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Contos-->AGUA RASA NO RIACHO FUNDO (ENTRE SUPER-HERÓIS NEOLIBERAIS) -- 10/12/2000 - 23:22 (VIRGILIO DE ANDRADE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Alguns longos dias se passaram sem que o lobo desse o ar de sua graça. O peixe desistiu esperar; fez planos para retornar à cidade do bicho-homem. Estava faminto. Passava a maior parte do seu tempo se escondendo. Já não tinha a menor disposição para procurar alimentos.
Mas naquele dia tranqüilo; não percebeu a presença de visitantes indesejados. Cruzou a correnteza, e sentiu o corpo dolorido pelo esforço da travessia. A areia do remanso estava quente. O fecho de raios solares que vazavam as copas das árvores era convidativo para um banho de sol. Deitou na areia e fechou os olhos. Ficou escutando o canto dos pássaros; dos pássaros que saltitavam de galho em galho.

O uivado de lobo feroz quebrou a alegria da tarde sonolenta; Afugentou pássaros e acordou quem repousava no leito de cascalho. Preguiçosamente, o peixe começou a se libertar da realidade dos sonhos.

“Será o Guará!”, indagou-se. E quando abriu os olhos; assustou-se com uma boca enorme a bafejar na sua cara.

- Pensei que estava morto, Pirá! Pensei que o amigo já tivesse partido dessa para uma melhor!
- Que nada, Guará!, estava pensando...
- Tudo bem... Já entendi; não precisa explicar!
- Que bons ventos o trazem a este fim de mundo?
- Tenho mil novidades, seu bobo.
- Boas ou más? - quis saber o outro, desconfiado.
- Boas...Primeiro as boas. Fiquei sabendo que o bicho-homem-presidente construiu um riacho na casa dele. Tem até cascatas.
- Isto é verdade? É verdade, Guará?
- Claro que é verdade! Tanto é verdade, que estou matutando um jeito de te levar para lá. Já imaginou; você vai viver num riacho de primeiro mundo!
- Deixa de ser mentiroso, Guará! Pra quê o bicho-homem vai construir riacho... Não é ele que destrói os poucos que restam por aí? Se gostasse de água limpa; não jogava esta sujeira aqui, ó! - apontou para um saco de lixo que boiava nas águas do riacho.
- Que nada, Pirá. Pode acreditar! Deu até na Manchete!
- Manchete! Que manchete?! Já está inventando mais uma anedota?
- Na cidade do bicho-homem é assim, Pirá! Se aconteceu, virou Manchete. E se virou Manchete: é porque aconteceu!
- Sei não... Isto está me parecendo aquela tal de “marchendaize”...
- Você está ficando esperto, Pirá. Está me saindo um bom aluno!
- Posso ser analfabeto, mas burro eu não sou não! Sei muito bem, que, primeiro, o bicho-homem oferece uma comidinha... Depois, é a gente que vira comidinha dele.
- É, amigo... talvez você tenha razão! O filhote do bicho-homem também anda revoltado... Está gritando por um tal ‘impeachment’!
- Está vendo!, coisa boa é que não poderia ser. Também com esse nome tão feio; só pode ser mais uma sujeira do papai bicho-homem!
- Deixa pra lá, Pirá! Com “impeachment” ou sem “impeachment”; tenho que tirar você daqui e acabar, de uma vez por todas, com seus problemas...
- Que problemas? - indagou o outro, desconfiado.
- Ora que problemas, meu amigo... O bicho-homem está fincando morada nestas redondezas!

Falando assim, o lobo se afastou sorumbático. O peixe compreendeu o motivo da sua preocupação. E também ficou cabisbaixo; medindo as conseqüências da invasão do bicho-homem. Por fim, conclui que tudo aquilo era um sinal dos fins dos tempos.

De todos os habitantes da zona úmida do Riacho Fundo, o peixe é quem possuía postura mais vistosa. Corpo esbelto, nadadeiras ágeis, e escamas pardacentas que lhe proporciona um reluzir vistoso quando varava as águas em nado veloz. Na cara, naquela sua cara de peixe fresco, a boca sorridente muito lembrava a bocarra de cachorro. Por isso mesmo, sua feição não permitiu que alguém percebesse uma ruga de tristeza.
Mas elas estavam presentes. Para um bom observador, algo de anormal estava ocorrendo com aquele animal de sangue frio e coração quente. Se seu semblante não transparecia que estava contrafeito; mas por dentro, ele estava preste a explodir. Explodir de indignação.

Correu ao encalço do lobo; agarrou-o pela cauda, e gritou:

- Isso é verdade? É verdade mesmo?
- Claro que é, Pirá! Esta é a parte ruim das notícias. - respondeu o outro, procurando não se deixar intimidar.
- Quer dizer que o bicho-homem vai morar aqui?
- Claro! Eu só não sei quando.
- Como não sabe? - esbravejou.
- Prometo-lhe que vou descobrir, Pira... Mas no momento, preciso levar meu esqueleto pra casa.
- Já sei, já sei! Você precisa levar o esqueleto pra casa porque está como medo da dona loba te amassar com o rolo de macarrão... Além de tudo, saco vazio não pára em pé, e sua barriga está vazia.
- Sabe que ia me esquecendo desta parte, Pirá! Mas pode ficar tranqüilo, amigo. Quando voltar, saberei da verdade e trarei a solução!
- Não me venhas com soluções mirabolantes!
- Que nada amigo, dessa vez vai ser tiro e queda! Espero te levar lá pras bandas do Rio Amazonas.
- Ah, é mesmo? - indagou o outro, ainda mais incrédulo. - Não foi você quem me disse que o bicho-homem estava destruindo as florestas? Que andava atiçando fogo nas matas?
- Eu disse isso... Quando, quando eu disse isso?
- Já se esqueceu? E aquela lorota que você me contou: estão destruindo o pulmão do mundo; sem a selva amazônica o buraco da camada de ozônio vai aumentar de tamanho; a terra vai virar uma bola de fogo.
- Desculpe-me, amigo. Acho que você está desmerecendo a inteligência do bicho-homem.
- Desmerecendo! Eu? Você está se referindo ao bicho-homem-americano?
- Americano!! Que americano?
- Aquele que comprou a floresta amazônica! Você me disse que ele protegeria mundo...
- Eu falei isso? - interveio o lobo, com dúvidas da autoria daquelas afirmações.
- Claro! Você disse que ele iria proibir a exportação de madeira para o primeiro mundo. Não está lembrado?
- Isso é verdade! Agora me lembro.
- Se lembra? Então me responda porque o dito cujo destruiu as florestas do país dele?
- Ora, nobre colega! - aparteou o lobo, político. - A democracia está acima dos interesses mesquinhos das minorias. Não podemos retroceder ante a burocracia dos povos subdesenvolvidos... O mundo caminha a passos largos para a globalização... e somente com ela, o futuro estará garantido em nossas mãos.
- Gostei do discurso... Mas me responda: nas mãos de quem?
- Não... Não se faça de besta, Pirá! - interpôs-se, ainda mais eloqüente. - Isso não seria ético! E a ética, é o pilar do pensamento neoliberal!
- O bicho-homem-neoliberal também pensa? - quis saber, já prevendo a chegada de um novo carrasco.
- Claro!, Pira. O pensamento neoliberal prima pela liberdade de direitos. Momento este, em que ocorrerá o equilíbrio natural entre os que nada tem e os que de nada precisam!
- Ah!, Então é a isso ao que chamam de igualdade: igualar os de baixo por baixo e os de cima por cima? Bela ética!
- Nobre colega, não se iluda com intrigas da oposição... Não se deixe levar pelos discursos dos reacionários! Somente com a quebra do monopólio estatal... o bolo será fatiado em partes iguais! Haverá uma nova ordem econômica, e ocorrerá uma melhor distribuição de renda! - ofegante, o lobo concluiu mais um longo e belo discurso.

Desta feita, o peixe avaliou que aquele discurso fora por demais fantasioso. Pareceu-lhe uma cópia má feita dos discursos que o bicho-homem-deputado fazia nos palanques na época das eleições.

- Sei não! Sempre ouvi dizer que quem tem a colher maior come mais. E a minha, é bem pequenininha! - defendeu-se.
- Ora! O nobre colega não está afeito aos novos caminhos da política mundial. Somos uma aldeia global, precisamos do capital externo! Com ele, vamos gerar mais trabalho, mais riquezas e mais comida!
- Eu só queria saber quem vai ser convidado para o banquete. Porque as sobras; sempre fica com a gente!
O peixe não se deu por convencido.

E foi com essa controvérsia que aquele encontro finalmente chegou ao seu fim. O sol já despontava no horizonte.
Mas quem pode negar que da próxima vez não pudessem chegar a um consenso. Se for possível, é claro. Quando imagino os milhares de interesses que estão em jogo, creio que será mais provável que tudo acabe em pizzas.

Como nada mais havia a dizer; despediram-se. Trocaram um forte abraço. E peixe desejou uma boa viagem e breve regresso.

- Piráá! - gritou o lobo, já do outro lado do riacho. - Prepare as tralhas companheiro; da próxima vez, trarei uma solução para tirar você daqui.
- Adeus, amigo... E cuide-se bem! Cuidado para não virar troféu na sala do bicho-homem! - e sorriu; do jeito desengonçado do lobo andar.

O peixe aproveitou-se do último aceno para fazer mais um gracejo com o velho amigo. Depois, certo de que mais uma vez ficaria sozinho; ficou com as feições abatida (com cara de peixe congelado).
Seus olhos marejados não registram o momento em que o vulto do lobo foi engolido pelo verde da mata. E ele entendeu ser melhor que assim fosse.
Para disfarçar a tristeza e o vazio que se aproximava, como se fosse uma pedra, mergulhou no riacho. Foi parar lá no fundo; feito uma pedra.
Creio que era uma pedra.
O pedra se cortou numa lata de sardinha (invencionice do bicho-homem). Quando se refez do acidente teve que fazer um esforço titânico para voltar à tona. Agarrou-se nos pedregulhos da cachoeira, e ficou descansando.

Após desfrutar do longo e reparador descanso, pegou a imaginar como seria a cidade da qual o amigo lobo tanto lhe falava. Dos seus palácios, das ruas cobertas por lama preta, das máquinas que faziam fumaça fedida, e das luzes.
Luzes! Elas eram o que mais lhe impressionava naquelas histórias.
O lobo lhe contara que na cidade não ocorria noite. Por lá, só havia dia. Era um montão de soizinhos pendurados nas ruas e casas, a clarear e clarear. Tudo lá era lindo, tão lindo! Quando se olhava de longe parecia que um pedaço do céu tinha caído sobre a terra. Tamanho era o brilho das suas luzes noturnas.

“O Guará é um mentiroso!, pensou ele. Pra que o bicho-homem vai fazer sóis e estrelas se no céu tem um montão?! Sabe de uma coisa, vou esquecer as mentiras do lobo e cuidar da minha vidinha. Afinal, o bicho-homem já está ficando estacas na redondeza!, ponderou, lembrando-se do aviso do lobo.”

- Aqui não é o tal de Riacho Fundo? - gritou um filhote de bicho-homem.
- É aqui mesmo! - respondeu um meninote.
- E é rasinho assim? - atalhou um molecote.
- É, claro que é. Eu só não sei porque tem esse nome... A água não cobre nem os joelhos!
- Deixa pra lá; vamos brincar! - disse o primeiro. - Vamos escolher as armas! - complementou.

E voltaram a fazer a maior algazarra. Alguns, mais afoitos, pularam dentro do riacho. Outros menos interessados na brincadeira fria e molhada, sacaram das geringonças que carregavam na cintura, e gritaram:

- Eu sou Jaspion!
- Eu sou Changermam! - informou um outro.
- Nós somos os Cavaleiros do Zodíaco!!! - gritou uma trinca, em coro.
- Quem vai ser o Monstro Interplanetário? - perguntou o tal Changermam.

Um outro herói insistiu:
- Quem vai ser o Monstro Metálico? Minha espada laser está pronta para degolá-lo!

Ninguém respondeu, ninguém quis ser o monstro.
Com a falta de pretendentes, alguém fez uma proposta: - “vamos correr até aquela árvore... Quem chegar por último; vai ser o monstro!”.

O peixe não soube precisar quem fez aquela proposta indecorosa. Se o Jaspion, o Changermam, ou os Cavaleiros do Zodíaco. Mas, com toda certeza, ela obteve aprovação de todos. Mal foi dado o sinal da largada, todos correram de encontro à árvore escolhida. Foi a maior algazarra.
A balbúrdia continuou, por toda tarde. O monstro interplanetário permaneceu destruindo árvores como se fossem cidades imaginárias. E, como todo bom vilão, sempre era derrotada na batalha final. Os super-heróis não se devam por satisfeitos. Desejavam mais ação e realismo. Planejaram encontrar um oponente. Um oponente que, verdadeiramente, pudesse ser alvejado e abatido por suas armas letais.

“Será que o bicho-homem não sabe inventar brinquedos educativos? É só espadas, canhões, facas e revólveres?! É... o bicho-homem gosta mesmo é de destruir... até os filhotes já nascem pensando assim!”, concluiu o peixe, incerto quanto ao seu próprio futuro.

Em meio àquelas preocupações e incertezas, uma recordação tomou conta de seus pensamentos. Era uma velha história que o lobo certa vez lhe contara. Desde aquele dia ela não saíra da sua cabeça. A história era tão descabida que não conseguia obter um sentido lógico.

“Não tem sentido, essa história não faz o menor sentido... Para quê dona Onça vai proteger esses pestinhas? Eles não precisam de proteção. Sou eu quem precisa!,” grunhiu entre os dentes, temeroso do filhote do bicho-homem localizar seu esconderijo.

A partir de então, ficou tão encolhido no seu canto que caiu em sono profundo. Logo estava sonhando. No sonho, o lobo era seu professor e estava gritando com ele: não é “ONÇAS”! É “ONG’s!” “ONG’S; seu estúpido!”
Despertou assustado, com o grito do amigo dentro da cabeça. Olhou para os lados e não viu ninguém. Pensou: - até em sonhos, o Guará consegue azucrinar minha cabeça... Eu não tenho culpa se o bicho-homem não sabe dizer “ONÇAS”; e vive engasgado com essa tal “ONG’s”. Esta história eu não engulo, não engulo! Quando encontrar dona onça; vou tirar essa história a limpo. Vou sim, pode ter certeza que vou!”.


- NA PRÓXIMA SEMANA - CAPÍTULO III -
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