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Contos-->ÂNGELO -- 17/11/2004 - 23:58 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ÂNGELO


Conto de Antonio Miranda


Ângelo vivia na favela que ficava na Ilha do Príncipe e era, a seu modo, também um príncipe: alto, atlético, altivo, belo. Os olhos tinham o brilho sequioso e inquieto de um desvendador de mundos proibidos, era um aventureiro limitado pelas condições precárias de sua existência. Jovem, já experimentava os limites de seu pequeno universo, mais pelo espírito estouvado e determinado - ainda que um tanto inconsciente e alienado -, do que pelo efeito do sonho e da fantasia, que eram estreitos e circunstanciados.

A Ilha do Príncipe, nos anos 50 do século 20, antes da construção dos grandes viadutos que ligam Vitória do Espírito Santo a Vila Velha: um amontoado de barracos e cortiços fétidos, valões putrefactos a céu aberto, um depósito de desventurados, de refugos ou refugiados. A família de Ângelo viera, como era a sorte ou sina de muitos, do interior do Estado. Sujeitavam-se àquelas dificuldades por falta de melhor opção, até porque não faziam grandes questionamentos. Sorte que eles eram apenas quatro: os pais e os dois filhos varões, um deles servindo na polícia.

Ângelo tinha apenas 17 anos e quase todo o tempo do mundo à disposição. Não estudava. Não havia vaga na escola de segundo grau e, estando às vésperas do serviço militar, era ainda mais difícil conseguir emprego. Tampouco tinha uma profissão ou habilidade definida. Vivia mais na rua do que em casa – que casa?! Era um cubículo apertado, quente, praticamente inabitável, cercado de miséria e necessidades por todos os lados. Os pais passavam o dia no trabalho, e o irmão também. Ele esquentava algum resto de comida, quando não batalhava alimento pela cidade.

Conhecia todos os lugares públicos ao seu alcance, sobretudo as praias em que exibia seu corpo bronzeado. O corpo era um passaporte para o mundo, espécie de chave que abria portas e criava oportunidades. Não era de andar em grupos, fazia novos amigos com a facilidade de sua juventude, com a graça de sua disponibilidade, com o imã de seu contagiante sorriso. Relacionava-se bem com as pessoas, caía simpático aos estranhos. Conhecia os salva-vidas, os vendedores de amendoim, o pessoal da limpeza, os trocadores de ônibus, os porteiros dos edifícios, os guardas-noturnos, os motoristas de taxi dos pontos da costa marítima. Naquela época não eram ainda chamados de taxistas e constituíam uma categoria pequena e até muito prestigiada, principalmente para ele que raras vezes andava de carro.

Sorridente, com uma bem administrada irresponsabilidade, pois não se enveredara pelo crime e muito menos com os vícios de seu tempo: a bebida, o fumo, as drogas que já circulavam pelo becos da favela, pelos inferninhos da classe média e até pelas escolas e grupos nas praias. Mas ele escapava incólume, indiferente, distante dos envolvimentos mais comprometedores. Um milagre, considerando sua condição.
Mas havia também a vigilância da família, o exemplo da família. A pressão maior vinha do irmão Gabriel, o policial. Queria saber por onde andava, com quem saía; dizia conhecer todos os moleques de rua da favela, todos os contraventores, todas as vagabundas que faziam ronda pela cidade. Queria proteger o irmão mais jovem, exercendo um verdadeiro patrulhamento em sua vida, indo aos locais que ele freqüentava para ver com se relacionava. Queria saber quem eram seus colegas, tentando identificar maconheiros e malfeitores. Era capaz de sair à noite pelos locais de bailes suburbanos para flagrá-lo mas não era por lá que Ângelo andava.

Preferia os companheiros das classes mais altas de Vitória, festinhas de família, bailes de rock, cineminhas à tarde, serestas, rodas de bate-papos nas praças do centro da cidade. Aceitava a marcação do irmão com certa resignação, até porque dele vinham as roupas que vestia e algum dinheiro que recebia com certa regularidade. Mesmo sendo pouco, era providencial para o transporte, para um pastel com caldo-de-cana quando sentia fome, para alguma de suas poucas vaidades. Fugia muito dele, evitava-o o quanto podia, mas gostava dele, estava acostumado com o excesso de zelo pois era tratado como se fosse um menino indefeso e ingênuo. Podia ser indefeso e ingênuo mas, a seu modo, sabia se preservar, se defender. Quando chegava ao barraco de madrugada ou quando não voltava para dormir, o irmão ficava imaginando horrores, ele sabia os perigos da cidade, os riscos da madrugada, e só deixava mais nervosa a mãe aflita. Ângelo regressava na manhã seguinte meio arisco, sabendo das reprimendas a que estaria sujeito. Era sempre a mesma explicação: avisar, como? Ninguém tinha telefone naquele buraco do mundo, ele sabia muito bem o que era certo e o que era errado, estava são e salvo, seria mais perigoso voltar no meio da noite que ficar na festa até o alvorecer ou pernoitar em casa de amigos. Que amigos?! – queria saber o irmão Gabriel. Amigos, colegas, gente bacana, nada de mal.

Entre as ondas da Praia da Costa conheceu o carioca Celso e, através dele, outros rapazes que passavam as férias na costa capixaba. Saíram do mar, depois de uma luta alegre com as forças da maré, em algazarra, como se fossem amigos desde sempre. Celso apresentou-o aos colegas. Ângelo tornou-se o cicerone, compartilhou de sanduíches e bebidas, subiu com eles a ladeira da Igreja da Penha, as escadarias do Palácio de Governo e visitaram o Parque Moscoso. No dia seguinte, um Domingo, prestou-se como acompanhante até às areias monazíticas de Guarapari, que nem ele próprio conhecia. O estudante carioca foi até à casa dele na Ilha e ficou consternado com a hospitalidade, a humildade e a calorosa acolhida dos pais do novo amigo. Durante toda a semana, pela manhã, tarde e noite, enturmou-se com os veranistas capitalinos. Andaram quilômetros e quilômetros sem qualquer plano ou propósito, animados apenas pelo entusiasmo juvenil.

Na hora da despedida, na rodoviária, trocaram endereços, e Celso convidou-o para visitá-lo lá no Rio de Janeiro, um projeto quase impossível para ele favelado e desempregado. Recebeu o endereço do colega com certo constrangimento e alguma tristeza pela separação depois de dias tão felizes de convivência e camaradagem. Acenou para os colegas quando o ônibus deslizava na direção do infinito, rompendo a fragilidade daquelas relações.

O carioca voltou à sua rotina de universitário, ao convívio de seus amigos do clube, às rodas de freqüentadores de pontos exclusivos nas praias da zona sul, à sua namoradinha normalista. Ângelo ao seu gueto infecto, com a indiferença de sua ingênua presença, batendo bola no terreno baldio, aos conselhos da mãe preocupada com sua vida solta e inconseqüente, ao pretenso monitoramento do irmão policial. Uma carta de Celso iluminou o seu humilde barraco, chegada por milagre da eficiência de um carteiro nos tempos em que os correios não eram confiáveis, sobretudo devido à imprecisão do endereço estampado no envelope: “Para Ângelo Nascimento Silva/ ao lado do Mercadinho Nossa Senhora da Ajuda/ Praça da caixa d´água/ Ilha do Príncipe, Vitória do Espírito Santo”. Era um endereço para o amigo carioca poder localizá-lo, caso voltasse à capital capixaba nas férias do ano seguinte. A mensagem era de agradecimento pelo companheirismo e pela hospitalidade, com lembranças à mãe dele pelo cafezinho amigo e o convite para que um dia o visitasse em seu apartamento do Rio de Janeiro. Continha um cartão-postal do Pão de Açúcar para marcar aquela amizade entre eles.

Ângelo ficou muito emocionado, sentiu-se prestigiado, feliz. Tinha um amigo na Capital Federal, gente fina, estudante universitário, não era pouco, era o bastante para dar algum significado à sua vida. Ter um amigo era coisa muito importante. Passou a semana inteira contando detalhes daquela convivência bacana de férias aos pais, ao irmão – que não deu muita importância nem atenção - e aos vizinhos.

A vida de um jovem também é feita de imprevistos, de oportunidades, de surpresas porque está sempre aberto para tudo e para todos, pelo menos, no caso de Ângelo, pessoa de fácil relacionamento e camaradagem. Apareceu a chance de ir ao Rio de Janeiro num caminhão de transporte conduzido por um compadre de seu pai. Viajou de ajudante e aquela devia ser a viagem de sua vida. Quis escrever mas não conseguiu ir além das primeiras palavras no papel.

De um subúrbio do Rio ligou para o carioca, que não estava em casa. Não regressou a Vitória, apesar da insistência e aflição do motorista, que tentou persuadi-lo da loucura de ficar sem qualquer abrigo certo, quase sem dinheiro no bolso. Ângelo telefonou outras vezes, sem conseguir o contato. Naquela noite andou a esmo, sem destino, pela ruas do centro da cidade. Conversou com mendigos, prostitutas, recebeu convites de travestis para dormir, conselhos de policiais que faziam a ronda preventiva, comeu angu numa barraca da Lapa, dormiu num banco de praça e por milagre não foi roubado pelos malandros que dominavam a área, talvez por ter caído simpático e merecido a proteção deles.

Pela manhã conseguiu falar com o amigo carioca e logo aconteceu o encontro jubiloso, com abraços e conversações intermináveis. Era sábado e saíram para percorrer a cidade. Tomaram um lotação em direção à zona sul.

Celso não ousou hospedar o jovem e belo capixaba no apartamento dos pais, optou por colocá-lo numa hospedagem barata, alegando ter visita de parentes naquele momento. Ângelo apenas manifestou constrangimento por não ter dinheiro para o pernoite, logo aliviado pela garantia de que o custo era mínimo, que podia ficar o tempo necessário – uma semana, um mês e, exagerando, para sempre.
Já na primeira noite de alumbramentos, de passeios pelo calçadão da Praia de Copacabana, acabaram numa festinha na cobertura de um apartamento da Avenida Vieira Souto. Gente da faculdade. A jovem anfitriã – uma cantora universitária da bossa nova – recepcionava amigos para anunciar o lançamento de seu primeiro LP. Ao lado dela sempre estava uma tia solteirona e beata. Havia cuba-livre e, pelos cantos, casais de namorados e alguns jovens desgarrados com jaquetas James Dean e japonas. Tudo resultava maravilhoso e diferente para o jovem visitante, um tanto deslocado de seu ambiente mas, apesar de seu aspecto modesto, impunha-se pelo garbo e imponência de seu físico atlético, por sua cor praieira, pelo seu cabelo mais comprido do que o comum dos convivas, nem tanto pela moda ainda camuflada mas por falta de trato.

Alguém sugeriu o jogo da verdade. Era comum nas rodas de adolescente e também de adultos da classe média, desde o sucesso do filme “Acossado”, do Resnais, ícone da Nouvelle Vague. A cara feio-bonita e rebelde do Belmondo encantava a juventude. O jogo colocava , em rodízio, gente na berlinda para um questionamento público execrável. As perguntas podiam ser cruéis, indiscretas, satisfaziam o morbo daquela gente reprimida, espécie de válvula de escape, símbolo da modernidade.
-Que acha de um jovem usar calça justa?
-Mulher montada como um cavaleiro na garupa da lambreta?
-Afinal, Elvis Presley é ou não é o maior cantor de rock?
-Brasília deve ou não dever ser construída, não é um tremendo desperdício?
-Você acha certo haver sexo antes do casamento?
Os mais espertos faturavam prestígio dando as respostas que as pessoas queriam ouvir.
-Não, o rock´n´roll não é uma dança diabólica, é um ritmo como qualquer outro, logo passa, já vem aí o twist...
-O preconceito racial é odioso, sou a favor da igualdade dos direitos humanos nos Estados Unidos...
Embora o Brasil fosse ainda a República dos Estados Unidos do Brasil e não houvesse um único negro na festa deles.
-Brasília é necessária para o unir o país mas concordo que pode virar desperdício, de ser abandonada antes do fim das obras. Ninguém constrói uma cidade em três anos.
-Acho uma imoralidade esse negócio de nudismo, a Luz del Fuego devia tomar vergonha.
-Sou a favor do desmonte dos bondes pois só atrapalham o trânsito.
-Acho que padre devia casar, é um homem como qualquer outro.

A figura de Ângelo destoava do conjunto como um chinelo nos pés de um regente de orquestra no palco. Parecia um jovem como os demais reunidos ali: um corpo bem desenvolvido, a cor da pele da burguesia vitoriosa, e poucas afinidades mais. No mais, era um exógeno, periférico, com uma complexão apologética. As vestimentas podiam ter as mesmas linhas básicas mas a feitura era mais vulgar, urdidas com texturas ordinárias, o andar denotava sua origem nos mundos mais primitivos, a forma de sentar, de olhar o ambiente e sobretudo as poucas frases que proferia, além do sotaque denotando condicionamentos rudes, de baixa formação cultural. Talvez por isso mesmo despertara a curiosidade e até mesmo algum fascínio nos convidados. A dona da casa encantou-se com sua ingenuidade, com sua espontaneidade: ele sorria o tempo todo, vibrava com tudo, dava mostras de admiração pelos móveis, com a esplêndida vista do apartamento, com o requinte da mesa de bebidas e comidas, com a movimentação de jovens universitários pelo salão, varanda, escritório, cozinha, num estilo de vida alheio e estranho à sua rotina de vida. Também as jovens pareciam curiosas com a sua condição e impressionadas com a sua beleza quase selvagem, um misto de classicismo e primitivismo.

Quando a garrafa que girava parou, escalando-o para o centro da inquisição, houve como-que uma expectativa nervosa ou até mesmo histérica entre os participantes, principalmente, entre as meninas. Célio tentou evitar o confronto, para proteger o amigo, alegando que ele estava de passagem, que devia partir em seguida, mas a noiva do carioca – que chegara sozinha à festa há pouco tempo –, curiosa e cismada com a presença do jovem, reprovou-o com o olhar, como a desaprovar o argumento. Ela sabia da existência do capixaba pelas fotos da viagem mas não aceitava a idéia de recepcionar uma pessoa da praia, gente que ele mal conhecia e que nada tinha a ver com eles. Ângelo, ao contrário, demonstrou entusiasmo por ter sido escolhido e disposição para o embate. Aquela oportunidade parecia significar muito para ele, queria expor-se, participar, acreditando que podia corresponder à curiosidade alheia e revelar-se como era, sem máscaras. Afinal, aquele era o espírito da brincadeira, uma oportunidade para as pessoas fazerem suas revelações, dar suas definições, expor-se sem hipocrisias. A escolha colocava-o no centro das atenções, poderia dar-se a conhecer, era uma forma muito positiva de aproximação com o grupo. Na confusão de suas idéias, bem podia ser assim.

As primeiras perguntas diziam respeito à sua origem natal, suas primeiras impressões do Rio, algumas preferências pessoais relativas à música popular – “gosto de bossa nova mas prefiro o samba”, “sou católico mas não sou praticante”, “acho esse negócio de virgindade uma bobagem”, “acho comunismo uma coisa boa mas não entendo muito disso” – respostas que acentuavam suas diferenças mas logo surgiu aquela questão recorrente, presente em todas as rodas de jovens de uma sociedade morbosa e recalcada – a questão da sexualidade.
-Como você fez amor pela primeira vez?
O jovem não entendeu bem o sentido da indagação, falou de sentimentos, de relacionamentos um tanto platônicos.
-Eu perguntei sobre a descoberta do sexo em sua vida.
-Ah, agora entendi. (Pausa) Eu descobri o sexo com o meu irmão.
-Sei... ele levou você a um prostíbulo.
-Eu não sei o que é isso.
-... saíram com algumas minas, com alguma garota de vida fácil.
-Não.
-???
-É que nós moramos na favela, dormimos na sala, no mesmo colchão.
O silêncio impôs-se, pesado, constrangedor. Uma perplexidade nervosa no ambiente. Célio estava estarrecido, sem saber o que fazer para defender o amigo.
-Ele me possuiu quase à força, eu resisti mas fiquei com medo de acordar o pai e a mãe, e aí aconteceu...

A dona da casa ficou angustiada. Persignou-se, aflita. A revelação deixara-a em estado de choque, imaginando a bestialidade e o pecado daquele relacionamento, ficou sem saber o que fazer até que deu um grito, pedindo para interromper aquela desfaçatez. Não queria saber se era verdade ou mentira o que estava a ouvir, só queria que interrompessem aquele circo dos horrores, passando a criticar a perversidade daquelas sessões de interrogatório idiota. Levantou-se e saiu na direção do quarto. Célio percebeu que era hora de sair com o amigo, depois de negociar sua retirada com a namorada para acompanhar o amigo que não conhecia bem a cidade.

Na rua, caminharam vários quarteirões sem trocar uma palavra. Ângelo não entendia a gravidade da revelação, rompeu o silêncio para dizer que tinha dito a verdade, e pronto. Célio nem tentou explicar a situação, limitou-se a dizer que ele fez certo em desmascarar aquela gente cretina e sonsa, que vivia apenas da aparência. Quase explicou que fora canibalizado mas achou melhor calar-se.

Foram para o bar Amarelinho, no centro da cidade. Pediram uma cerveja bem gelada, seguida de outras garrafas, e a conversa restabeleceu a confiança entre eles. Continuaram o papo durante horas, até a madrugada. Um diálogo de aproximações e revelações, tentando descobrir afinidades. Horas depois, um tanto bêbedos, saíram abraçados pelas ruas da Cinelândia, brincando como crianças em férias. Acabam na hospedaria e passaram a noite juntos.



(Conto inédito, 2004)
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