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Contos-->Bodas de Ouro -- 19/11/2004 - 22:00 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O rosto da pequena criança parecia iluminar-se diante daquela maravilha! O olhar embasbacado do moleque, em seus cinco anos, era mais que compreensível, até porque quase nenhum convidado dentre os mais de quatrocentos que passariam por ali naquela noite jamais vira uma cascata de taças de champanhe, quanto menos uma com mais de dois metros de altura. E como comentara uma convidada deslumbrada: - Tudo “Veuve Cliquot”, francês!

A entrada do clube, onde a festa ocorria, estava irreconhecível! Duas palmeiras Imperiais ornavam o portão de entrada, o que já causava um certo tráfego inédito naquela calma rua de São Paulo. Eram, em sua maioria, sócios do clube que passavam por ali e queriam saber do que se tratava. Rapidamente eram informados pelos seguranças que se tratava de uma “festa particular”, o que acabava suscitando alguns resmungos e também perguntas sobre quem era o “dono da festa”. Os resmungos eram ignorados, e as perguntas respondidas com breves “não sei”.
Julio Tarrascano era assim desde sempre. Adorava festas, música, bebida e os amigos, mas sem badalação, sem revistas, jornalistas chatos, nem mesmo os simpáticos, e restringindo os famosos aos que eram antes amigos, sendo a fama uma casualidade apenas. E assim teria de ser na sua festa de Bodas de Ouro.

Quem entrava logo topava com um corredor de mais ou menos vinte metros, com as paredes repletas de fotos, sem ordem cronológica alguma, cobrindo os últimos cinqüenta anos da vida a dois do casal Tarrascano. Julio e Dona Cida protagonizavam também um mural com desenhos feitos pelos netos mais novos, devidamente assinados e com dedicatórias, pelo menos dos que eram capazes de escrever. Havia netos de todas as idades, frutos de sete filhos do casal.

E era uma história linda a daquele casal. Mais de meio-século antes daquele dia de festa eles se conheceram, em uma quermesse promovida pela igreja de Santa Ernestina, interior do Estado de São Paulo. Naquele dia o jovem, recém-maior-de-idade, ainda um auxiliar de pedreiro, pediu a mão de Cidinha, a filha do dono da farmácia, em namoro. O evento estava bem no começo, e ele disparou para ela que experimentava o amor à primeira-vista, e que se ela o aceitasse como namorado ele lhe daria tudo o que ela quisesse, casas, carros, tudo o que ela sonhasse ele daria a ela.
À época aquilo era praticamente um escândalo. Uma moça de família, com pai farmacêutico e mãe professora, flertar publicamente com um sujeito abrutalhado, que usava quase sempre a mesma roupa surrada, exibia-se sem camisa em locais públicos e ainda por cima filho de um roceiro que tinha fama de amalucado com uma doméstica que fazia se passar por muda, de vergonha da voz grossa que tinha como maldição.
Mas foi assim que tudo se iniciou. Cidinha virou Dona Cida, e o Julio maltrapilho e subempregado virou o maior empreiteiro do país. A fortuna viera muitos anos depois, mas para Dona Cida começara ali, naquela noite no barracão da igreja em Santa Ernestina. Aos olhos daquela senhora tudo não passara de um cumprimento de promessa. Ela fizera sua parte, dando sua fé ao moleque empertigado e autoconfiante, e ele fizera a dele, buscando honrar seu compromisso de dar a ela tudo o que quisesse.
E Dona Cida não se fizera de rogada, demandava tudo o que havia de bom e caro, sem cerimônia nem parcimônia. A fortuna viera aos poucos, e assim crescera o padrão da família. Das primeiras férias com os filhos em Peruíbe, com fotos mil e areia demais dentro do carro, ao último natal, com toda a família na mansão alugada na Riviera Francesa (sempre lembravam que Paul Macartney estava na casa ao lado - inclusive havia fotos dele na piscina, no melhor estilo “paparazzi”).
O casal Tarrascano nunca fora notícia. As empresas eram profissionalizadas, e a família nos negócios resumia-se ao patriarca, sem filhos ou parentes sequer empregados ali. Julio não misturava as coisas, nenhum dos sete filhos e cinco netos em idade de trabalho fazia negócios com o velho. E ninguém reclamava, pois a regra sempre fora clara e, além disso, todo mundo recebia gordos proventos do pai, que dava, mas não admitia que pedissem.

A festa era mais que uma comemoração do matrimônio, da família ou da sociedade que criaram e viviam. Era o evento de celebração de uma vida inteira, pois para os donos daquela noite a vida iniciara-se havia os tais cinqüenta anos.

Julio era a festa encarnada em gente. Elegante num blazer azul-marinho, com um lenço bem dobrado ao bolso, ele recebia os convidados ao final do corredor de entrada. Dona Cida fazia bonito ao lado dele, num longo verde-escuro bem adequado ao corpanzil cultivado em décadas de vida-boa.
Sorriso largo, muitos beijos e abraços eram a marca registrada de Julio, que recebia todos como parte indispensável do festão, tornando o ambiente ainda mais alto-astral do que fora imaginado quando de sua concepção.

A festa correu de forma impecável, porém uma análise fria e desapaixonada revelaria que a receita adotada era infalível: Bebida abundante e da mais alta qualidade, jantar preparado pelo mais badalado, e caro, banqueteiro da cidade e três shows ao vivo - uma banda estilo “big band”, uma cantora famosíssima num intimista piano-e-voz, e uma banda “cover” que estava na “crista da onda” animaria o final da festa com black-music dos anos setenta.

Já era quase uma da manhã, a festa ia às mil maravilhas, a cantora acabara de “bisar” seu maior sucesso, num dueto patético e emocionante com o Julio, quando Julito, o neto mais velho, tomou o microfone a pediu a atenção dos presentes.
Os presentes eram, aparentemente todos os que foram convidados, pois vieram todos, e ninguém parecia ter ido embora ainda, tamanha a animação daquela festa que tinha tudo para ser antológica.

Julito falou uns dois minutos sobre o significado daquilo tudo, do avô, da avó, de coisas sobre família, união, e demais baboseiras sentimentais usuais em eventos como esse. Sem dar tempo para que algum sono fosse despertado, ou algum calo doesse, ele apresentou o que foi denominado de retrospectiva do amor verdadeiro, ou algo assim, despercebidamente cafona, mas perceptivelmente tendencioso em despertar ternura e suspiros na platéia empolgada e repleta de boa-vontade.
Desceu, de surpresa, no meio da maior parede do salão, um telão, bem maior que os que se podem chamar de tradicionais. Teve início uma exposição de fotos dos dois, Julio e Cida, desde os tempos de Santa Ernestina até os dias de hoje, com netos e já um primeiro bisneto. As fotos realmente haviam sido muito bem selecionadas e distribuídas ao longo de quase cinco minutos, cativando a atenção de todos e causando mais de uma vez suspiros e comentários emocionados da platéia.
As lagrimas se tornaram abundantes ao redor do salão, eram muitos os que choravam por ali, inclusive o casal principal do evento. Julio, sempre durão e quase sisudo, se esvaía em lagrimas, coisa que a maioria ali jamais vira.
A última foto da série havia sido tirada naquela mesma noite, com todos os mais de vinte descendentes diretos do casal. Normalmente Julio teria exaltado em altos brados as maravilhas da tecnologia, os encantos de sua família, feito alguma piadinha, mas não foi o que se viu.
As luzes voltaram ao que era o normal naquela noite, o telão foi recolhido de forma espetacular, num átimo, todos voltaram aos papéis de convidados de rega-bofes grã-fino. Dona Cida já enxugara as lágrimas e distribuía o alvo sorriso como se fosse santinho eleitoral, e Julio ainda chorava, nitidamente fora de suas capacidades de contenção de choro, com a mão esquerda fazendo um péssimo trabalho em esconder os olhos vermelhos e inundados do velhote.
Por um instante poder-se-ia farejar hesitação no ar. Ninguém estava preparado para aquilo. Como abordar o Julio Tarrascano chorando copiosamente? Parecia não haver resposta para essa questão, e o velho talvez ficasse ali, diante de centenas, chorando até secarem seus olhos e serenarem seus ânimos.
A cena já estava por se tornar insólita quando Julito, nitidamente a melhor presença de espírito convidada, aproximou-se do avô e abraçou-lhe com apenas um dos braços, procurando não aparentar estar oferecendo o ombro ao ancião. Qual não foi o susto do jovem quando Julio, sem titubear, fez uso do ombro do neto num momento de clara explosão de choro quase-convulsivo.
Aquele momento pareceu mágico, o empresário mais respeitado e admirado do país, o dono da festa, o dono daquela família, o ideal brasileiro de “self made man” debulhando-se em lágrimas e grunhidos nos ombros do neto de trinta anos, cercado de centenas de pessoas, muitas delas íntimas, a maioria bem próxima. Ninguém ousava sequer se mover. Alguns nem se davam ao trabalho de fingirem estar conversando, outros simplesmente contemplavam a cena com olhar de compaixão. Pode-se imaginar que a maioria viria a comentar que aquilo só podia ser fruto de emoções represadas, que se tratava de descarga emocional. De alguns presentes pôde-se ouvir alguns comentários enternecidos sobre a sensibilidade daquele homem. Alguém chegou a iniciar uma salva de palmas, mas o não-engajamento dos demais minguou sua iniciativa a umas três ou quatro palmas isoladas.
De todo modo, mesmo Dona Cida preferiu deixar o marido tomar ar a sós com o neto mais velho. Nem Junior, o pai de Julito, aventou participar do momento singular do qual desfrutavam avô e neto, aceitando conviver com a inquietação e dúvida que lhe assombravam naquele instante.

- Puxa vô, ta tudo bem? Vô? Você está bem?
Nada, nem uma palavra do velho enquanto dirigiam-se a um banco estilo praça do interior que distava uns vinte metros da porta do salão.
O silêncio fora rompido cinco ou seis vezes pelos soluços de Julio, que perdera o controle sobre a situação e estava quase em pânico.
Ali, naquele banco, a escuridão da noite e a distância dos demais eram eficientes em camuflar a choradeira exagerada do velho, garantindo certa privacidade aos dois, a não ser pelos olhares mais atentos e familiares que rondavam as beiradas do salão.

- Vô, fale se você está bem, por favor! Eu estou ficando bem preocupado! Quer que eu chame uma ambulância? Tá doendo o peito? Formigando alguma coisa?
- Para, Julito! Ta tudo bem! Deixe-me respirar um pouco! Por favor!

E durante uns cinco ou seis minutos Julito conviveu apenas com seu constrangimento em estar ali, com o avô deprimido, mudo, e sua namorada, seus amigos e parentes certamente observando cada movimento seu, à espera de algo, um sinal, um sorriso, qualquer coisa.

- Está insuportável! Eu não agüento mais! Desculpe, que cena lamentável! Volte lá para a festa! Custo a crer no que se passa!
- Pôxa, vô! O que você está sentindo? Nunca te vi assim! Está todo mundo preocupado com o senhor.

O olhar de Julio mirou os que estavam espreitando por entre as cortinas do salão, e sem demonstrar a mínima alteração, ele se voltou para Julito, ameaçou falar duas vezes antes de se abrir ao neto, de forma inédita e desconfortavelmente íntima e reveladora:

- Ai, Julito, meu neto! Seu avô fraquejou de vez! Não sou mais capaz de viver! Não agüento mais viver assim! Minha vida acabou e eu não sei mais como tentar vivê-la!
- Vô, não sei direito o que está acontecendo, mas o senhor sabe onde está? O senhor sabe o que está acontecendo aqui?
- Claro que sei! Não ache que estou doente, ou surtando, não. Eu estou bem, pelo menos não vou ter um treco agora e aqui. Desculpa filho, seu avô já não é mais o mesmo. Faz tempo.
Julito fez sinal com o braço que estava atrás da cabeça do avô, no banco de praça, indicando aos convivas que estava tudo bem, algo como “toquem a festa por aí, que aqui está tudo bem”, no que foi parcialmente atendido, visto que alguns se mantiveram estáticos, como que filmando a cena à distância.

- Olhe minhas mãos! Velhas, fracas, trêmulas! Trêmulas! Essas mãos já bateram, estapearam, já carpiram, capinaram, escreveram. Essas mãos escreveram minha história, minha vida. Meu aperto de mão costumava machucar os garotos na escola. Sempre escrevi mais rápido que os outros. Essas mãos trabalharam sem nunca doerem, sem nunca reclamarem, e agora estão tremendo, enrugadas e tristes. Eu estou assim, moleque, enrugado e triste.
- Que bobagem, seu Julio. Isso é hora pra ficar borocoxô? Logo quem? O Senhor Alegria Irradiante!
- Não é borocoxô não! Cansei de fingir que aceito essa condição. Sou incapaz de me conformar com a velhice. Tenho vivido essa velhice como se fosse uma fase, um estado passageiro, uma variação da minha condição natural. Como se essa condição natural fosse a juventude. Julito, hoje me dei conta de que nunca mais vou ser jovem, ter mãos firmes, sorriso branco, cabelos fortes e disposição. Nunca mais serei o que eu achava que sou. Se nunca voltarei desse estado para aquela condição, é porque minha condição é essa, a velhice. Eu sou, estou e para sempre serei, cada vez mais, um velho.
Tenho me preocupado em acreditar que não sou assim, em me programar para fazer o que não consigo mais tão logo eu volte a ser o que era. Parece que meu inconsciente acredita piamente na renovação celular que anunciam para o futuro. Sabe, noutro dia me peguei assistindo a um jogo de tênis, aqui mesmo no clube, e num certo momento, um dos sujeitos que estava jogando claramente roubou o outro, descaradamente. A coisa passou porque ele se pôs a intimidar o outro que, menorzinho, resolveu deixar passar. Ali pensei, se isso fosse comigo eu pularia a rede e acertaria o nariz desse palhaço. Virei e fui embora com pena dos dois. Cheguei ao vestiário com pena de mim. O que fui resolveria essa questão. O que sou nem sequer seria roubado, por respeito ou dó. Droga, eu sou um velho, fraco, frágil, limitado e dependente.
- Vô, o senhor é o “cara”! Todos aqui admiram o senhor. O senhor é o meu ídolo!
- Ah sou? Você admira o que? Minha memória falha? Minha dificuldade com nomes? Minha flatulência involuntária? Você admira minha biografia, minha história. Você admira feitos de um jovem como você, que tinha vigor, disposição, charme. Esse jovem morreu, e eu fiquei incumbido de cuidar de seu espólio. Eu sou o capataz de minha obra.
- Não concordo! – Julito estava com menos vontade de argumentar com o velho. Parte porque o conhecia e sabia que argumentar com Julião era inútil, parte por, de certa forma, colocar-se no lugar do avô e sentir um pouco daquela agonia.
- Fui o arquiteto, o engenheiro e o construtor de minha vida, hoje sou apenas o caseiro dela. É isso mesmo, o caseiro. É assim que me sinto agora. Assim é que me senti lá dentro, com aquelas pessoas vindo me elogiar, me paparicar, e celebrando cinqüenta anos do meu casamento. São homenagens póstumas em vida! Não consigo sentir isso e segurar!

O silêncio inundou aquele banco, com cigarras se fazendo ouvir de bem longe.

- Veja a sua avó, que figura doce, forte, sólida. Ela sempre foi assim. Ela se manteve sendo o que sempre foi. É como se ela sempre tivesse sido a pessoa que ela é hoje. Suas limitações não aumentaram, mudaram. Ela enrugou, mas sua beleza nunca foi de encantar a todos. Sempre vi a beleza dela em seus gestos, trejeitos, expressões, que continuam todos idênticos, intactos. Sua avó soube envelhecer, se preparou para o ciclo da vida de forma soberana, absoluta. Sua avó humilha a velhice com um esnobismo fleugmático. Eu me sinto surrado pela idade, sinto que fui apanhado de repente pelo tempo impiedoso que eu sempre achei que jogava a meu favor. Sua avó venceu o tempo, e eu fui goleado por ele.
Ela deve estar comemorando o fato de estar casada há meio-século, e eu comemoro o fato de hoje fazer bodas de ouro. Ela festeja o fato, e eu a data. É assim, como se fossem arte e esporte, separados pelo aprimoramento, pelo enriquecimento que eu não soube ter durante a vida. A vovó é uma artista que se aprimora, que melhora e se prepara sempre para o dia seguinte, e eu sou um atleta, que após a fase áurea, rápida, quase fugás, cai no ostracismo e na vala lodacenta da limitação, passando a ser apenas o reflexo do que foi, do que fez.

- Que baixo astral! Hoje não é dia pra isso não! Hoje é festa! Vamos voltar pra lá e espantar essa urucubaca que chegou aqui. Vamos?

- Vá você, eu vou ficar mais um pouco por aqui. Não estou com vontade de ver ninguém agora! Além do que, acho que fiz um certo papelão, e preciso me preparar para voltar lá.

- Tá, então ficamos os dois!

- Bom, a companhia é muito agradável! Você é um sujeito formidável! Fico feliz em ter um neto assim! Você é ótima companhia! Ótima mesmo! Ótima!
Sabe, veja que curioso, meu avô vivia com medo da morte. Ele tratava a morte como uma perseguidora implacável. Houve um tempo em que eu tinha certeza de que não morreria cedo, que tinha uma missão, ou um caminho meu a ser trilhado, um caminho que, enquanto eu não chegasse ao seu fim, estaria com minha vida protegida pelo destino. Hoje me apavoro todo dia pela manhã, quando penso que existe uma infinidade de fatores que podem me privar de terminar o dia. Parece bobagem, drama barato, mas um infarto, um derrame, uma disfunção qualquer de qualquer coisa aqui dentro é provável a qualquer momento. Isso sem falar na minha fragilidade.
- Como assim? Frágil, o senhor? Esse cara é uma fortaleza! “Solid as a rock”!
- Frágil! Frágil pra cacete! Um tropeção pode me matar! O que te deixa uma marquinha roxa pode me jogar numa cama e desencadear um cenário fatal prum velho como eu. Filho, cada dia que passa me deixa mais fraco, frágil, vulnerável. Eu me pélo de medo de morrer de repente, de ficar impossibilitado de me despedir dos meus, do mundo. Nos dias em que me pego pensando nisso, às vezes olho para um pássaro, uma árvore, e fico imaginando como seria triste estar tendo essa visão pela última vez. A velhice tem isso, cria uma certa intimidade com coisas banais, corriqueiras, presenças marginais na vida da gente, e que parecem terrivelmente indispensáveis quando pensamos na morte. Sei que muito em breve não andarei mais, não comerei mais alimentos sólidos, serei alvo de piedade, serei quase um objeto a ser visitado, mas nunca tocado.
- Eu hein!
- É assim, não posso ter medo de encarar as coisas como elas são! Sempre tive, e isso faço questão de não perder – o senso de realidade! O ciclo da vida é esse, ou eu morro de sopetão, perdendo qualquer capacidade de me despedir dos meus, das coisas e das pessoas, ou morro aos poucos, murchando como um vegetal, minguando e me esvaindo numa cama, virando atração bizarra para gente condoída.
- Olha vô, acho melhor a gente voltar lá pra dentro e retomar o ritmo da festa! O senhor está vivendo um certo inferno astral com essas bodas. Vamos lá, tomar uma bebida, encontrar amigos, comemorar com a vovó, que está num astral ótimo. Vai te fazer bem ficar ao lado dela.

Sem uma palavra avô e neto puseram-se em pé, abraçaram-se demoradamente. Julio, o avô, deu um leve mas sonoro soco no peito do neto, gesto comumente usado pelo velho para demonstrar afeto aos familiares do sexo masculino. O rapaz correspondeu com uma simulação de quem sofrera com o golpe desferido, com direito a careta e sonoplastia, coisa que fazia desde sempre quando dos soquinhos do avô.

Ao chegarem no ambiente da festa, pela mesma entrada que usaram para sair, já não estavam lá todos os olhares curiosos de antes, mas ainda podia se notar a presença próxima da dona da festa, pela aglomeração que se fazia ao seu redor e chamava a atenção de qualquer um que estivesse por ali.

- Salve, salve! E eis que nos brinda com sua presença o protagonista da noite. Seja bem-vindo! Agora a festa deslancha! – Disparou um sujeito baixinho, com nariz achatado e um terno muito mal cortado. Era Dulcídio, velho amigo de Julio, que fazia uso da rara liberdade que tinha com o anfitrião para inseri-lo na roda de convidados.
- Já não era sem tempo Júlio. Demorou esse papo com o Lito, não?! – Dona Cida endereçara essas palavras docemente, mas Julio sabia que se tratava de cutucão no marido para que ao menos aquilo não se repetisse.
- Fico feliz em provocar saudades em tão curto espaço de tempo. Realmente sei que faço falta. Aliás, falta não, pênalti!
As gargalhadas fizeram a rodinha ser notada em todo o redor e quebrou a aura sombria que pesava sobre Julito, que permanecia ao lado do avô.

- Eu estava dando alguns conselhos para meu neto, falando um pouco dos segredos para manter a esposa apaixonada por meio século.
- Devem ser muitos esses segredos. Ficaram naquele banco quase uma hora! – Cutucou novamente Dona Cida, dessa vez com menos doçura e com olhar penetrante direto nos olhos do marido. – Sou tão difícil assim de ser conquistada?
- Mais do que você pensa! Além disso, fiz um pouco do que pode se chamar de testamento verbal para o rapaz! Deixei ali, naquele banco, um pouco de minhas memórias para o moço. Alguns poderiam considerar isso um patrimônio de valor. Espero que ele considere, principalmente depois de tudo o que falou aos presentes naquele discurso.
- Se isso não tirá-lo do verdadeiro testamento... . – Brincou mais uma vez um Dulcídio já derrotado pelo uísque.
As gargalhadas rolaram soltas, enquanto Dona Cida piscava para o neto, e Seu Julio engolia a última lágrima.
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