A primeira dor
maria da graça almeida
Agora, morto...
Sentada no degrau da varanda, sob o céu azul de
sempre, que de repente embranquecera, tive a real noção do meu tamanho.
Era eu diminuta, no mundão de meu Deus...
Não entendia as folhas balançando com preguiça,
nem conseguia compreender o que meu peito tentava
explicar-me.
Perplexa, sentia uma dor que desconfiava não ser
a do corpo.
Era a primeira vez que convivia com aquela sensação
esquisita.
Olhava minhas mãos, meus braços, não via sinal
nenhum.Feridas visíveis eu não tinha e
ainda assim experimentava uma ardência que,
dentro de mim, confundia-se com um vazio
insuportável.
Logo que acordei, surpreendi minha mãe na cozinha.
Seus olhos boiavam.
Olhando o nada, ela confidenciava à ajudante:
- O menino morreu.
Entendi tudo. Falava do meu único amigo.
Menino moreno, olhos profundos e brilhantes entre
enormes cílios negros. Pernas finas, mas de uma
vitalidade ímpar.
Nunca que eu conseguira acompanhar seu ritmo.
Veloz demais, não parava um minuto, subia e descia
da camioneta do pai com uma agilidade admirável.
Era mais velho do que eu. Fizera nove anos, um quase
adulto, na minha concepção, no entanto, tinha-me
enquanto amiga. Era paciente comigo. Reconhecia-me.
Agora, morto...
A bicicleta que o levava de lá para cá,
numa ruidosa alegria, acabou por conduzi-lo
ao céu, tão cedo...
Céu? Eu olhava para cima e apenas via a brancura
sem graça das nuvens esparsas. De seu riso
engraçado, o silêncio.
Tudo por causa de esfoladinho de nada, do qual
tampouco ele reclamara...
Bicicleta desgraçada!
Tapei a boca com a mão para impedir que minha mãe
ouvisse meu pensamento.
Ela, que não se dizia supersticiosa, detestava
o termo, também a palavra azar.
Sempre que alguém os proferia, logo se mostrava
preocupada:
- Não fale assim...não é bom.
Quando o soube doente, quis visitá-lo.
-Não pode! - era minha mãe consternada.
- Por quê?
- As visitas estão proibidas.-explica-me paciente- Ele
está sensível aos ruídos. Qualquer barulho
faz com que sofra de susto e tremores, convulsões. A febre é alta, está com tétano!
Tétano...eu repetia baixinho...soletrava
devagarzinho: té-ta-no... nunca antes ouvira aquela
palavra.
Quisera eu naquela hora emudecer os cães,
aquietar os sussurros do vento, parar a andança
dos carros e toda a movimentação que -com os aus,
os vruns, os buns -aumentasse os ais do amigo.
Ele não podia sofrer. Precisava sarar e logo.
Eu tinha pressa e certa estava de que ele também.
Agora, morto...
A idéia do nunca mais me desalentava.
Sentia-me zonza, fraca.
E eu sempre tão lacrimejante não conseguia rolar
os pingos que lavassem aquele sentimento estranho
e infeliz.
A dor do corpo eu conhecera nas constantes crises
de bronquite. Sem falar dos pontos que levei no
pé, a seco, nada de anestesia. O médico que me
socorreu era legista...fez o que póde...
Naquele dia eu inaugurava, com toda intensidade,
a dor da alma.
Descobria a temperatura do medo. E a cor da aflição. Soube que a impotência do homem não permite que ele conduza nem o próprio destino.
Minhas verdades assumiram o antes e o depois.
Não mais consegui viver sem estar sob a mira da
preocupação.
Precocemente, comecei a perceber os sustos da
sobrevivência.
Naquele dia conheci uma das esfarrapadas desculpas
que a morte, com desenvoltura, costuma usar.
Nos baixos dos meus sete anos, não entendia
por que a vida permitia que morte desse
a palavra final.
Ainda hoje não entendo.
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