, ou é filho ou é fogão. As vezes, tudo junto.
Das Dores que já conhecia a arenga, mas não o remédio pros males da amiga, limitou-se a grunhir um “É a vida. Cada um tem a sua cruz”.
Joana, depois da breve interrupção, voltou ao trabalho, mas aproveitando a platéia, retornou ao velho discurso:
- Essa vida de merda é culpa daquele desgraçado que não presta nem pra arrastá um gato pelo rabo. Fica aí deitado o dia inteiro e quando arruma serviço não consegue nem esquentá banco, o filho da puta. E pensá que quando a gente se ajuntou ele prometeu que eu não ia precisá de trabalhá e coisa e tal. Xibungo.
Das Dores, que não deixava escapar a chance de bolinar com a vizinha, alfinetou:
- Tá certo, mas você pelo menos tem o consolo do Zé da Oficina. Já é alguma coisa.

- Tenho e não me arrependo. Aquilo é home pra três, quatro hora de cama. E não fica sonhando e falando bestage que nem o Linoca. Tem dia que o palerma fica choramingando porque não teve corage de fugir com um circo quando era moleque. Diz que podia ter sido bandido respeitado, doutor, poeta e não sei que besterada mais. Pois sim. Eu é que sei pra que essa lesma serve: pra dormir de boca aberta enquanto leva chifre.

- Mas muié, por que ocê já não largou esse trambolho?

- E com que vantage? Com quatro fio, sem um puto no bolso e véia e acabada desse jeito. O jeito é ir agüentando a tábua até onde Deus quiser.

- Talvez um dia o Eulino mude – arriscou a Das Dores

- Só se for de endereço. Home desse tipo só serve pra ficar na gotera enquanto a muié dele dorme com outro. Esse não vai precisá nem de caixão quando morrê. Já tá morto memo.

E voltou a bater a roupa no tanque, enquanto grunhia palavrões.


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