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Artigos-->Eram os Deuses Marginais? -- 08/02/2001 - 14:54 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Restringindo as especulações que levaram à elaboração do presente texto ao período que sucedeu ao declínio do Império Romano, pode-se afirmar que a civilização ocidental não tem sido, nos últimos dois mil anos, a história da sublevação de classes sociais dominadas. Não foram os servos ou os escravos a serviço dos patriarcas que dinamitaram o poder do patriciado e impuseram o feudalismo ao velho continente. É no mínimo um tanto fantasiosa a versão de que o cristianismo tenha sido a religião de servos e escravos que um dia se revoltaram e impuseram sua crença aos antigos senhores.



Os servos e os escravos que se mantinham sob a tutela da família romana professavam, até o fim do Império, a religião do "pater familis", seguiam louvando os deuses lares. Nos limites da família, ninguém ousaria um caminho diferente – a religião cristã era sim uma fé clandestina, mas essa clandestinidade necessariamente se exercia fora do território submetido ao controle absoluto do chefe do clã.



Os indivíduos produtivos, capazes de manter o sistema funcionando, esses se recusavam a subverter a ordem constituída, até porque não apenas a mantinham como se mantinham sob seus ditames. Aventuraram-se a enfrentar os patriarcas não os servos e os escravos que permaneceram sustentando os senhores, mas os que não lhes serviam mais.



Admito prova em contrário, por não dispor de elementos de convicção dotados de precisão científica, mas acredito piamente que a ruína do poder de Roma não decorreu da infidelidade dos que lhe serviam de sustentáculo. Foi o resultado da ação de contingentes populacionais que já não encontravam função econômica sob a égide da família e simplesmente precisaram combatê-la, até pela carência de alternativa capaz de conferir-lhes viabilidade. Relegado aos rincões improdutivos do território europeu, o sujeito que lentamente tomou o lugar do patriarca de Roma e impôs até sua religião proibida ao mesmo proletariado que servia àquele é, em essência, não um subversivo heróico, mas um indivíduo que age em favor de sua própria sobrevivência.



É evidente que a reviravolta não ocorreu da noite para o dia e só pontualmente caracterizou-se pelo recurso à violência. A tomada do poder se verifica não como um confronto deliberado promovido por um grupo extremamente coeso, mas como um processo lento e desordenado, que demorou uns poucos séculos, em que figuras integrantes da condução política e ideológica do sistema patriarcal vão sendo pacientemente corrompidas pelos excluídos, até que se chega a Justiniano e se tem a antiga “corja” definitivamente no comando, de lá apeando os então senhores.



Em linhas gerais e em termos econômicos, a lógica do feudo não difere muito da empregada no seio da família romana. Os novos donos da situação – cristãos que emergiram da marginalidade, isto é, das catacumbas – impõem aos filhos dos servos e escravos de Roma conceitos religiosos e morais distintos dos anteriores, mas não alteram a essência da forma de dominação. Os vassalos eram homens teoricamente “livres”, que deviam ao senhor feudal, entretanto, uma fidelidade que pouco se diferenciava da submissão absoluta sob a qual gravitava a família romana.



Mais uma vez não se localizam em vassalos e servos submisso aos interesses dos senhores feudais o germe da corrosão do sistema de dominação social. Como em Roma, são sujeitos excedentes, excluídos, sem importância econômica para a preservação do feudo, que vão servir de algozes do poder exercido pelos senhores feudais. Refiro-me à burguesia, grupo marginal que, impiedosamente expulso dos feudos, vai povoar cidades situadas em locais estratégicos para a implantação do capitalismo mercantil e para a decadência progressiva e inexorável da sistemática feudal.



Também em analogia à extinção do patriciado, não se opera, na ascensão da burguesia, um processo mágico, revolucionário, transcorrido em dois dias ou em três meses. Os antigos senhores feudais são inclusive preservados durante longo período, como figuras cada vez mais manietadas pelos novos donos do poder, que só se estabelecem de modo definitivo, afastando de vez a convivência pacífica que duraria pelo menos trezentos anos, a partir da industrialização. Quando um remanescente do feudalismo, à beira do completo ocaso de sua classe social, declarou que o Estado era ele mesmo, revelou-se incapaz de perceber que o Estado há muito não guardava sua feição, posto que fora sutilmente colocado a serviço daquele bando perigoso e errante que seus antepassados haviam atirado para fora dos feudos, por falta de espaço e de função.



Toda essa linha de argumentação pode parecer despropositada, mas guarda uma lógica assustadora, na medida em que a história pregressa vai sendo repetida nos dias de hoje. Nas fábricas, o proletariado continua a serviço dos que adquiriram sua força produtiva a preço de banana, apresentando elevados índices de resistência quando se trata de acompanhar forças políticas ditas progressivas. Nos campos, o trabalhador rural é, de um modo geral, um ser submisso, que enxerga com maus olhos a resistência tenaz, mas minoritária, de grupamentos como o nosso MST ou os similares em países semelhantes ao Brasil.



A força que vai lenta e impiedosamente corroendo os alicerces da dominação vigente é, mais uma vez, a ação inexorável da marginália. O operário que continua apertando parafusos não pega em armas e, em regra, nem mesmo vota contra os interesses do empresariado. Seu antigo colega, de quem o sistema tirou o emprego que o sustentava, a esse é que não sobrará alternativa senão o crime e a subversão involuntária. Unidos uns aos outros, indivíduos nessa última situação terminam organizando-se talvez mais do que os excluídos de outras épocas e formam, alguns de modo subalterno, outros no comando, o poder sucessor, o poder do crime institucionalizado.



Na nova ordem, é pouco provável que venham a subsistir os valores sociais que andam por aí há milênios. Quando estiver de forma definitiva no comando uma classe social cuja lógica é o rompimento de qualquer forma de ética, não há sequer como supor em que mundo estaremos, mas é quase certo que os netos de meus netos não se formem em um sistema social apto a multar os que cometem irregularidades no trânsito.



É difícil prever. Oxalá minhas especulações estejam equivocadas, tudo isso não venha a se concretizar na realidade e não se precise forjar uma sociedade com base em conceitos dessa ordem. Infelizmente, contudo, não é esse desfecho que se anuncia na maior nação capitalista, cuja recente confusão eleitoral pôs a nu, de forma inequívoca, em que tamanho e com que proporções já atua em seu âmbito o poder cada vez mais visível daquilo que se convencionou conhecer por meio da palavra "máfia".

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