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Cronicas-->SEMENTES -- 25/08/2003 - 22:40 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Acho que todos são unànimes de que respiramos hoje numa atmosfera de violência e que por ela nos sentimos gradual e progressivamente sufocados. Pecaria pela adoção de um lugar comum se mencionasse associações com os tempos atuais e fizesse, movido por nostalgia, uma apologia ao passado. A História está aí para nos garantir que a agressão entre humanos e a exploração do homem pelo homem são coisas permanentes, estigmas de uma espécie e o resultado de uma tendência biológica para disputa de espaço, alimento e condições de procriação. É possível que, quantitativamente, nossos primórdios sejam mais marcados pela perversidade e bestialidade. Vide escravidões, guerras, genocídios, torturas medievais, a Inquisição, ditaduras, impérios sangrentos, etc.. Minha geração viveu, porém, um talvez ilusório período de calma no pós-guerra. Pode ser que numa idade em que uma certa indiferença e egoísmo naturais exerciam sobre nós um certo bloqueio, fugissem de nossas atenções os noticiários sobre a Guerra da Coréia, o êxodo do povo judeu, o "aparteid" americano e da África do Sul, e o suplício da população vietnamita mesmo antes da invasão "yankee", entre outros capítulos da História Contemporànea. E então não nos dávamos conta do sangue que jorrava e vivíamos uma era da qual temos saudade. A violência provinciana parecia tão rara que casos de homicídios e de assaltos no Rio de Janeiro eram noticiados com sensacionalismo face à sua raridade. Mas é provável que um sistema de jornalismo mais precário que o atual falhasse na cobertura a fatos que se desenvolviam em época em que as distàncias não eram tão curtas quanto as de hoje. E o crescimento substancial da densidade demográfica nos últimos cinquenta anos é indiscutivelmente um dos maiores fatores a que se deva responsabilizar pelo acréscimo na violência dentro ou fora das grandes cidades. O fato é que, diferentemente do que ocorria em anos anteriores, nosso dia a dia é ocupado, ainda que involuntariamente, em larga faixa, pela assistência a cenas de brutalidade, não só através do noticiário do rádio, TV, jornais e revistas, como dos relatos de pessoas de nossa convivência. Não fosse bastante a realidade, a ficção se ocupa, como numa estranha obsessão, de assuntos ligados àquela área. A mídia deve se justificar com argumentos sobre o aumento da encomenda, ao que nos seria legítimo contrapor com questionamentos acerca de um provável direcionamento oposto nessa cadeia. Não seria maior a demanda? Se há quarenta ou cinquenta anos atrás, uma criança dedicava duas horas semanais frente a uma tela de cinema para ver faroestes ou outros congêneres, hoje podemos lhe dar cinco a seis horas diárias no mínimo, na frente de um televisor, de cenas muitas e muitas vezes superiores em truculência, ódio, carnificinas, etc.. Não podemos nos esquecer que ao lado da violência física, desenvolve-se a dissimulada, ou a mental, a afetiva, a intelectual e aquela contra os preceitos éticos. E ficamos então, em meio a tais ponderações, perdidos e atónitos, absortos numa preocupação direcionada ao que está por vir, receosos de previsões cinzentas. Mas, se viajarmos por séculos de existência, veremos com assombro que a espécie humana resistiu e se manteve, se multiplicou e até progrediu, na contra-corrente de tanta destruição. E, numa análise em que nos permitimos aplicar a relatividade, diríamos até, que não se corrompeu. Houve tantos momentos apocalípticos em nossa história, que nos surpreende de fato a ausência de uma explicação para a persistência da vida na Terra. Graças a que? Por que sobrevivemos a tanto ódio, a tanto fraticídio? Os mais materialistas responderiam sem pestanejar invocando a teoria da seleção natural. Bela e curiosa interpretação. Ainda assim insuficiente a meu ver, frente à extensão das agressões. Assisti noutro dia um documentário sobre a Primeira Guerra, com filmes reais e relatos de sobreviventes. É tão impressionante o retrato daquele suicídio coletivo, que considero legítima a opção daqueles que se abstenham de vê-lo. É incompreensível, naquela e noutras tragédias iguais, a disposição com que seres humanos torturam e matam. Qual seria a química cerebral ou que neuro-hormónios movem essa gente, para que fiquem surdos aos gritos, aos lamentos e às súplicas de seus irmãos? Qual o mistério em que se envolve a capacidade de uma pessoa que não se envergonha diante de sua própria covardia ao, envolto em suas grossas fardas e pesado material de guerra, atacar sem piedade civis desguarnecidos? Como podem cegar-se frente a rostos horrorizados de crianças? Que estranha preferência por sinistra aquarela vermelha pintada sobre corpos dilacerados? De que forma entender, sob a óptica de criaturas com almas, o gesto dos assassinos, dos torturadores, dos estupradores e dos terroristas? Dos que humilham, dos que segregam, dos que destroem, desapontam e deturpam? A ciência pode explicar. Pode haver até espaço para justificativas, mas a indignação tem que persistir. A perplexidade não pode se render à fria análise dos antropólogos sob a égide da sociologia. Tenho entretanto, a mais forte convicção de que no meio de tantos rios de sangue, houve alguém que não levantou a mão. Alguém que não tirou da bainha a espada, que não apertou o gatilho. Houve alguém que deixou vir à tona o vigoroso apelo para que não negasse sua legítima condição humana e não feriu. Alguém que foi forte o bastante para deixar que o rotulassem de fraco, que se permitiu ser chamado de traidor, sabendo no entanto, que foi dos mais leais, pois que fiel à qualidade das criaturas que encerram uma alma dentro do peito. Houve alguém que considerou o leito dos vasos a única via para o córrego de sangue. Que jamais negou ao semelhante todo o direito que recebeu ao nascer, de mover-se, ver, declamar, admirar, escutar, amar e entrosar-se com a terra. De sonhar com a paz, com a alegria, com a igualdade e com os dias de glória. De enternecer-se com o divino mistério que se irradia do rosto das crianças. Houve alguém que se opós à intolerància. Houve alguém que mesmo no mais profundo dos abismos, abdicou de sua irracionalidade e optou pela indulgência. Permitiu-se envolver com a terra, com as matas, o vento e a água e ornamentou-se com as flores e elegeu a alegria ainda que absurda pois que remota. Alguém que reflorestou os campos de batalha, que semeou nas trincheiras, que levou a florescer nas margens dos rios onde barcos armados não navegariam mais. Esse alguém que, não por acaso, marchou no meio de cada batalhão, de cada esquadrilha de bombardeiros, de cada navio de guerra, de cada tropa de bandidos, de cada grupo de baderneiros, de cada bando de corruptos e que, como as sementes que resistiram às chamas, ficaram para reflorescer e resguardar da extinção a dignidade e a hombridade que caracterizam a espécie dos animais que pensam e que constituem sua mais notável peculiaridade e fazer prosseguir com a vida, a curiosa e contraditória vida da espécie humana.
Daniel Carrano Albuquerque
Setembro de 2000
E-mail: notdam@bol.com.br
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