Adorada por conhecedores e odiada pela maioria dos abstêmios ignorantes, a cachaça confunde-se com a própria história nacional. Está na alma do nosso povo e na cabeça gorda dos governantes que forjaram esta espetacular nação de macunaímas. Com ela não existe meio termo. Nem meia dose. Só meia garrafa. E todos sabem que para um bom bebedor meia garrafa basta. Basta?
Apreciada com moderação (ué, a vida não vai melhor nos excessos?), é considerada um dos melhores aperitivos do mundo. Só perde para o famoso uísque Highland Scotch His Majesty Royal Gold Label Pirassununga Finest, sobre o qual nunca ouvimos falar. E nem precisamos: uma Lua Cheia para nós, descendentes de africanos, e um pedacinho de queijo curado está bom demais. Além do mais, uísque é a bebida dos estranhos homens que usam saia e tocam gaita numa desafinação só, os escoceses.
Segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, a cachaça pertence à família das eau-de-vie, que traduzimos como “água da vida”. A sua fórmula química é H2O51. É tão popular que já virou sinônimo para todas as outras bebidas conhecidas. Fôssemos um país sério, ela seria matéria obrigatória nas escolas. Não, não estamos bêbados.
Destilado feito à base de cana de açúcar, leveduras e água, a cachaça é relativamente fácil de fazer. A fabricação começa com a moagem da cana, que produz um caldo ao qual se adiciona água, resultando no mosto. Sob o efeito das leveduras (procura aí no Houaiss), o mosto entra em processo de fermentação. Depois da decantação (lembra das aulas de Química?), é feita a destilação num alambique do tipo “cebolão”.
Antes, toda a cachaça produzida no Brasil era artesanal. Praticamente toda casa de engenho produzia a sua “preciosa”, que adoçava os beiços de senhores e escravos. Um exemplo de bebida democrática. Depois da Revolução Industrial, a pinga foi pro brejo e de lá nunca mais saiu. Hoje, temeridades como a 51 dominam o mercado nacional. Azar o dela. Felizmente, ainda existem milhares de alambiques espalhados pelo Brasil, sendo que alguns dos melhores estão na região de Salinas, capital mundial da branquinha. Nada contra os paulistas, cearenses, baianos e paraibanos, mas os mineiros são os michelângelos do assunto.
Perdoem-nos os alguns, mas a boa cachaça deve ser pura. Nada de colocar cravo, ervas, mel ou cascas de árvore: isso é coisa de quem não gosta de sentir o sabor da cana ou não é dado a tradições. O modo de fazer uma boa cachaça é passado de geração para geração e isso faz toda a diferença. O processo inclui uma cana de qualidade superior, colhida em sua melhor fase, fermento caseiro natural, condensação em recipientes especiais e outros toques de classe. Tudo isso deve ser considerado antes do brinde.
Como símbolo dos ideais de liberdade, a cachaça percorreu as bocas dos inconfidentes e da população que apoiou a Conjuração Mineira. A Semana de Arte Moderna, em 1922, em seu suspiro de brasilidade, não deixou a cachaça de lado, num balcão vazio. É certo: intelectual revolucionário ou qualquer brasileiro que se preze não chega perto de outra bebida. Cognac, monsieur?
Hoje, universidades tentam criar uma cachaça sem as contra-indicações do bafo (também chamado futum) e da ressaca, tudo para concorrer no mercando mundial. Ao que parece, querem desinventar a “água da vida”. Cura para ressaca... já ouvi essa história...
“Eu bebi demais/eu fiquei mamado/eu caí no chão/e fiquei deitado/nas mãos de um soldado eu fui carregado”. Talvez não seja possível enumerar o número de canções em que a “mardita” aparece, mas quanto aos seus sinônimos, podemos tentar. É tanto nome que é bem capaz de você ficar tonto. Da próxima vez, peça uma abre-bondade. Não gostou? Então escolha entre abre-coração, abrideira, abridora, aca, ácido, aço, acuicui, a-do-ó, água, água-benta, água-bórica, água-branca, água-bruta, água-de-briga, água-de-cana, água-de-setembro, água-lisa, água-pé, água-pra-tudo, água-que-gato-não-bebe, água-que-passarinho-não-bebe, aguardente, agundu, alicate, alpista, alpiste, amarelinha, amorosa, angico, aninha, apaga-tristeza, a-que-incha, aquela-que-matou-o-guarda, aquiqui, arapari, ardosa, ardose, ariranha, arrebenta-peito, assina-ponto, assovio-de-cobra, azougue, azulada, azuladinha, azulina, azulzinha, bafo-de-tigre, baga, bagaceira, baronesa, bataclã, bicarbonato-de-soda, bicha, bichinha, bicho, bico, birinaite, birinata, birita, birrada, bitruca, boa, boa-pra-tudo, bom-pra-tudo... e olha que ainda nem terminamos a letra B! Saúde, cachaceiros!
(*) Lutto T. Nebroso e Moabba e mais 3 comparças são fundadores do Jornal Periódico "CALANGOS SAPIENS" distribuido em Brasília.