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Contos-->REENCONTRO -- 03/01/2005 - 13:31 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
REENCONTRO

Elias dos Santos

O céu estava escuro na linha do horizonte lá pelos lados do Pantanal de Rio Negro. O sol, quase escondido atrás da fumacera das nuvens, vinha vindo de um jeito macambúzio, como um vaga-lume da manhã, iluminando, meio sem vontade, os campos e as lagoas de igarapés. Mais parecia um emissário da chuva, que seguia na frente, anunciando a chegada da soberana.
No terreiro da fazendola, as galinhas ciscavam o chão, ligeiras, com seus pés de garrancho seco, os olhos sem pestana sondando, desconfiados, o dia que começava.
Aqui e ali bacorinhos de todo o tipo comiam restos de milho, alface e outras pitanças, que tinham sido depositadas nos cochos, mas, pouco depois, espalhadas a torto e a direito pela fome da bicharia.
Do lado do poente, perto de uma lagoa grande, que não secava nem mesmo no estio, algumas vacas arrancavam da grama braba sua primeira refeição, sacudindo o rabo e o mosquedo, enquanto num cercado meio desmantelado carneiros pelados, vez sim, vez não, berruminavam, com seus olhos dorminhocos fixando, filosoficamente, o pequeno mundo da fazenda.
A vida por ali aparentava seguir seu rumo certeira, sem paradas nem sobressaltos. Era uma comitiva de gente competente, a tal vida, mas gente sem piedade, que não pára diante do peão caído. Era, pouco mais ou menos, o que pensava, difusamente, o homem que saiu pela porta do barracão de pranchas e toras. O chapéu de palha esfiapado, que combinava de truz com as calças remendadas e a camisa xadrez desbotada, escondia a testa estreita e cultivada por pequenas moitas de um cabelo crespo, rebelde, do lindeiro.
Desacorçoado, dirigiu-se à bomba d’ água de mão, já troncha nas suas juntas chicoteadas pela idade, escondida sob um alpendre, que servia também às vacas e aos cavalos que vinham pegar a fresca no sol de meio-dia. Enquanto abaixava e levantava o cabo de ferro já bichado pelo tempo, o homem bocejava repetidas vezes, sem conter a vontade de voltar pra cama. Depois de tantos anos naquela vida, Sebastião ainda não podia deixar de se sentir estremunhado, com o estômago ruim, logo que se levantava.
Vivia se enraivando com o rompante que tivera, uns vinte anos antes, quando cismara que ia ganhar a vida naquele socavão, cheio de mato, bicho e canseira. Tinha se ajojado com Almerinda, moça cheia de talento, arriscando um olho. Fôra um repente, típico nele e no seu povo, gente de pito aceso, fogo de palha. Vira a moça, gostara do seu jeito desempenado, sem arrebicação. Ancas firmes, sorriso faceiro. Casara depressa. O sogro de cara feia, os cunhados cofiando os bigodes. Mas tinha uma fome grande de carne morena, apetitosa. Um braseiro que fazia o peito arder, a cabeça entontear. Tinha que possuir Almerinda, sentir sua língua de hortelã, se embrenhar naquele sumidouro noite após noite, feliz, completo. Que levasse a breca a desconfiança da parentalha da mulher.
Dois meses depois de casado, juntando os tarecos no lombo do marchador, se fizera no mundo e viera praquele fundão. Se sentia forte, o dono da tropa. Ia se ajanotar em pouco tempo. Nos primeiros anos, até juntou um de seu: umas vaquinhas amojadas, um jipe espanta-vizinho e os cacarecos de casa. Tinha até uns tremoços no banco. Coisa pouca, mas orgulhável.
As coisas, no entanto, tinham desandado desde a seca grande (“caiporice danada”). Os bezerros morriam cedo, as pragas não davam sossego pras plantas pequenas. A criação e a horta sempre minguadas, borocochôs. Assim, entre misérias e farelos de alegria, lá vivia sua vida, dotado de autonomia e, ainda assim, farto de subserviência. Troço mais esquisito esse. Ser patrão e pau-mandado ao mesmo tempo, continuamente, é algo meio difícil de entender e de aceitar. Alguma vez por cima, muitas por baixo e a vida sendo levada e relevada de peito. Nunca fôra de fazer farol, só queria ter uma matula que desse pra família ir vivendo, com a Graça de Deus. Mas, aqui estava ele, nem tão velho na idade, mas homem acabado e consumado pela labuta de uma terra madrasta. Ainda forte de opinião e de macheza, mas gastado como o vício.
“Fazê o quê? É a vida!”. Murmurou, em voz alta, aquilo que já era seu estribilho na vida. A verdade é que estava se sentindo esgrovinhado, com os nervos frouxos, cansado daquela “luta braba”, das pequenas desgraças de um dia-a-dia que reduzira o rapagão capaz de sonhar de outrora a um semi-velho acanhado, um peão acuado. A mulher e os filhos também apresentavam aquele mesmo jeitão desconsolado e lombriguento, de quem quebra pedra todo dia, mas sabe que nunca que acaba com a pedreira.
Tirando água do poço, Sebastião lavou o rosto, onde se espalhava uma barba de uns dois dias, forte e cerrada. Depois, passou um pouco de água pela macega de cabelos negros e duros, repuxando-a para trás, voltando a cobrir a cabeça com o chapéu velho.
Fungando forte, o homem olhou para a cerca meio arriada que arroedeava suas terras, dando ao diabo a mania das vacas e dos cavalos de ficarem esfregando os costados nos paus já meio podres que seguravam o arame farpado enferrujado e emendado. Tinham desgualepado tudo. Muitos postes estavam caídos e os bichos só não passavam pra fazenda ao lado por preguiça ou talvez porque a grama pisada ainda dava pra enganar o bucho.
De qualquer forma, o furdunço estava feito. E tinha que ser reparado. “Se eu pegá essas peste coçando as cadera nus pau, vô tocá o terçado pra cima do lombo, carcá o pau nos costado deles”, gritou pensando, Sebastião.
Mas sabia que não faria isso. A grama era pouca, os animais estavam magros. As vacas, além de dar leite pra casa, ainda tinham que alimentar os bezerrinhos, não podia judiar das coitadas. Os cavalos, então, estavam que era só pele e osso, parecendo mais matungo de caboclo puaço do que bicho de serviço. Por aqueles dias o baio tinha afinado na lida!
Sem encontrar presteza pra pegar as ferramentas, Sebastião voltou a pensar no roubo. Repisando. Aliás, não havia um único dia em que não pensasse nisso. O ar tristonho da Ritinha, sua mais nova, não o deixava esquecer.
- Tadinha da bichinha.
Sebastião murmurou a frase com voz rouca, balançando a cabeça de um lado pra outro, devagar. Ele não sabia vercejar aqueles nomes bonitos, floreados, que a gentona da vila usava pra falar das coisas cá de dentro. Mas sentia que sua angústia era maior do que Ritinha, que passava muito por riba de sua cabecinha repartida em duas tranças.
Também não atinava com quem era o peste que tivera coragem de roubar um bezerrinho de dois meses, guacho, sem sustância nenhuma, levando o bichinho embora numa noite de chuva, já estava pra umas 7 semanas.
A ladroagem de gado ali era muita, lugar aguacento, difícil de saber quem viera, por onde saíra. Amoitadô é que não faltava! O que faltava era gado no pasto dos sitiantes a cada dia e a polícia sem poder fazer um apanhado do que estava acontecendo. De mais a mais, do que adiantava denunciar o amoitamento? A guarda só parava mesmo em fazenda de casa-grande e caminhão, prum cafezinho, pras farinhage do carro de preso. Em fazendinha, pra pisar em merda de galinha e vaca, nunca se via bate-pau.
O pior era que o tal bezerro, que já tinha até nome, tinha sido dado à Ritinha, no seu aniversário. Sebastião e a mulher tinham decidido isso depois de ver que em casa não havia mais do que 2 reais, em moedas de 10 centavos. Quedê dinheiro pro presente da menina?! Nem pra babuje tinha. Toca Dona Almerinda fazer um lacinho de fita vermelha e botar no pescoço do bezerrinho que tinha rompido por aqueles dias e, junto com a filharada mais o marido, cantar parabéns pra molequinha, importantizada com a atenção de todos e, por causa disso, feliz com o presente que já era coisa de todo dia, colega de brinquedos, mas que virara presente de verdade no aniversário meio descoroçado.
E depois aquela desgracera! O chuvúvlio de noite, o roubo, a menina chorando que fazia dó já de manhã cedinho, quando viu que o bicho não estava no cercado. Nem rastro Sebastião tinha encontrado. A chuva apagou tudo.
Ritinha, depois do sumiço de Pintadinho, o bezerrinho que tinha uma mancha preta embaixo de cada orelha e uma pata encolhida, ia ficando cada dia mais triste. Nem a boneca de pano ganhada da madrinha resolvia. E Sebastião desesperado, sem saber o que fazer. Tentara arrumar outro bezerro, maior, mas qual o que, a menina queria mais era o Pintadinho, com o lacinho de fita vermelha no pescoço e as manchas pretas, uma embaixo de cada orelha.
Ainda à noite a bichinha tinha tido febre alta, fazendo Dona Almerinda ter um aufá de canseira. Ficou acordada até tarde da noite, fervendo chá de alecrim com mel.
- É o diabo, roncou Sebastião.
Ultimamente andava cada vez mais ensimesmado, lobisomado. O dinheiro estava cada vez mais curto. As roupas da filharada mais velha ia passando pras mais novas. A mais velha só tinha um vestido pra ir a escola e outro para usar em casa. Dona Almerinda (“Coitada da minha véia”) vivia remendando aqui, cortando ali, e as roupas que antes pereciam coisa de gente da cidade iam virando veste de espantalho.
Sebastião até tentara fazer uma pratinha. Procurou o Corrêia na vila, ofereceu umas caixas de frutas do campo, uma lata de ata de vez, umas verduras e um quarto de vaca boa, criada no jaraguá. O cobre, porém, veio pingado, mixo. Malemá deu pras coisas da precisão: um xarope pra tosse do Raimundo, um caderno pra Maria, umas agulhas e um pano branco de saco pra Dona Almerinda.
Sebastião pensava nisso tudo e vinha uma raiva que ele não sabia explicar, um ódio à gente de fala mansa, jeito de gato na cozinha, que tinha tudo que faltava pro seu povo. Mas não sabia dar nomes ou rostos pra sua fúria, sua impotência.
- Eita vida mais desarvorada, diacho!
Fechou os olhos por alguns instantes, rezando pros santos que conhecia, tudo misturado, numa espécie de quebra-torto devocional.
Isso, em Sebastião, era mais um costume do que uma crença. Nunca fora de rezação. Assim já sabia que pouco podia esperar da santaria. Desanimado, voltou-se para ir pegar as ferramentas, lá no galpão. Tinha que bater pinaca, (re)construir.
Foi quando viu a Ritinha parada na porta da cozinha, olhando pra ele com os olhos bem abertos, duas bolitinhas na face corada das febres.
Sebastião parou de novo e ficou olhando fixo pra criança. Nenhum dos dois falou nada, mas Sebastião começou a sentir uma comichão esquisita no peito. A fragilidade da criança, seu olhar suplicante como as vistas dos mendigos velhos, a vida feliz que a molequinha tinha antes do roubo do bezerro, toda uma latada de coisas passou pela cabeça de Sebastião. E ele não achava picada pra uma saída, uma resposta.
E a menina a olhá-lo, sempre, com aquele jeitinho de sabiá engaiolado. O olho da criança fazendo erosão, que nem enxurro forte, no coração do lavrador.
Então, algo arrebentou no pensamento de Sebastião. Sua revolta contra a vida miserável, a falta de oportunidades até pra tirar o pique do pé, a comida rala, a humilhação dos graúdos, tudo se embolou na sua cabeça, formando uma enchente, um aguacero, que arrastou o medo, a fé, a esperança.
- Eu não posso dexá minha minina ansin. Vô trazê um bezerrinho pra ela nem qui seja robado tamém!
Uma vida inteira de honestidade, de obediência à lei e àqueles que a fazem ou a cumprem, passou e sumiu diante dos olhos do pantaneiro. De que adianta se empanzinar com a lei, sozinho, em casa, se no restaurante servem aranzé e contra-lei pra quem é de mando?
E não esperou mais. Catando o facão mateiro, montou no velho jipe remendado, rodando a chave no ligador até que as engrenagens quase mumificadas voltassem à vida.
Desguaritado, saiu sem rumo, igual anta no cerrado em tempo de seca. Saiu da fazenda, pegou primeiro o trilheiro e rodando tão forte quanto as rodas cambembas do jipe agüentavam, desembestou depois pela estrada afora. A raiva, a impotência, o sofrimento, colocavam pimenta nas canelas finas de Sebastião, que aceleravam duro, por horas, mesmo lapeadas pelos gravetos do Pantanal, pelas mordidas das muriçocas e pelas atenções das mutucas.
Quando enfim deu por si, já havia rodado muito, pois viera intochado. Nem assuntava aonde tinha batido os ossos. Sebastião parou e olhou em volta. Estava em uma área bem tratada, com grandes fazendas, muito gado nos pastos formados por braquiarão, jaraguá e outras plantas finas.
A resolução que adotara em casa não se abalara. Já que não achava o Pintadinho, ia levar outro. Sem bezerro é que a Ritinha não ficava.
Ladeando a cerca de arame liso, zoiou a fazenda, sem ver ninguém. Viu, no entretanto, ao longe, uma vaca malhada, com o bezerrinho do lado. Era o casamento do padre! O bicho era branquinho que nem o bezerrinho que fôra roubado e parecia até ser do mesmo tamanho.
Fazendo vista pra tudo quanto é lado, Sebastião decidiu entrar na fazenda, já que continuava sem ver ninguém por perto. Foi se aproximando da vaca e do guachinho devagar, com a mão estendida, enquanto fazia um barulho de beiço, pra acalmar os dois.
Acercando-se com cautela, conseguiu chegar perto do bezerrinho, que corria atrás da mãe, até conseguir pegá-lo pelo rabicho. O animalzinho corcoveou, fez força pra fugir, assustado, mas foi abraçado por Sebastião, que, feliz da vida, correu pra cerca. Conseguira.
Agora era só passar o arame, amontar no jipinho-capiau e sumir na poeirada da estrada.
A cerca, porém, estava longe. E o peão armado que vinha chegando bem mais perto. Seguindo os passos de Sebastião com um binóculo, o ponteiro não titubeou: colocou o apito na boca e trilou forte, repetidamente. Em pouco tempo, homens surgiam de todos os lados, armados de facão, revólver e espingarda. Cavalos foram montados em pêlo, gritos e ordens se misturavam e a caça ao homem teve início.
Os roubos de gado naquelas paragens eram muito freqüentes e, embora o dono da fazenda comprasse animais de todo tipo e tamanho, às vezes até bezerrinhos, não tinha contemplação com quem amoitasse uma só cabeça.
Sebastião se deu conta, abestalhado, do que estava pra acontecer. Aterrorizado pela juntação de gente, correu com todas as forças pra cerca, mas suas pernas de tuiuiú não eram páreo pros cavalos campeiros, da lida de todo dia.
Os gritos às suas costas se tornavam cada vez mais audíveis. A pintada estava nos calcanhares. Mas a cerca também estava próxima, apenas uns 10 metros. “Corre, home, corre!”.
Foi quando um estampido forte, de winchester, ecoou no descampado. Uma brasa viva, daquelas que se formam nas fogueiras de São João na vila, queimou as costas de Sebastião. Dolorosamente. Implacável. Com a boca escancarada, os pulmões estourando, ainda assim o pantaneiro não parou de correr. O bezerrinho apertado com força nos braços: “É da Ritinha! É da Ritinha”.
Outros estampidos, porém, cortaram a quietude que reinava naquela manhã. Outras brasas queimaram as costas, os braços e as pernas de Sebastião, numa ardeção sem fim e final.
“A cerca! A cerca!”
Sebastião chegou, enfim, à cerca, mas já não conseguiu passá-la. Seu braço magro e ossudo agarrou os fios, mas não foi suficientemente taludo pra sustentar seu peso e mais o do bezerrinho.
Sebastião caiu de bruços no pasto bem tratado. Ainda tentou se virar, ver os rostos da chusma que chegava aos magotes, mas não conseguiu. Ficou com a cara no capim, gorgolejando. Pensando em Ritinha. No bezerrinho. Expirando. Morrendo.
Os peões alcançaram o corpo de Sebastião, excitados, alguns gritando ordens, outros obscenidades.
Alguém mandava ligar pra polícia, avisando que um dos ladrões de gado que agiam na região estava morto.
Outro pegou do bezerrinho todo branco, com uma mancha preta embaixo de cada orelha e uma pata encolhida e levou de volta pra vaca que não parava de mugir, chamando o filhote adotivo.
Naquela manhã, o Sol resolveu que era melhor continuar escondido.

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