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Contos-->Escarnificação -- 18/02/2000 - 22:16 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Desde ontem que ela não vinha para casa e eu já começava a afundar porque nunca demorava tanto, nem quando ficava aborrecida ou ia para longe. Era quase seis da tarde e lá estava eu querendo morrer, pensando no pior, sem saber o que fazer, quem chamar ou onde procurar.
Andei pela rua, perguntei se alguém tinha visto, dei a volta no quarteirão, entrei em banca de revista, padaria e farmácia e nada, ninguém viu porra nenhuma e meus olhos começavam a arder. Fiquei parado um tempão, no meio da calçada, com a mão na nuca olhando desolado para todos os lados, como se de repente ela fosse aparecer e vir até a mim fazendo de conta que não tinha acontecido nada de mais. Voltei para casa com dor de cabeça, tomei uma aspirina mas sabia que não ia passar enquanto eu não tivesse notícia dela. Nem a televisão conseguia desviar minha atenção: só me forçava a lembrar das vezes que a gente saía para o jardim, e eu a pegava no colo e rodava, rodava até cair de tonto para ficar um olhando na cara do outro, desnorteado, achando graça de uma besteira tão grande mas que era divertida. Peguei a bombinha antes de começar a fungar; cedo ou tarde ia acontecer do ar ficar preso no meu pulmão, pois toda vez que eu me angustiava, tinha crise. Andei para os lados, esperei, esperei. Olhei pela janela, para o relógio, fui no quarto e desliguei a televisão e fiquei a sós com a solidão, quase desesperado sem saber o que estava havendo. Eu nunca cheguei a perder a paciência com ela, era um doce e jamais me magoou de maneira alguma; não tinha motivos para ir embora se tinha tudo o que precisava. Aquilo me fazia pensar no pior(o que fez a crise começar), inevitavelmente.
Sentei no sofá e adormeci, esperando notícias e o que pudesse aparecer. Nem preciso falar que sonhei com ela junto de mim, chegando em casa alegre, direto para meus braços, compreendendo toda a minha preocupação. Daí a
porcaria do telefone tocou e me acordou de um susto; tirei do gancho, coloquei no ouvido e ninguém falou e eu disse alô mas não respondia do outro lado, disse alô de novo e perguntei quem era mas ninguém se manifestava na linha e meu coração disparou enquanto eu procurava a bombinha em algum lugar perto de mim, já sentindo o chiado no peito. Então escutei meio abafada uma voz familiar, familiar até demais falando perdeu a cachorra, seu babaca? Sabe quem está falando? Eu sabia sim, era um dos vizinhos com seu timbre inconfundível. Vem buscar aqui, vem, temos muito o que conversar, vem logo se não vou meter um cabo de vassoura no cu dessa cachorra safada e você nunca mais vai vê-la, venha logo(clic) desligou na minha cara, filho da puta desgraçado, e eu passando mal, tendo uma crise tão forte que nem colocar o telefone de volta no gancho consegui. Foram bem uns quinze minutos sentado e fungando sem se mexer para que eu começasse a melhorar, tentando acalmar os ânimos e pensar direito. Em troca de quê ele tinha feito aquilo, num tinha como ele saber nada, nem amigo meu o cara era, só tinha bebido com a gente umas três vezes, a um bom tempo atrás e nunca mais. Morava quase em frente, uma casa a esquerda e era só atravessar a rua
andando em diagonal que eu chegava lá. Pensei em catar meu quarenta e cinco que nunca tinha usado antes, mas desisti. Faca de cozinha, cano de ferro, chave inglesa, não ia levar nada, ia chegar lá na moral e ver o que o vagabundo queria em troca da minha cachorra. Depois que a dona dela partiu, só tínhamos um ao outro e não era um bunda suja daquele que ia acabar com nossa harmonia e felicidade.
Eu já estava ficando com um ódio tremendo quando sai de casa(desarmado, é claro), mas mantive a calma, deixei a bombinha e não ia ter mais crise aquele dia, tinha tido duas o que era muito difícil, só tinha acontecido umas poucas vezes quando ainda era pirralho. Atravessei a rua na diagonal, faltando quinze para as onze da noite e não havia mais gente por lá porque era bairro residencial e estavam todos recolhidos, dormindo. De longe eu já enxergava a luz da sala dele acesa e passou pela minha cabeça voltar, pegar a quarenta e cinco, meter bala na porta, meter bala na cara dele, pegar a cachorra e fugir mas desse jeito ia dar em merda. A crise estava totalmente sob controle, meu coração batia normalmente e a raiva estava passando rápido, tão rápido que quando pisei na calçada dele não restava mais nada, absolutamente nada. O portão estava escorado, entrei na cara de pau e fui tocar a campainha lá na porta da casa.
Demorou para abrir, fiquei apertando até ele chegar; ouvi as chaves girando do outro lado e a porta abriu o suficiente para que eu passasse. Quando vi, tinha uma doze dois canos mirada na minha cabeça. O cara estava de cueca, todo suado, com os olhos esbugalhados e minha cachorra embaixo de um dos braços, desgraçado filho da puta. Entra, entra e senta na poltrona ali que a gente vai conversar, seu tarado safado, disse para mim com cara de raiva mas estava era se cagando de medo não sei por quê. Fiquei a vontade, ele tinha um casa legal, móveis bons demais para quem morava sozinho, cruzei as pernas e olhei indiferente para ele parado em pé, na minha frente. Vai soltar minha cachorra ou não, que sacanagem é essa? Nunca te fiz mal, eu disse para ele bem calmo, esperando que baixasse aqueles canos mas baixou porra nenhuma e gritou, Tarado safado, tarado safado, você é doido. Tá pensando
que eu peguei essa cachorra nojenta de graça, é? Não se faz de besta que eu sei de tudo. Espera um pouco, interrompi o falatório dele, que conversa é essa, você me traz aqui, me ameaça com um canhão desses e ainda por
cima fica falando coisa sem sentido, isso é alguma palhaçada? Se me chamar de tarado de novo eu te processo, seu bosta, daí ele chegou mais perto e balançou a doze na minha cara, dizendo processa isso aqui, tarado safado,
processa que eu quero ver. Levantei e mandei soltar a cachorra que aquilo era demais e ele riu da minha cara, demais são as putarias que você fez, seu ordinário. Senta se não eu te mato e depois arrombo com essa cachorra. A barra estava engrossando para meu lado mas eu mantive a esportiva e fiquei numa boa com ele, sentei de novo e perguntei qual era o problema afinal. O infeliz se afastou um pouco, suando sem parar(tinha um ar condicionado na sala, não custava nada ele ter ligado) e começou a falar, o problema é que eu descobri tudo, seu escroto. Está vendo aquela peça ali no canto, ao lado da luminária? Vai lá e abre a gaveta, devagar se não leva tiro. Fui lá, abri o negócio e tinha um saco pequeno de veludo de embalagem de perfume e ele mandou eu pegar e sentar de novo na poltrona. Agora abre esse saco e vira na tua mão, disse, e eu fiz. Foi então que caíram na minha mão três dedos dela, um com o nosso anel de noivado, sujos de terra e esfolados, sem as unhas, meio que comidos por vermes e cheios de mordidas e quase que tive outra crise. E agora, ele gritou, e agora caiu a ficha para você, safado? Eu achei tua cachorra ontem por trás do teu jardim fazendo um buraco com isso na boca e entendi tudo. Você deu sumiço na tua noiva, puta merda, deu sumiço nela e todo mundo pensando que tinha sido seqüestro, até dada por morta a pobrezinha foi. Tentamos te consolar, pensando o quanto estava sofrendo e você vai e apronta uma bizarrice dessas. Você é um maluco infeliz, da pior laia que tem, picotou a menina e saiu enterrando ao redor da casa. No final das contas, a cachorra que era dela acabou te denunciando, não é mesmo? Essa cachorra aqui, e balançou a cachorra no ar com uma mão só e ela finalmente soltou um latido de choro, morta de medo. Fiquei calado, imóvel, olhando para os olhos dele, vendo-o suar. E agora, o que você vai fazer? E agora? Eu disse, chama a polícia, então. Polícia porra nenhuma, num vai ter polícia na jogada não, você sabia muito bem que eu era doido por ela e que quem devia ser o noivo dela era eu, mas tudo bem, fiquei só com aquele amorzinho platônico para não atrapalhar as suas vidas e você vai e mata a garota. Não era justo, se num gostava dela para que matou, seu escroto? Matou por quê? Você vai comigo agora até tua casa desenterrar os restos dela. Daí eu estranhei, não ia desenterrar ninguém e falei para ele, o doido é você que quer desenterrar, e ele deu a porra e meteu uma cacetada na cabeça da cachorra que gritou e começou a pingar sangue, puta que pariu. Pára, pára, não faz isso, cara, eu pedi quase implorando, eu não enterrei tudo, só enterrei as mãos e pés dela e ele perguntou o que você fez com o resto então? Deu para a cachorra, foi? Não, eu disse, eu ia guardar na dispensa mas começou a feder e levei para o aterro sanitário, coloquei no lixo que ia ser incinerado. O cara explodiu de raiva, fez umas caretas medonhas e começou a chorar, grunir, fazer barulhos guturais horrorosos e se retorcer, com a doze na mão e minha cachorra sangrando na outra. Gritou, seu tarado, seu tarado, então eu vou te matar é agora mesmo, por que você queimou o corpo dela, desgraçado, por que, e mirou em mim. Foi só o tempo de, Deus sabe como, eu agarrar um vaso de flores que tinha ao meu alcance, em cima da mesa de centro, e jogar na cara dele, que disparou no teto, caindo poeira e fazendo um barulho dos infernos, mas sem soltar a cachorra, muito menos a arma. Voei para cima dele, caímos juntos no chão, nós três, e ele meteu o cabo da doze na minha boca e cuspi uns três dentes mas nem liguei, esmurrei a cara dele com ódio, um ódio animal, agarrei suas orelhas e fiquei batendo a nuca no chão até crescer sangue por baixo. A cachorra, coitadinha, estava machucada por causa daquele desgraçado e mal se mexia de dor. Gritei tarado safado é você, é você, tomei a arma dele, que já estava se estrebuchando para morrer de porrada. Quando sai de cima para tirar a cachorra da mão dele, ele começou a apertar com força o pescoço dela e ela engasgou sangue e soluçava. Eu disse, pára, pára, pelo amor de Deus, catei a doze, meti no meio do braço dele e disparei com o cano colado, quase fraturo meu ombro com o coice mas também despedacei com tudo e ele chiou feio. Como estava com a língua para fora, a gengiva escancarada, coloquei o cano do canhão olhando para o céu da boca e disparei de novo, cheio de ódio. A tampa da cabeça do desgraçado voou longe, melou tudo que tinha para melar e a sala ficou fedendo a pólvora e sangue. Puta que pariu. Quando fui pegar a minha cachorra ela estava praticamente morta, com um rombo na cabeça da cacetada que ele tinha dado, aquele desgraçado. Meu peito começava a pesar e eu dei uma mijada na cara estourada dele, só de raiva.
Sai para a rua com a doze, a vizinhança toda para fora, de pijama, horrorizada. A minha cachorra morreu antes de pisarmos direito na calçada e comecei a me sentir mal de novo só de lembrar que tinha deixado a bombinha em casa. Minha boca latejava e sangrava e eu respirava com muita dificuldade, quase sem notar que estava choroso. Tirei o dedo dela com o anel do bolso e pensei, como eu te amava, puta que pariu. Como eu te amava. Com o corpinho sem vida numa mão e o canhão na outra, comecei a dar voltas pelo quarteirão sem parar, até cansar.
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