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Contos-->OS MENINOS E A CHUVA -- 03/01/2005 - 13:35 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OS MENINOS E A CHUVA

Foi em uma tarde de verão que os vi, durante uma dessas chuvas torrenciais de curta duração com que a natureza tropical procura abrandar seus humores térmicos cheios de fúria.
Durante o mini-dilúvio, busquei abrigo em uma marquise, ansiosamente disputada por vendedores ambulantes, casais de idosos, homens sisudos com os competentes e igualmente sisudos ternos e pastas executivas. Lá também se apertavam senhoras elegantes e meticulosamente penteadas, assim como pobres e cinzentas mulheres cujos rostos, peles e, principalmente, os olhos, atestavam silenciosamente seu desencanto com a vida. Classes sociais tão distintas quanto indiferentes à sua junção imprevista em um mesmo e plebeu local. Não pude deixar de pensar que se Marx houvesse elaborado os princípios de sua ideologia em plena rua, num dia de chuva, sob uma marquise qualquer, talvez o destino da doutrina marxista fosse outro. A despreocupação momentânea de todos com os arquétipos sociais, econômicos e morais que se acotovelavam com medo da chuva era tão evidente, quanto democrática.
Passado o aguaceiro e a efêmera igualdade entre os desiguais que ela trouxera, notei alguns meninos de rua que, alheios ao local no qual estavam (o centro de uma cidade grande qualquer) e à presença das pessoas que transitavam, cuidadosamente indiferentes, corriam pelas laterais das ruas, chapinhando a enxurrada abundante com os pés, em tentativas bem-sucedidas de molhar os companheiros. Sorrisos felizes iluminavam os rostos escuros, pardos, amarelos e pálido-exangues das crianças (um degradê da fome, como poderia dizer um artista politizado ou um político artístico). Esquecidas da barriga mantida sistematicamente vazia, das noites de inverno nos vãos de portas, da cola de sapateiro, da violência física, sexual e psicológica de todos os dias, gritavam obscenidades alegres. Nesse instante fugaz, se dedicavam apenas ao que deveria ser a tônica em suas curtas vidas: a alegria de brincar, de poder construir os castelos de areia que dão forma e substância à infância.
Meu primeiro impulso, como portador de tantas utopias sobre como transformar aqueles pequenos seres sujos, maltrapilhos, inumanos, em seres que deixam rastros na vida, foi o de alertá-los para o perigo de vermes, bactérias e outros bichos mais que a água que se dirigia ao bueiro desentupido mais próximo provavelmente teria.
Nos meus devaneios ociosamente inoperantes, esses meninos deveriam ser lavados, escovados, instruídos, protegidos. Deveriam tornar-se gente, ser e estar humanos e atuarem como agentes de um destino que seria transmudado de inferno em uma pequena parcela de paraíso. Tudo graças aos meus sonhos revolucionários.
Mas não cheguei a abrir a boca. Veio-me à mente o não-ter e o não-ser desses meninos, os lares desfeitos ou inexistentes de onde provêm, os pais alcoólatras ou marginais, a brutalidade policial ou ainda a omissão perene da sociedade. Ocorreu-me também o eterno discurso político sobre essas crianças e a ineficiência fanfarrã das iniciativas para tirá-los da rota do fim prematuro.
Não. Melhor esquecer meus sonhos de redenção daqueles que nem anjo da guarda possuem. Melhor deixá-los brincar. Melhor deixá-los correr atrás dos companheiros fingindo que são, para todos os efeitos, realmente crianças e não adultos em miniatura, cuja vida, a exemplo de seus corpos raquíticos, tende a ser curta e anêmica.
Os vermes, os micróbios, os vírus e as bactérias que a água suja da rua possa conter, no final das contas, são o menor de seus problemas.
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