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Contos-->Um Santo Milagre -- 29/09/2004 - 11:37 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UM SANTO MILAGRE

Só quem fosse doido, ainda que não andasse enroscado nos pios intestinos das irmandades e das confrarias, arriscaria que lhe faltasse um daqueles pãezinhos redondos e cupulados que se dizia serem de Santo Antônio, mantido, o ano inteiro, atabafado no conteúdo da lata de farinha. E não dava para ser diferente, visto que era ele a fiança de fartura em qualquer cozinha, pelo menos a se dar fé no dito e no redito por tudo o que era de gente, além do que proclamado do alto do púlpito, nas noites da trezena de louvação ao taumaturgo lisboeta (ou talvez se deva dizer padovano, ou ainda as duas coisas juntas, para evitar confusão).
Por isso mesmo que Doriana, embora travada pelos mocotós inchados de fazer dó, nem por isso deixou de se arrastar rua abaixo, naquela manhã abafada de 13 de junho, nem de dar plantão, cozida pelo sol a pino, entalada numa fila suarenta e malcheirosa que teimava em não sair do lugar.
Agora um empurra-empurra, depois um bate-boca, mais tarde um desfalecimento de alguma buchuda... E ela resignada, como era do seu feitio, catando as contas do rosário com os dedos esquálidos que se estiravam das mãos crostosas, ritual que só desseguia de quando em vez, enquanto enxugava a testa empapada no rabo da saia.
Bem que aquela provação poderia ter ficado a cargo do seu marido Clemente, até porque menos entrado no rigor dos anos e descomprometido com os quefazeres da casa, menos ainda com os carregos das trouxas de roupa e com os lavados na Bica da Pedra, que eram a única valia para o sustento da família inteira.
Acontece que o dito cujo, desde os remotos dias em que se amancebaram e montaram casa no Beco da Goiaba, vivia moído por um misterioso quebranto que lhe roia os ossos e lhe esmurrava os músculos, afugentando o ânimo de fazer o que quer que fosse, a não ser se escornar na rede imunda que estendia no fundo do quintal ou peruar o jogo de gamão que era de preceito nos arquejos das tardes e que se esticava modorrento por bom pedaço das noites. Daí por que, como de costume, nem tivera o topete de lhe pedir que a rendesse naquela missão salvadora, certa de que fazê-lo seria no mínimo um ato indisposto com a caridade cristã, visto que o mal que o atormentava, pelo que sabia de olhos vistos, era bem maior do que aquele que a torturava, embora vez por outra se tomasse entrevada, a ponto de nem poder por os pés fora da cama-de-vento.
Já por volta das três da tarde, depois de já terem passado as primeiras parelhas de anjos que precederiam o andor, todos com suas asas de faz-de-conta grudadas nas costas e encimados por estrelas brilhosas que se pregavam nas hastes que lhes subiam dos diademas de arame dourado, foi que pode ela, enfim, por as mãos no saco de papel em que se guardavam três ou quatro cortes de fazenda barata, enquanto escondia no meio dos peitos o redentor pãozinho de Santo Antônio. E só então foi que tomou o caminho de volta, com a alma lavada pela graça alcançada, a muito custo escalando o ladeirame que não tinha fim.
Mas quando menos esperou, ali nas alturas de onde fora a Roda dos Enjeitados, lá veio Raimundo Doido, arrancou-lhe o saco das mãos e deu-lhe um safanão que a fez despencar com todo corpo na calçada de pedra portuguesa. E foi tudo assim tão inesperado, tão depredador, que mal teve ela tempo de ver o pãozinho de Santo Antônio rolar desgovernado, atirar-se na sarjeta e mergulhar na imundície.
Dizer que não ensaiou um choro de dor ou de desespero, enquanto enxugava o sangue que lhe escorria da fronte e pesquisava os cotovelos rasgados e os joelhos em carne viva, seria no mínimo indispor-se com a verdade real. Mesmo assim, porém, levantou-se como se erguesse mil quilos, cambeteou pelo resto do caminho e destampou casa a dentro com a miserável aparência de quem por pouco escapara de uma briga de foice.
E foi aí que se deu a nova surpresa de Doriana, pois que Clemente, sem nem ao menos se dar conta do seu estado, só cuidou de reclamar da hora e do desastre de ter ela chegado sem as prendas abençoadas.
Doriana engulhou, tomou fôlego, deslembrou da benevolência do santo casamenteiro, botou de lado a sua própria história de tolerância e de uma vez por todas, sem dó nem piedade, vomitou Clemente no olho da rua.
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