Usina de Letras
Usina de Letras
79 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62192 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50598)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O CAPIAU E SEU ANJO RÓSEO -- 27/11/2004 - 18:36 (Edson Campolina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O CAPIAU E SEU ANJO RÓSEO
Por: Edson Campolina.


O trio desembarcara em Belo Horizonte pela primeira e única vez juntos, numa aventura adolescente em busca da diversão na noite da capital. Exceto eu, que tinha já um compromisso. Fomos de ônibus da Glória até o centro, precisava de guia para o reencontro com aquele anjo róseo de cabelos encaracolados e dourados.

_ O capiau vem encontrar a namoradinha e tem que ser velado por dois marmanjos...

_ Quer que a gente espere a namoradinha com você ou pode ficar sozinho?

Minha condição de visitante na capital desconhecida me obrigava a ouvir mudo as chacotas do Geraldo e do Edinho. Os dois vangloriavam-se por estarem na terra natal, apesar dos anos já radicados nos grotões de Esmeraldas.

_ Lembra de como voltar pro ponto do ônibus?

_ Vê se não deixa pra ir muito tarde heim! Menor de idade tarde da noite na rua, aqui é preso!

O cine Palladium na rua Rio de Janeiro ostentava seu luxo e brilho não só pela bela sala de espera decorada com grandes e vermelhas poltronas de couro, mas também pela caricatura da adolescência da classe média mineira que formava os grupinhos à sua frente exibindo suas roupas e calçados de última estação.

Sentia o arrepio do medo, da dúvida, da timidez subir dos pés ao peito que parecia inchar congestionado. Suava nervoso. Pensei em desistir, mas lembrava do aparato que antecedia aquele reencontro; a primeira barba orientada pelo Geraldo, a escolta dos amigos e até na família que não economizara conselhos e preocupação num fato inusitado até então – o filho menor a viajar sozinho com amigos. Acendi um cigarro e senti olhares me percorrerem de soslaio. O hábito do fumo ainda não era sinônimo de transgressão para a adolescência belo-horizontina do início dos anos 80, era incomum ver menores fumando. Mas no interior era comum o tabaréu antecipar hábitos e comportamentos do homem feito. Então o capiau, caracteristicamente sensível às observações, rapidamente apagou a guimba e mascou um chicle de caixinha. Também era preciso manter o hálito agradável, pois de que adiantaria o banho, o desodorante e a loção pós-barba?

Distraí-me com os cartazes dos filmes, com o burburinho dos transeuntes no final de tarde de sábado e com a pressa dos carros. Tudo, contrariando o urbanóide, ajudou a acalmar aquela espera que terminaria rapidamente. Cibele, meu anjo róseo de cabelos encaracolados e quase dourados, tomava a frente de seus amigos, dois rapazes e três mocinhas. Caminhava a baixinha em passos curtos e rápidos. Pensei rapidamente, antes de concentra-me em seu sorriso, nos riscos de misturar-me numa turma adolescente da capital e, pior, nitidamente de outra classe social.

_ Oi!
Percebi que também adorava aquele tom de voz meio rouco e firme.

_Oi!
Não consegui construir qualquer oração.

O encontro não foi dos mais calorosos, apesar do carnaval de sarros em Esmeraldas que marcara meu primeiro namoro de adolescência. Mas correspondia à linguagem econômica dos adolescentes, comum na capital e no interior. Parecia comunicarmos com as intenções apenas, e não só nossos olhares denunciavam-nas, mas também a batida elétrica dos nossos corações.

Enfim, entramos no hall do cinema após as apresentações, comprei os dois ingressos, antecipando-me a Cibele - era preciso causar impressões – o que provocara o primeiro risinho zombeteiro de suas amigas. Certamente por não estarem acostumadas a demonstrações de cavalheirismos em seus mundos – pensei. Ocupamos as grandes e fofas poltronas da sala de espera. Perdi alguns instantes contemplando o carpete, as paredes revestidas de feltro vermelho, as luzes amarelas e os grupinhos animados em conversas intermináveis. Servindo-me desta distração procurava um início de diálogo que quebraria as barreiras de minha timidez. Tirei do bolso o maço de cigarros e acendi um.

_ Você ta fumando?

Cibele mostrou-se surpresa, assim como eu com sua indagação. Hoje, certamente não me surpreenderia com sua reação, sabendo que se tornara uma socióloga com ideais ecológicos. Seus amigos voltaram-se a mim com olhares interrogativos, suas amiguinhas taparam as bocas sufocando os risinhos. Mas continuei afrontando seus costumes numa crédula tentativa de impor um caráter que talvez os intimidassem. Foi a escapulida de minha timidez que soltou minhas amarras, mesmo sentindo-me uma ovelha negra transgressora, talvez a Cibele se orgulharia de um namorado com hábitos tão adultos e libertos.

A fila formou-se para entrada na sala de exibição. Observamos alguns expectadores da sessão anterior saírem sorridentes dançando o tema de Flashdance, casais abraçadinhos, alguns garotos apressados, outros silenciosos, apaixonados e já com saudades da Jennifer Beals. O lanterninha abriu a cortina liberando a entrada, deixei-me atrasar os passos espertamente, esperando que a turma escolhesse a fileira e as poltronas. Sentamos na fileira à frente do grupinho de amigos. A sala era enorme, um dos maiores cinemas da capital, com uma tela de projeção enorme, uma altura enorme, uma enorme quantidade de cadeiras, uma enorme quantidade de luminárias no teto e nas paredes. Parecia um estádio para o capiau que só conhecia o clube social de Esmeraldas.

Recuperei-me do vislumbre com os carinhos da Cibele. Retomamos o namoro do ponto em que se interrompera com o fim do carnaval. E a cada cena imortalizada com as músicas-tema canalizávamos o romantismo para nossos beijos e abraços, motivo dos incessantes e irritantes risinhos zombeteiros das amiguinhas de meu anjo róseo de cabelos encaracolados e quase dourados. Por vezes foram advertidas pela Cibele, sem sucesso. Até que o incômodo afetou outros expectadores que as calaram com vaias sutis. Então partiram para leves puxões no cabelo encaracolado e quase dourado de minha amada. Virei-me pra trás encarando-as com cara de pouco amigo.

_ Não liga não, estão é com inveja por nunca terem namorado. Aquietou-me a Cibele.

Puxei novamente o maço de cigarros do bolso da calça, enquanto procurava o isqueiro senti um cochicho na orelha.

_ Aqui dentro não pode fumar...

_ Mas eu escondo o cigarro entre as pernas...

_ O lanterninha vai nos tirar daqui, não quero passar vergonha... Além disto a fumaça vai incomodar todo mundo...

Assustou-me a escuridão que já dominava a cidade quando do fim da sessão.

_ Vamos pra sorveteria?

_ Não posso, tenho que encontrar o Geraldo e o Edinho, eles estão me esperando, se demorar muito ficarão preocupados.

Caía o caráter liberto do quase-homem fumante e seguro de si.

_ Pelo menos vem comigo até em casa.

Não imaginava meu anjo róseo de cabelos encaracolados e quase dourados que me pedia o impossível. Como retornaria se sequer saberia apontar o leste naquela imensidão de cidade. Insisti na necessidade de reencontrar meus amigos. A certeza do risco que correria, perdido, superava o desejo de prolongar as horas numa noite de namoro.

_ Não posso.

Tentava ser incisivo, carinhosamente. Distantes alguns passos, os amigos pareciam surpresos.

_ Mas eu já havia combinado tudo com meus amigos. E agora? O que digo pra eles?

Concordei em acompanha-la até o ponto do ônibus. Disperso de sua atenção, procurava gravar o caminho de volta entre os paredões de edifícios e as várias esquinas. Tinha o cine Palladium como ponto de partida para meu retorno. Cibele decepcionara-se com minha recusa em acompanha-la em casa, mas mantive-me firme no propósito vencendo suas tentativas de demover-me no caminho. Aguardamos, abraçadinhos, o ônibus que a levaria definitivamente de mim. Dali em diante, nosso romance esvair-se-ia com os desencontros de nossas vidas, infelizmente.

Contei o dinheiro para o ônibus e separei-o num bolso seguindo conselho do Geraldo – Sempre divida o dinheiro pelos bolsos. Retornei ao cinema tomando o caminho do ponto do ônibus que me devolveria ao Glória. A espera impaciente foi uma sessão curta de suspense que se projetava na insegurança e nas ameaças do inconsciente do capiau. Ajeitei-me na primeira poltrona, à direita do motorista, bem próximo da porta de descida. Assim ele poderia me ver e, de alguma forma, me proteger de tudo que perturbava a minha consciência. Relaxei observando o burburinho do centro de Belo Horizonte que fervia na noite de verão. Naquele tempo ainda podíamos passear por suas ruas e avenidas de bares animados e ruidosos, sem nos preocupar muito com a decadência que lhe afligiria a vida noturna.

O ônibus saiu da região central tomando seu destino via larga avenida. Procurava lembrar-me do itinerário percorrido com o Geraldo e o Edinho. Dei tempo à memória, sabia que percorrera uma avenida longa. Mas o tempo passava e a paisagem do subúrbio do bairro Glória com suas casas espremidas entre quintais e antigos e pequenos prédios nunca vinha. Em seus lugares o horizonte da Pampulha anunciava-se. Criei coragem e perguntei ao motorista.

_ Este ônibus é o 4504?

_ É.

_ Ta indo pro Glória?

_ Não. Ta indo pro São Bernardo.

Já atravessara quase metade da zona norte da cidade. Fora enganado pela pressa do retorno e inobservância que, sendo de bairro a bairro, o ônibus deveria ser pego no ponto de retorno. Imediatamente sinalizei a parada. Não podia me arriscar a viajar até o ponto final aguardando em segurança dentro do ônibus, o retorno ao Glória, sabia-se lá como era o bairro São Bernardo? A noite corria mais rápido que o ônibus. Desci e aguardei num ponto em frente ao quartel dos bombeiros na avenida Presidente Antonio Carlos - pelo menos a sentinela podia me ver. A demora foi torturante. Não fosse o reencontro com beijos e abraços no meu anjo róseo de cabelos encaracolados e quase dourados, aquela teria sido a pior aventura até então. Como pude me arriscar sozinho na capital? Contaria ou não ao Geraldo e ao Edinho? E se não encontrasse o caminho de casa? Comecei a elaborar planos B, C, D. A rodoviária poderia ser o destino mais correto, dali não sairia até que o primeiro ônibus me recolhesse a Esmeraldas. Tinha dinheiro suficiente para um táxi? Mas poderia confiar no taxista? Uma tormenta abatera-se sobre minha cabeça.

Mas precisava o capiau manter a compostura, não chorar, era um quase-homem. Acendi um cigarro, tentando ocultá-lo entre os dedos para não despertar interesse em ninguém, apesar de somente o ninguém me fazer companhia naquela avenida deserta. Ao menos era bem iluminada, mas a extensão de sua largura com oito pistas e de seu cumprimento que se perdia no sobe e desci também assustava o capiau indefeso e perdido. Um consolo apenas me abateu, só precisaria descer do ônibus no ponto-final de sua linha, em direção ao Glória, claro.

Então, vencida a longa e tenebrosa espera, desci a rua que dava acesso à avenida. Cruzei a ponte sobre o canal e tranqüilizei-me com os vizinhos que se refrescavam com a brisa da noite, sentados a seus portões. Abri vagarosamente o portão da casa da frente, não podia despertar os inquilinos do pai do Geraldo, Seu Moacir Profeta. Percorri o corredor lateral da servidão até o barracão. Desistira de encontrar a dupla na discoteca que animava a noite do bairro. Recuperaria minha lucidez em casa. Já não me importava com a preocupação dos dois. Poderia até tirar proveito dizendo ter ficado até tarde com meu anjo róseo de cabelos encaracolados e quase dourados.

Percebi algo errado no barracão. A luz da copa acessa e alguém transitava pelos cômodos. Pude perceber pelo vulto que se tratava de um homem alto, forte. Caí na realidade da cidade grande – aqui tem ladrão. Inconseqüentemente tive a coragem de chamar:

_ Quem taí? Tem alguém aí?

Sem obter respostas, não podia arriscar-me a insistir na pergunta. A casa da frente totalmente fechada e apagada, eu estava só, franzino e sentindo-me pequenino naquele quintal escuro. Saí a procura dos vizinhos. Aproximando-me de homens que conversavam no portão do vizinho, apresentei-me ofegante e assustado.

_ Eu sou afilhado da Dona Laura, estou chegando no barracão e parece que tem ladrão lá!

_ Não é um dos filhos do Moacir? Você chamou?

_ Chamei, mas não responderam!

Era possível notar um pouco de apreensão naqueles homens salvadores, mas uns quatro encheram o quintal à frente do barracão e gritaram.

_ Quem taí? Sai logo!

A luz da sala acendeu. Quando percebemos a chave girando na fechadura, todos demos um passo pra trás. A porta se abriu e o homem alto e forte apareceu na soleira.

_ O que é que ta acontecendo?

_ Ah! É o Zé Roberto. Agora você se explica pra ele.
E foram embora meus valentes protetores.

Já ouvira falar daquele irmão do Geraldo, mas não o conhecia. Também não esperávamos ninguém no barracão. Tive que entrar e me explicar pro Zé Roberto, afinal era um estranho sem a companhia de seu irmão. Ele disse que percebera que alguém se hospedara ali. Comia o resto do jantar que o Geraldo preparara, reclamando do arroz grudento.

Estava eu em dificuldades novamente. Não conseguiria ficar ali com um homem, apesar de irmão de um amigo, desconhecido pra mim. Além de tudo parecia ter saído de um filme de terror assassino, era carrancudo, mal humorado, e quase não falava. Decidi então me encontrar com os dois na discoteca. Não foi difícil seguir o barulho e descobrir o terraço do prédio de um bar, de onde a música se alastrava e o brilho do globo de espelhos riscava a escuridão do subúrbio com seus flashes. Subi as estreitas escadas laterais e parei no canto do salão. Os dois me acenaram do outro dado, observavam a noite no para-peito do terraço.

_ Conseguiu voltar?

_ Claro, ta pensando que sou o quê?

_ Geraldo, passei no barracão antes e seu irmão Zé Roberto ta lá. Pensei que fosse ladrão e chamei os vizinhos. Quando abriu a porta era ele.

_ Puta merda, só faltava essa...

Fim.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui