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Contos-->ÁGUA RASA RIACHO FUNDO (BICHO-HOMEM: hermafrodita ou bicha) -- 12/12/2000 - 23:20 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
capítulo - III

A roda do tempo com sua rotina enfadonha; fez o peixe esquecer a visita do filhote do bicho-homem. Um dia após o outro sua única ocupação era procurar alimentos e saboreá-los avidamente.
De certo, que ocorreram outras visitas de filhotes do bicho-homem; mas em todas elas, o peixe conseguiu escapar da sua perseguição. Já estava tão hábil na arte de se esconder e se camuflar, que somente olhos treinados poderiam distingui-lo entre as pedras e o lixo que se acumulava no leito do riacho.

Numa tarde fria e chuvosa; escutou passos na clareira. Eram passos apressados. Não soube precisar de quem era. Poderia ser o filhote do bicho-homem. E quem pode garantir que não era o próprio dito cujo.
Tratou de procurar abrigo: “A sensatez é amiga dos homens e dos bichos”.

- Pirááá!
O peixe reconheceu a voz do lobo e ficou apreensivo. O amigo não costumava visitá-lo àquelas horas do dia. O bicho-homem não havia abandonado as ocupações de lavrar a terra. E tudo isso tornava aquela visita improvável e insensata.

“Não, não pode ser o Guará; ele não se atreveria a tanto!, concluiu, desejando que fosse exatamente o contrário.”.

- Pirááá! - insistiu a voz. - Sai do esconderijo seu peixe medroso; não reconhece um amigo?

Após uma breve hesitação, tomou coragem e pôs a cabeça fora do esconderijo. Com a visão embaçada pela claridade, avistou um vulto moribundo na beira do barranco. Quase não o reconheceu. O lobo estava barbudo, a pelagem em desalinho e a língua enorme balançando de um lado para outro.
Apesar daquela aparência horrível, não teve como negar que fosse seu amigo. O bom e velho lobo Guará.

- Que é isso, Guará! Parece que viu fantasma... Correu de assombração? -
- Ah!, seu peixe medroso. Tenho notícias!
- Notícias de quem? - quis saber o outro, temeroso.
- Da cidade do bicho-homem! E só não voltei antes porque precisava resolver algumas pendências...

Transpirando cansaço, o lobo se afastou e se dirigiu até o tronco do velho crapiá. Chegando lá, renegando suas boas maneiras, sentou-se desajeitadamente.
A cena invulgar fez o peixe avaliar que a situação era pior do que imaginara. Abandonou o esconderijo e foi ter com o amigo. Aproximou-se sorridente, e trocou um caloroso abraço com o lobo.
Foi um momento de grande emoção para ambos. E não era para menos. Já se passara muito tempo desde que o lobo fizera a última visita.

- E quais são as novidades, Guará... – quis saber, somente para quebrar o silêncio do outro.
O lobo não respondeu. Não estava preparado para dar as notícias que trazia. Elas não eram as melhores.
- O que fez o amigo vir correndo deste jeito? - insistiu. - Não me diga que são outras asneiras do bicho-homem?
- Espere um pouco, Pirá. Espere descansar as pernas que já não tenho idade para tanta correria. - e falando assim, posou a pata no peito.
- Pode descansar, amigo... Pelas horas que você chegou; nós temos muito tempo para conversar.

O lobo ficou calado. Mais uma vez, conseguiu adiar as notícias que trazia da cidade. Espreguiçou. Balançou o rabo. Afastou-se e foi sentar no tronco do pau-d óleo. Nem ao menos quis saber se o peixe estava esperando uma resposta. Com pensamento distante, pegou a fitar as copas das árvores como se mirasse uma paisagem desconhecida. Ficou um bom tempo observando as folhas roçarem uma nas outras.

O peixe não acreditou no que via. Procurou uma explicação para a atitude do lobo. Mas não encontrou resposta. Ciente de que nada podia fazer, correu até o riacho para colher um pouco d’água para aliviar a sede do amigo. Pensava então, que todo sofrimento e tristeza poderia ser aliviado com um bom gole d’água fresca.
Quando retornou na mesma frenética carreira, encontrou o lobo com os olhos cerrados. Roncando; em sono profundo.
Sussurrou; para não assustar o lobo:

- Acorda, Guará... Trouxe-lhe um pouco d’água fresca!
- Obrigado, amigo... mas não precisava se incomodar...
- Mas que desânimo é esse, Guará! Não me diga que dona loba te expulsou de casa?
- Deixe de ser bobo, Pirá!
- Tudo bem... Apenas imaginei que suas desculpas de sair para roubar galinha já não estivessem surtindo resultado. A mentira tem pernas curtas; você bem sabe.
- Mentira? E eu lá sou de andar dizendo mentiras? – gritou o outro.
- Tome cuidado, Guará... A dona loba pode desconfiar! – gracejou o peixe.
- Deixe de ser bobo, Pirá... Ando preocupado com a situação do amigo; vivendo no meio desta sujeira. Não sei como não pegou uma Dengue!
- Preocupa não, Guará... Estou acostumado. Além do mais, qualquer dia desses peço a tal de aposentadoria.
- Ih, amigo! Pelo que vejo você está por fora de tudo!
- Por fora de quê?
- Não te contei? Não ficou sabendo?
- Sabendo de quê? Não é você quem traz as novidades?

O peixe não gostou do rumo que conversa estava tomando. Começou a se coçar e a ficar impaciente. Previu que algo de muito grave havia acontecido. A relutância do lobo era um forte sinal de que seus maus presságios poderiam se tornar realidade. Por fim, concluiu que não era nada importante. O amigo adorava fazer melodramas.

- O presidente acabou com a aposentadoria, Pirá... - Informou o lobo, de supetão.
O peixe ficou calado. Sem atinar para o tema.
- ... aposentadoria só com a morte... Só no caixão! – conclui o lobo.
- Você ficou doido, Guará! Não foi você que me disse que o bicho-homem-presidente era diferente?
- Falar, eu até que falei! Mas esta é uma história, e outro Presidente. E para te falar a verdade, com aquele também me enganei!
- Você é igualzinho ao bicho-homem, Guará. Adora ser enganado! - e sorriu, como se soubesse que o lobo cometeria outros erros.
- Vira essa boca de lacraia para outro lado, Pirá! Isso é culpa do bicho-homem-político!
- Político?! Você já inventando mais um tipo de bicho-homem? - gritou, visivelmente irritado com o amigo.

Até aquele momento, o peixe nunca ouvira o lobo falar do bicho-homem-político. Já tomara conhecimento do bicho-homem-corrupto, do ladrão, do policial, do médico, do mecânico, do caçador, do lunático, do presidente, e do deputado. O bicho-homem-deputado era o mais comentado nas suas conversas com o lobo. Sendo assim, previu que aquele bicho-homem poderia ser pior do que os outros.

- Por que político, Guará?
- Ora, seu bobo! Este é o nome que eles dão ao bicho-homem quando está mudando as penas. Ficando cheio de esperteza! E tem mais; ele também é primo irmão do deputado... Entendeu?
- Eu mesmo não, nunca ouvir dizer que pudesse ocorrer uma mutação dessas! Sabe de uma coisa, Guará!; acho que o amigo está ficando tantã... Você já não fala coisa com coisa; parece contaminado com a doença do bicho-homem-deputado!.

O lobo nem sequer deu atenção ao desassossego do peixe. Estendeu as patas, e fez o tronco do crapiá de cama. Retomou a fisionomia anterior: pensativo.
Do seu canto, o peixe não pode deixar de perceber que o amigo estava diferente. Mas não conseguiu entender o motivo daquela recaída. Procurou aliviar a tensão que se abateu ente ambos; falando de temas amenos.
Não conseguiu. Não conseguiu atrair a atenção do lobo.

- O que foi, Guará! Não me diga que o bicho-homem-político já aprontou alguma?
- É muito pior, Pirá. Mas estou sem saber como te dar a notícia.
- Fala, ora! Se não falar; como é que vou saber?

O lobo não queria revelar o que sabia. Os boatos que corriam na cidade não poderiam ser revelados sem uma prévia explicação. Mas que podia, fazer. O peixe tinha de saber da verdade.

- Sabe o que é, Pirá: andei escutando umas conversas na cidade... Mas vou logo te avisando; sou teu amigo... Não acreditei numa só palavra. Em nadinha!
- Desembucha, Guará! Pare de rodeios ou vou ficar ainda mais preocupado!
- É o bicho-homem-deputado... Ele anda falando umas coisas horríveis sobre sua pessoa.
- O deputado? O deputado não é o bicho-homem que gosta de fazer promessas e nunca cumprir!
- É este mesmo! Descobri que o dito cujo também é bisbilhoteiro... Ele é terrível, Pirá! - gritou, tentando fazer o peixe comungar seus temores.
- Mas quando; quando o amigo ficou sabendo dessas coisas? Você me disse que o deputado já existe há muito tempo!
- Ora, Pirá! Não estou falando do deputado que vem de longe... Estou me referindo ao nascido aqui!
- Ah!, já sei. Acharam que o deputado importado não estava dando resultados, e aí, resolveram fazer uma produção local!
- Pode até ser, Pirá. Mas é por isso mesmo que ando assustado.
- Assustado? Você está é se borrando de medo. E logo você que se vangloriava de não temer a nenhum tipo de bicho-homem!
- Claro que não temo! – interveio o outro, com firmeza. - O que me preocupa; é a fofoca que anda fazendo.
- Então fala, ora! Desse jeito, você vai estourar minhas coronárias! Não é assim que se diz?

Se o peixe demonstrava sinais de cansaço e insatisfação com o rumo da conversa; a partir daquele momento, passou a ter certeza que seus maus presságios poderiam se tornar realidade. A hesitação do lobo era prenúncio de que o desfecho seria assustador. Advertiu-se que melhor faria se ficasse calado.

O lobo, por sua vez, não estava seguro de si, para dizer o que tinha para falar. Trazia na ponta da língua sua versão dos boatos; mas não podia dizer se era melhor ou pior daqueles que corriam na cidade. Apesar de tudo; não queria ferir o amigo.
Coçou a cabeça. Balançou o rabo; de um lado para o outro. Fez várias tentativas para falar. Mas em cada uma delas, as palavras foram interrompidas ante o pigarrear forçado.

Após tanta indecisão; encontrou coragem para perguntar:

- Você é HERMAFRODITA?
- Her-ma-fro-di-ta! – soletrou o outro. - Você está ficando gagá? Por acaso está me confundindo com o seu deputado?!
- Fique calmo, Pirá... Ainda tenho outros boatos para te contar.
- Têm mais?
- Têm! Têm muito, e muito mais!
- Se for assim, o deputado além de perigoso é fofoqueiro!
- Eu te avisei! - advertiu o lobo, demonstrando esperteza.

O peixe desistiu de fazer indagações. Entendeu ser melhor deixar que tudo acontecesse no seu devido momento. Sempre desconfiara de que o bicho-homem conhecia o seu paradeiro. Agora tivera certeza; o bicho-homem-deputado sabia do seu paradeiro.
Aquela possibilidade fê-lo temer pelo futuro. Ficou apreensivo. Sentiu a mesma reação que sentira no dia em que o lobo lhe contara que o mundo fora criado a partir de um “big-bang”.
E daí, o que vem a ser o tal “big-bang"? E quem foi o responsável pelo “big-bang”? Será que o deputado é responsável pelo big-bang?, quis sabe ele.
O peixe concluiu que era bem provável que sim. Somente assim seria possível explicar aquelas coisas malucas que estavam acontecendo com o riacho.

Alheio às suas inquietações, o sol se escondeu por trás do horizonte. A lua redonda tingida de vermelho anunciou uma noite fria. Uma brisa correu por entre os labirintos de folhas e caules. E os pássaros voaram em busca de abrigo. Solitária a coruja sonolenta iniciou mais uma longa noite de vigília.

O lobo permanecia calado. Mais uma vez foi o peixe que teve que quebrar o silêncio entre ambos:

- Guará!, O que é hermafrodita? – indagou, com voz acanhada.

A inesperada interpelação deixou o lobo boquiaberto. Jamais imaginara que o peixe fosse capaz fazer uma pergunta tão simples e direta. Sem saber o que responder; coçou a barba. Procurou ganhar tempo. Pigarreou; com se quisesse limpar a garganta. Pensou... Pensou...

O peixe que esperava uma resposta imediata; não mais se conteve. Gritou:

- O que foi, perdeu a língua?
- Calma; calma amigo! Estou estudando as palavras!
- Se soubesse que teria que estudar; não teria perguntado! – desabafou.
- É muito difícil de explicar, Pirá! Não consigo encontrar as palavras certas! É... Como direi... É...
- Chega de tanto nhem-nhem-nhem; diz logo! - gritou, irritado.

O lobo ficou confuso. Ficou tão confuso que desejou possuir o que o bicho-homem chamava de dicionário. Mas não o possuía. Teve que se arrumar sozinho.
Após analisar friamente cada sílaba e proceder à escolha da entonação vocal; conclui secamente:

- Não sei...
- Não sei...! Como não sabe? - indagou, com espanto.

Seu espanto só não foi maior por que previra que o lobo estava inventando uma história para deixá-lo assustado. Depois, perdeu a feição carrancuda e sorriu. Sorriu como se houvesse escutado a mais hilária anedota de sua vida.
O lobo também não se conteve, sorriu alto e espalhafatosamente. Ficaram um bom tempo naquela pantomima. Era só um olhar para o outro, e os sorrisos recomeçavam. Parecia que riam de uma anedota infindável.

- O deputado não tem outra coisa para inventar?
- Acho que não, amigo!
- Essa sua piada foi muito engraçado, Guará! O amigo é um grande humorista.
- Humorista? Humorista, não! - rebateu o outro. - Eu apenas não encontrei as palavras certas!
- Está bem... Quando o amigo encontrar; poderá me explica o que é essa tal hermafrodita.

O peixe ficou risonho e de espírito desarmado. Qualquer outra notícia, por mais assombrosa que pudesse vir a ser, não seria capaz de estancar sua alegria. Pelo menos, era o que se poderia imaginar naquele momento.

- Vê se me escuta, Pirá... Acho melhor amigo não ficar risonho desse jeito... Fiquei sabendo de outro boato que me deixou com uma pulga atrás da orelha.
- Conta logo, ora! Já estou pronto para novas risadas.
- Está bem, seu cabeça dura! Andam comentando que o deputado vai promover uma disputa entre nós... Uma disputa para saber quem é o melhor!
- Claro que sou eu! - atalhou o peixe.
- Não brinca, Pirá... Este assunto é sério! A disputa pode acabar com nossa relação!
- Então é sério! É sério mesmo; é pra valer?
- É! E pelo que sei, nesta disputa só vai haver um vencedor.
- Que loucura, Guará! O deputado perdeu o juízo!
- A culpa não é só do deputado, Pirá...
- Você ainda o defende! Como pode ter coragem de defendê-lo? Não se esqueça que ele quer plantar a discórdia entre nós!


O peixe ficou revoltado. O lobo era seu melhor amigo; o último que lhe restara. Alem de tudo era seu único elo de ligação com o mundo externo. Se, de repente, por algum motivo perdesse aquela ligação, não teria a menor chance de sobreviver. Pensou na possibilidade do bicho-homem-deputado patrocinar a luta. Concluiu que era bem provável que sim. O lobo já lhe contara que aquele tipo de diversão era muito comum na cidade.
Perderia a luta, simplesmente. Jamais teria coragem de ferir o lobo; seu melhor amigo. E nem poderia. Era só olhar a enorme diferença de estatura entre ambos.

“Será que o deputado não é capaz de perceber essa diferença...? Ou será que tudo não passa de uma armação para beneficiar o lobo?, indagou-se, ele. Claro que só pode ser isso! É uma grande armação... uma grande armação para beneficiar o lobo!”, concluiu, então.

Enquanto o peixe consumia seu tempo na ânsia de descobrir que motivação levara o deputado instituir aquela disputa; o lobo aproveitou a distração do amigo para beber um bom gole d’água fresca. A água estava gelada. Com salto acrobático transpõe a vegetação e atingiu a vertente da cachoeira. Saciou a sede na mais cristalina e inexplorada nascente do Riacho Fundo. Pouco depois, com um outro salto, não menos acrobático, foi ter com o peixe.

- E aí Pirá, tudo bem!

O outro não emitiu resposta. Permaneceu calado, com olhar fixo no chão; tapetado por folhas secas. Talvez, desejando encontrar um novo alento naquela massa de vegetação úmida e pútrida.

- Tem mais uma fofoca que não te contei... - insistiu o lobo.
- Então fale, ora! – respondeu o outro, com visível desinteresse.

Desta feita, o lobo compreendeu que não mais precisava tecer comentários preliminares. Tratou de ir direto ao que tinha a dizer:

- O deputado anda dizendo que você é uma bicha, Pirá.
- Ele anda dizendo... Sabe que o deputado está certo, Guará!

No primeiro momento, o peixe não atinou para as entrelinhas daquela afirmação. Não se deu conta de que nas entrelinhas do anunciado se escondia verdade e mentira.
Porém, no momento seguinte:

- Bicha; eu estou com bicha? - gritou, já se coçando com os sintomas da doença.
- Calma, Pira! Não leve esta afirmação a sério... O bicho-homem-deputado não sabe o que diz!
- Como calma! Quem é ele para afirmar que estou com bicha? Por acaso também é médico?
- Não fique de miolo quente, amigo... Talvez eu não tenha me expressado direito.
- Não se expressou? Então me diga como sabe que estou doente.
- Se eu tiver minuto, só um minuto; poderei explicar melhor este boato.
- Então explique... Explique-se melhor. - gritou.

Preocupado com aquela reação inesperada, o lobo procurou compassar as palavras e pronunciá-las em alto e bom som para não lhe causar maior sofrimento. Contudo, não estava certo se a emenda que preparava seria melhor do que o soneto.
Chegou a pensar que talvez fosse melhor não revelar tudo que sabia. Chegou a pensar que melhor seria manter o peixe em eterna ignorância; longe daquelas fofocas do bicho-homem.
Mas já não havia como recuar. A verdade deveria ser dita; doa em quem doer.
Pigarreou, imaginando que seu pigarrear era suficiente para aliviar o sofrimento do amigo. Modulou o vocal e, falou o que tinha a dizer.
- O deputado não falou que você está doente, Pirá... Não disse que você está com bicha. - respirou, profundamente. – O deputado afirmou que você é uma bicha. Uma bicha! Entendeu?

Ante àquela afirmação; o peixe reagiu com cautela e tato.

- Escute aqui, Guará! Creio que o amigo não anda bem da cabeça. Primeiro apareceu como a história do político... Depois com a tal hermafrodita. Agora, com todo respeito e admiração que lhe tenho: dizer que sou uma bicha; já é demais, não acha?
- Alto lá, Pirá. Em momento algum fiz esta afirmação! Estou apenas traduzindo os bochichos que escutei na cidade do bicho-homem.
- Bochichos! Então me dê uma melhor tradução para esses bochichos! - deu três pulos para trás e, com os olhos esbugalhados, fitou dentro dos olhos do lobo.
- O que é isso, Pirá! Não estou reconhecendo o amigo!
- Estou esperando que me diga quem é bicha, por aqui!
- E eu é que vou saber! - respondeu o outro, acuado. - Além do mais, quem inventou esta história foi o deputado, e não eu!
- O deputado, sempre o deputado! Será que foi para isso que inventaram o deputado?
- Ah!, isso posso responder... O deputado é desocupado e mentiroso.
- Será; será Guará? Será que o desocupado é pior do que o bicho-homem-caçador?
- Ufa!, ainda bem! Pensei que o amigo não prezava minha lealdade.
- Que nada, Guará... você é amigo. – sorriu, e indagou já em clima de camaradagem. - Guará!, O que é her-ma-fro-di-ta?
- Olha Pirá, eu ainda não desvendei esse quebra-cabeça por inteiro. A única coisa que posso dizer; é que a tal hermafrodita é metade macho e metade fêmea.
- Cruz credo! E a tal bicha?
- Quanto à bicha; só perguntando ao deputado! - e sorriu, da sua própria ignorância.
- O deputado deve ser desequilibrado! Será que ele não está fazendo confusão de identidades?
- Não estou aqui para tomar partido, Pirá. Mas posso te garantir que até fotografias suas publicaram no jornal.
- Fotografias... Que fotografias? Ninguém nunca me fotografou!
- Ora!, Uma fotografia com você mordendo a perna do bicho-homem.
- Você ficou doido! Vê se tenho cara da dona piranha!
- Ora, se não foi você; então fique calmo, amigo! Com toda certeza o deputado está querendo se promover, e não tem coragem para assumir!
- Assumir? Como assumir?
- É assim que eles falam por lá, Pirá! Dizem que é coisa de enrustido... Daqueles que jogam lama nos outros para esconder a própria sujeira.
- Não entendi... mas deixa pra lá! Deixa ele aparecer que vou mostrar meus documentos.
- Gostei dessa, amigão! Mas pode ir tratando de arrumar suas tralhas que vamos fugir daqui.
- E por que fugir?
- Por quê?! Já esqueceu que o bicho-homem quer cortar nossas cabeças.

Uma vez mais, o peixe não foi capaz de entender a mensagem do lobo. Estava tão entediado com a conversa que não conseguia atinar para que o outro lhe dizia. Sua cabeça dava voltas. Sentia o corpo girar como se estivesse dentro de um redemoinho.

- Vai me fatiar? Vai me trancar na geladeira?
- Calma... É a disputa, não te falei?! O deputado quer escolher um de nós para ser o símbolo da cidade.
- Ora, mas que besteira... Já escolheram meu avô! Foi o bicho-homem que o batizou de “O PIRÁ-BRASÍLIA”. O que o deputado quer agora?
- É aí onde mora o perigo, Pirá. Lembra do boi Zebu; do meu amigo da fazenda?
- Claro que me lembro! Não foi ele que te salvou do cerco do bicho-homem-vaqueiro?
- É... esse mesmo. Você não vai acreditar no que vi!

Prevendo que poderia ter ocorrido uma tragédia, muito maior do que aquela que se anunciava; o peixe, que nem bem havia recuperado o semblante meigo e doce, entrou em pânico.

- Morreu? Virou churrasco?
- Tenha calma, Pirá. Recordar essa tragédia vai doer mais em mim do que em você. Eu o considerava como a um irmão, sabia?
- Tudo bem, eu só estou aflito... Você só me dá notícias ruins! Cadê as boas notícias que você disse que tinha para me dar?
- Depois... Primeiro tenho que encerrar este caso...
O lobo balançou a calda para espantar um mosquito chupa-chupa. Também conhecido como mutuca. Começou a andar e a contar sua aventura.
- Sabe de uma coisa, Pirá... Eu não tenho o costume de entrar pela porteira da fazenda. Mas, uns dias atrás, eu estava lá por perto, e resolvi: vou passar é por aqui mesmo. Meu amigo! Quando olhei pro alto... Quando olhei na testeira da porteira; não acreditei!
- O que foi que você viu?
- Vi a cabeça do boi Zebu! A cabeça fincada numa estaca; e embaixo escrito: MANSÃO BOI ZEBU.
- Que crueldade, Guará! Quem foi capaz de fazer uma maldade dessas com criatura tão mansa, tão meiga, tão prestativa?
- Não sei, Pirá. Mas tenho certeza que aquela casa é do bicho-homem-deputado...
- Do deputado? Então foi o deputado que matou o boi Zebu? – saiu correndo, histérico.

Quando retornou estava histérico e ofegante. Estava tão ofegante que não teve ânimo para dizer uma palavra sequer. Quando conseguiu; preferiu sufocar as imagens daquela cena de selvageria que dominava seus pensamentos E como era do seu costume, para afastar os momentos de angústias e aflição; foi aliviar o fardo nas águas do riacho.
A água estava fria. Sentiu nas escamas o benefício do choque térmico. Os músculos se contraíram. Nadou, nadou; foi até o fundo. Colheu uma pedra coberta de lodo fino, e retornou à flor da água com espantosa velocidade.
A pedra foi arremessada a grande distancia. Chocou-se com os galhos ressequidos e provocou vários estalidos.
O estalido de galhos seco assustou o lobo. Eriçou as orelhas e ficou alerta; temeroso da presença do bicho-homem-caçador.
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