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Contos-->ZÉ CAIPORA -- 03/01/2005 - 13:29 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ZÉ CAIPORA

Todo mundo em Vila Formosa sabia da fama do Zé Caipora. Festa onde ele chegava, patuscada de viola ou até batizado de gente de cueiro, sempre tinha um pé-de-vento, uma desgraça qualquer. Receber o Zé em casa era ainda pior, dava doença, morte de parente ou briga de marido e mulher. Às vezes, guampa e facada.
O Zé, coitado, bem que tentava desdizer a má fama, que isso era coisa de gente que gostava de deitar falação à toa, pra desacreditar desafeto; fuxico da Candinha; que ele era mais um caboclo de sorte. Mas qual o quê! O apelido e a nomeada tinham grudado mais do que mel com farinha e bastava o Zé anunciar uma visita pra algum conhecido que, justo no dia, às vezes na horinha mesmo, o dito cujo se alembrava de um negócio, de atender uma precisão ou fazer uma diligência lá pra bem longe. Do Zé, bem entendido.
O curioso é que nem a mais tarimbada fofoqueira da vila sabia no certo donde vinha essa carapuça do Zé. Uns comentavam que era por causa de uma criança que tinha escapado pro Paraíso dois dias depois do Zé servir de padrinho. Outros que os roçados da região se empraguejaram depois que o Zé tinha arrematado o Sítio do Jaburu, uma paragem cheia de alma penada, donde o Chico da Antonha viera meio abilolado, depois de uma noite em que tinha ido fazer espera de anta.
Roncava-se à boca de cascudo que o azaramento do Zé, pelo jeito, só fazia derribada pros outros, pois sua roça andava faceira, alourando os campos de milho. Nas noites luadas, via-se o brilho gordo no pêlo das vacas e das cabras, que mascavam sua fartura burguesa na tranqüilidade da pastagem. A casinhola de madeira onde o Zé vivia só mais o gato e o papagaio, tinha sido pintada de fresco, a cerca melhorada com poste de amendoim. Até a cara do Zé tinha levado uma espanada e na sua feição meio chupada, se dependuravam agora uma pêra magricela e um bigode idoso. A casimira da calça e do paletó eram novas, aviadas no armazém do Tonho, que, mais ingrato do que leproso da Bíblia, espalhara que a vendagem diminuíra depois da compra do Zé.
No começo de toda a falação, o Zé achava graça, fazia cara de momo perto das crianças e de mulher barriguda. Mas, ao depois, quando até os amigos de garfo e prato cheio torciam a cara e o pescoço ao passar por ele, o Zé se queimou. De brincadeira a ofensa, a falação deu um revorteio lá na cachola do Zé e ficou carcomendo, rezingando.
- Mas ô homi, ocê acredita memo numa besterada dessa, sô!?
Aqui o Migué Pé-de-Anjo fez uma cara desenxabida, deu uma risota matusquela e não respondeu à direta do Zé. Ele e outros. Muitos outros. Tinha gente que inté se benzia quando o Zé passava.
O Zé ia ficando cada dia mais enquizilado com essa história. De vez em quando tinha uns estralos de raiva, xingava entre as janelas dos dentes.
- Raça mais besta!
- Povo de tapado!
- Mulambento!
- Esgrovinhado!
E nada do povo mudar as idéias. A falação sempre forte e as esquivanças aumentando. Convite pra rega-bofe nem isca. Até a Joaninha da farmácia, que tava de beiço pelo Zé, acabou desistindo de um amor tão arriado de fortuna.
O Zé foi levando, agüentando, rezingando, sofrendo, xingando. Até que estourou.
Foi na noite de São João, quando o povo lustrava a botina, arrotava caninha e esquecia das vacas. O Zé perambulava pela praça, vendo a quadrilha pipocar, numa confusão de saias rodadas e fole de sanfonas. Sozinho, o Zé lembrava, cheio de um despeitamento doído, do tempo bom em que a conversa vinha orvalhada de aguardente, de causos, de amizade. Atirou os olhos magoados de enjeitado pros lados do Boteco do Mineiro, onde os conhecidos e os desconhecidos, aquela malta de línguas trançadas, vez em quando, davam à taramela olhando pro Zé e pra vida. Vozes e olhos sem rumo certo, mas capazes de condenar. “Apois, é hoje!”, decidiu o Zé, ajeitando a cinta das calças e batendo com o tacão da botina no rumo do boteco. Tinha que acabar com essa bestage de caiporismo, de mau-olhado.
A freguesia olhou desconfiada pro Zé, com seu chapéu de aba larga e seu paletó de tergal inglês, mas ninguém falou nada quando ele pisou no batente e foi direto pro balcão, parando ao lado do lampião de querosene. Pediu uma pinga pra matar o bicho. O Mineiro encheu o copo. Comercialmente polido. Bebendo tudo de um trago só, o Zé deu um ah! chiado e comprido, de quem acaba de curar a alma. Mandou encher o caneco de novo e só então lembrou do santo, deitando um gole pras bebedeiras no céu. Se virando pra trás, com a caninha na mão, o Zé deu uma vista de olhos nos antigos convivas e pigarreou alto, a modo de testação. Silêncio. A cachaça e os beiços colados deram ânimo:
- Minha gente, eu queria falá de uns comentário que todo mundo aqui já deve de tá sabendo, mas que percisa pará, pra modo de não trazê ainda mais probema.
O silêncio continuou dentro do boteco. Até as gargantas mais secas pararam com a regação. Vendo que ninguém se encrespava, o Zé decidiu continuar a arenga que já tinha ensaiado um monte de vezes. Mas não teve tempo.
Um buscapé fugiu, feliz, da mão de um moleque na praça e entrou ciscando, endoideceido, pela porta do boteco, derrubando copos, garrafas e fazendo os pés dançarem um cateretê louco debaixo das mesas. O Zé, que se arrepelava de medo do diabinho de fogo, deu um pulo pra trás, derramando a pinga do copo em cima do lampião. O bicho, aproveitando o São João, explodiu, jogando fogo na cachaça derramada no balcão e na palha de pitar do Mineiro. A freguesia, vendo o fogo crescer e o buscapé desembestar, saiu em debandada pela porta da venda, pisoteando uma velha que passava, arriada na bengala de jacarandá.
Os cavalos, acorreados no amarrador, ao notarem o rebuliço, se assustaram e, dando de pinote, quebraram as correias, saindo em disparada pela praça, pisoteando o padre, que olhava tão entretido a barraca de doces que não deu pela cavalhada.
O povo da praça começou a gritar e correr, dando umbigada num, cabeçada noutro, canelada em tresoutro. O inspetor, ouriçado com a barulheira, achou que era coisa de salteador e deu dois tiros com a garrucha na direção do tropel.
Quando a poeira assentou, descobriu-se que o Boteco do Mineiro tinha virado carvão, a velha tinha tido um colapso, o padre quebrara a clavícula e um tropeiro morreu chumbado. Só não houve também linchamento porque o Zé nunca mais apareceu em Vila Formosa.
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