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Cronicas-->11 de setembro: Como um herói rumo à Vitória -- 15/09/2003 - 23:31 (Lindolpho Cademartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Como um herói rumo à Vitória



Por Lindolpho Cademartori





" Crónica do mais importante acontecimento de 11 de setembro de 2003, por um cidadão comum e muito, mas muito debochado.E também sensível."







As regras da boa redação diriam que a maneira correta de se iniciar este texto seria "eu conheci Vitória", mas a verdade é que eu não conheci Vitória, e nem poderia tê-lo feito. A idéia só me passou pela cabeça após a constatação ex post facto do ridículo que protagonizei. Constatações, produto final das línguas afiadas, devem ser comedidas. E eu não sou uma pessoa ponderada, embora viva me aventurando a tecer constatações. No mais das vezes elas são involuntárias, como ocorreu com Vitória. O meu jogo contra-factual solitário é uma eterna inequação fraudulenta: eu sempre triunfo, não importa em quantas repescagens conscienciosas eu tenha que incorrer. Minha benevolência comigo mesmo é infinita.

O prelúdio é previsível: eu estava sentado em um dos bancos no pátio da Faculdade de Direito, lendo um dos artigos que Alexander Hamilton escreveu para O Federalista, e especulando sobre como um dos "Pais da Pátria" poderia, em 1787, verificar os vícios e problemas insolúveis advindos de uma dissolução dos Estados Unidos da América. Foi quando levantou os ares e desencaminhou-me dos Estados Unidos do século XVIII uma mulher, não mais de vinte e um anos, porte altivo e distinção reta, feições impassíveis, a desfilar diante dos meus olhos. Em nada pensei - pus o livro de lado e me levantei para contemplá-la, como quem assiste a um desfile de tropas que se afastam com o o acelerar das notas da trombeta. Segui-a até a entrada da Faculdade, sempre incrédulo face à sua beleza benfazeja, e, pacientemente, assisti-a efetuar uma operação bancária em um dos terminais eletrónicos disponíveis no pátio interno. Minha Ulrica - não pensei em chamá-la de nome algum, mas, se tivesse que fazê-lo, por certo prestaria uma homenagem ao grande Jorge Luís Borges, o poeta que odiava versos - trajava jeans padrão, uma blusa cuja tonalidade não me recordo, e, se não me furta à memória, sandalhas. O rosto simétrico, os traços que suavemente mesclavam as curvas da dedicação e o retilíneo da sobriedade, bem como os longos cabelos castanhos, denunciavam um semblante càndido - ou eu assim especulei. De toda sorte, tais pensamentos não me vieram à mente enquanto a observava - foram os três minutos e meio mais absortos de toda a minha vida. Eu era a própria indiferença.

Embasbacado com sua beleza, julguei por bem abordá-la à saída da Faculdade de Direito, enquanto ela se dirigia para o estacionamento, para a Faculdade de Farmácia ou para a de Odontologia. Não trabalhei argumentos ou ensaiei "assaltos": tão-logo a alcancei, apontei-lhe e disse "Você, venha cá.", ao que fui prontamente atendido. Assim que ela se aproximou, indaguei:

- Qual o seu nome?

- Por que? - disse ela, após hesitar e demonstrar uma inconfundível desconfiança. Olhou-me apreensiva, daquelas apreensões momentàneas que naturalmente ocorrem quando se é abordado por alguém que lhe é tão familiar quanto um cidadão austríaco ou congolês.

- Por nada. - repliquei, de súbito, dando a resposta que primeiro me iluminou. E não havia, de fato, dissimulação alguma: queria saber o seu nome simplesmente por saber, como há anos desejei saber o nome de um famoso general prussiano que havia derrotado Napoleão em Waterloo. Tratava-se de uma curiosidade que se bastava em si mesma.

Mantendo o olhar apreensivo, minha interlocutora, entonando uma voz de desabafo e nervosismo, disse:

- Vitória. -, e tornou a perguntar: - Por que?

Desta feita, eu não poderia lhe dar a mesma resposta, e, como às vezes se dá com os corações indecisos, fui içar a sinceridade no fundo do poço da vergonha.

- Porque você é a mulher mais linda que eu já vi em toda a minha vida.

Eis o ponto de ruptura: eu poderia ter falado sobre uma série de coisas, sobre as sete bem conhecidas e cafonas cores do arco-íris, sobre as flores, vincular a beleza de Vitória a um poema de Goethe, ou sobre a Batalha de Sedan: eu apenas não poderia ter dito o que de fato pensava. Ainda que tenha passado por uma cantada medíocre, tratava-se de uma constatação: o fato de Vitória ser a mulher mais bela que já vi em toda a minha vida é tão certo quanto o fato de que os canhões de sítio da Krupp eram as mais potentes armas de artilharia alemã na Primeira Guerra Mundial. Em se tratando de emoções, eu era indiferente: havia me certificado de algo, e, vez que o objeto da constatação era um indivíduo, julguei por bem comunicar-lhe. Mas um ato de sinceridade desprovido de intenções é invariavelmente fadado a arrependidas reflexões retrospectivas. O depois encerra por gerar um sentimento falso, uma expectativa fora do tempo, uma possibilidade que a inação suprimiu. E o que mais dói é, mutatis mutandis, não doer.

Vitória foi embora após estéreis vinte segundos de diálogo, e eu retomei a leitura do artigo de Hamilton. Instantes depois, tornei a fechar o livro e me entreguei às reflexões mentais inúteis que culminaram nesta crónica. O que me aborrece não é o fato de não ter conhecido Vitória, mas de não ter me dado conta de que não iria conhecê-la e ter entrado inadvertidamente em uma aventura-relàmpago de flertes involuntários. Que sua beleza é inigualável, trata-se de ponto pacífico; o que me aturde é continuar a construir fantasias hipotéticas sobre cinco míseros minutos no céu sem dono. Assim que o acontecimento passou, retornei à razão e aos sentidos, tendo, na travessia, contrabandeado memórias indevidas. Foi o que sobrou do céu.

Finda a história, eis as usuais idiossincrasias. Há alguns dias, em conversa com uma ex-namorada, Thaís me disse que sou um homem sensível. Obviamente, tudo o que pude fazer foi rir esculhambadamente. É mais provável dizerem que sou socialista do que me tacharem de sensível. Se a mim coubesse definir a mim mesmo, diria que sou um homem cínico, mas, já que Thaís diz, irei proclamar, em todos os cantos, a minha alegada sensibilidade. Mesmo assim, as coisas não poderiam ser perfeitas: a minha suposta sensibilidade é involuntária, circunstancial e não raro confundida. Mas eu ainda posso procurar extrair alguns dividendos conjugais dela: far-me-ei de sensível, falarei das flores, pegarei uma bobagem pseudo-poética qualquer na Internet e direi que é de Shakespeare e tecerei metáforas pobres para um amor descartável. Ainda assim, teria razões para duvidas dos benefícios do sentimentalismo: creio que, se fizesse as vezes de homem sensível consciente, seria como um terapeuta que não cobra por suas consultas: inflaria o ego alheio e perderia o meu próprio tempo, sem ganhar nada em troca. Não que este vos escreve tenha o afeto na conta de moeda: ao contrário, a promiscuidade emocional não exerce nenhum fascínio sobre mim.

Descobri, há sete segundos, que só me prestei a escrever um texto sobre Vitória pela exata razão de que não a conheço. Caso eu a conhecesse, jamais escreveria a respeito dela: onde estariam as especulações, as manipulações passionais, as reflexões inúteis sobre joguinhos contra-factuais e "E se...?" de todos os tipos? O gozo de cada um reside em sua própria capacidade de deturpação. E tudo isso ocorreu na manhã de 11 de setembro de 2003, após ter encontrado uma amiga cujos seios estão maiores do que a Bélgica, por causa de um implante de 250 mililitros de silicone, e antes de chegar em casa e descobrir que um ex-colega de escola engravidou uma garota argentina, quando estava em férias no Rio Grande do Sul. Na noite anterior, eu havia ouvido a Nona de Beethoven, e, coincidência (mal-feita) ou não, escutei repetidas vezes uma parte do 4º movimento, na qual se canta o trajeto de um herói rumo à Vitória.

Aliás, hoje não se comemora o segundo aniversário da queda das torres gêmeas?





Lindolpho Cademartori


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