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Contos-->A SIMULAÇÃO I (Uma história de Brasíia ainda não escrita -- 31/07/2004 - 23:09 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A SIMULAÇÃO (*)


Vim efetivamente a tomar conhecimento de Machado de Assis e de sua obra somente em 1959, quando comemorávamos, eu, 20 anos de idade, e a Literatura Brasileira, os 50 anos da morte desse escritor. Foi um acontecimento importante, porque até então toda a obra machadiana tinha dono. Um péssimo dono, aliás, sem o menor interesse na divulgação de seu patrimônio, pois não havia reedição dos livros, impressos na grafia antiga, e de há muito esgotados. Com o cinqüentenário, caiu no domínio público. Foi uma euforia geral! Todo editor queria lançar título do escritor. Raimundo Magalhães Júnior, de saudosa memória, teve o grande mérito de rever episódios de sua biografia, alterando conceitos e preconceitos em voga, tidos como verdadeiros. Em suas pesquisas nos jornais da época de Machado, conseguiu localizar centenas de contos e outras histórias inéditas (publicadas apenas na imprensa e em sua maioria sob pseudônimo) e os reuniu em livro, adicionando vários volumes à extensa bibliografia do mestre. Tive o prazer de ler todos, com sofreguidão. Aliás, naquele tempo, consegui ler tudo o que Machado de Assis havia escrito, incluindo prosa, teatro e verso. Sem dúvida, o maior escritor em língua portuguesa!

Num dos volumes de sua produção literária, há uma espécie de ensaio em prosa, chamado QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS, escrito em 1861, onde o escritor, com riqueza de detalhes, advoga a tese da preferência que as mulheres teriam para os homens idiotas, tolos, néscios, simplórios, ingênuos, tontos, ou outro nome que se lhes queira atribuir. Tolo, não no sentido de mentecapto, débil mental, mas no de apalermado, bobo alegre, bonachão. O tolo de que se trata está sempre rindo, alegre, nunca se zanga, não tem ressentimentos, é atencioso, compassivo, prestativo; é o exemplo do homem caridoso paulino (1). A conclusão de Machado é que “os tolos triunfam, e os homens de espírito falham, resultado importante e deplorável, nesta matéria sobretudo” (mulheres!)

Durante muitos anos, observando as pessoas à minha volta, e foram muitas, notei que o velho Machado quase sempre tinha razão. Vi que as mulheres efetivamente não gostam de homens inteligentes (são uns chatos!), cujos dotes intelectuais prejudicam o relacionamento. Chego a arriscar uma provável causa: os homens inteligentes, vivos, muito ativos, com a cabeça cheia de problemas para resolver, geralmente têm fraco desempenho sexual. Isto não é regra, mas os psicólogos e analistas costumam sugerir atividades ao ar livre, exercícios físicos, esportes, passeios pelo campo etc. para aumentar aquele desempenho. Já os homens de cuca fresca, como normalmente são os tolos, devem ter excelente atuação na hora precisa.

A recíproca também é verdadeira: os homens não gostam de mulheres muito inteligentes. Dizem as feministas que é porque não as conseguem dominar. Mas não quero aprofundar-me nesse assunto, até porque não tenho competência para tal e não quero polemizar.

***

Minha história se passa na Brasília dos anos 70, mais precisamente no período de governo do chamado “presidente-gente-como-a-gente”(2), aquele que escalava Dadá Maravilha na seleção brasileira e a quem se deve, em grande parte, a consolidação de Brasília como Capital da República, que esteve a ponto de retornar ao Rio de Janeiro por força das pressões de lá advindas. Foi ele quem determinou a transferência dos principais órgãos do governo que teimavam em ficar naquela cidade.

Na década de 70, com essas transferências, a cidade tomou impulso importante, que não se pôde mais refrear, nem reverter, consolidando-a. A despeito disso, ainda remanescem naquela antiga Capital alguns órgãos que, inexplicavelmente, resistem à mudança. Registro aqui um dado oficial, divulgado pela mídia, para encerrar essa digressão bairrista: o número de funcionários públicos federais ainda residentes e lotados no Rio de Janeiro é cerca de 10 vezes superior ao de Brasília. É de estarrecer-se, mas é verdade!

Horácio era funcionário de órgão que acabara de ser transferido para cá (3). Não era exemplar típico do tolo machadiano, mas tinha quase todos os ingredientes. Pode-se dizer que tangenciava com desenvoltura aquele modelo. Não era também bonito, mas em compensação apresentava-se impecavelmente bem vestido, tal qual perfeito almofadinha. Dava a impressão de que sempre tinha acabado de sair do banho. De estatura mediana, com tipo físico semi-atlético, portava um indefectível e eterno sorriso nos lábios. Andava sempre rodeado de mulheres, de diversas idades, raças e tipos de beleza. Tanto as belas, quanto as feias comungavam de sua amizade igualmente.

Horácio era daquelas pessoas a quem o piadista militante gosta de ter como platéia, pois ria à toa, valorizando o autor da pilhéria ou o contador da anedota. Tinha conversa fácil sobre qualquer assunto, desde que não fosse do tipo “papo cabeça”. Só frivolidades. Nada sério ou profundo. Fugia das discussões sobre política, religião ou futebol. Entendia de moda feminina, arte culinária, pintura e artes em geral, cinema, teatro e televisão. Gostava de viajar, quando tirava muitas fotografias e as mostrava vaidoso a todo mundo, explicando em detalhes o cenário fotografado. Por tudo isso era muito agradável e o mulherio se acercava dele. Se transava com alguma delas, nunca se soube.

Nessa época, Horácio devia ter seus 35 anos de idade. Era respeitado no trabalho, onde exercia cargo de chefia intermediária, o que lhe dava liberdade de horário, mas que o obrigava a constantes viagens por diversas partes do País, notadamente para as regiões Nordeste e Norte.

Era casado com Dona Rosa, uma nordestina de 30 anos, bem dotada fisicamente, podendo dizer-se que era gorda, o que dava a Horácio uma certa angústia nas festas em que era constrangido a ir acompanhado da esposa. Esta, a exemplo das demais mulheres, o adorava, apesar de não receber dele contrapartida condizente com o tratamento afetuoso que lhe deferia.

Brasília não tinha nessa época muita opção de vida noturna. Os restaurantes eram poucos. O lazer se resumia a cinemas, churrascos e clubes, que havia muitos. Deve ter sido por influência dos gaúchos (numerosos na cidade) o fato de o brasiliense ter adotado o churrasco como sua festa preferida. Faziam-se e ainda se fazem churrascos por qualquer motivo, até sem motivo.

A era dos motéis ainda não havia aportado por estas bandas, até que um filho de um presidente da República conseguiu quebrar a proibição e construiu o primeiro motel dentro das cercanias do Distrito Federal, aliás, bem próximo ao Plano Piloto, pertinho da sede do governo. Antes dele, o jeito era valer-se dos carros e do cerrado, que este era enorme e circundava tudo, como ainda o faz.

Brasília foi responsabilizada, entre outras coisas, por propiciar divórcios e separações de casais, mostrando as estatísticas o elevado número de eventos da espécie aqui ocorridos. Acontece, porém, que os casais desajustados em suas terras de origem se transferiam para cá, muitas vezes, à procura de solução para suas desavenças, o que geralmente não se verificava, redundando na separação definitiva e debitando-se Brasília na contabilidade dos casamentos desfeitos. Outras vezes era a separação física do casal que facilitava a separação definitiva: muitos funcionários mantinham a família no Rio e viajavam todos os fins de semana, para casa.

Essa separação semanal facilitava obviamente o início de nova relação, comprometendo a anterior, que acabava em divórcio. No início de Brasília esses vôos de fim de semana, patrocinados pelo próprio governo, eram chamados carinhosamente de “vôo da foda”. Acabou há muito tempo, assim como a “dobradinha” salarial (4) . Naqueles primórdios, só mesmo “comprando” com tal tipo de moeda para se conseguir funcionários para cá. Havia ainda a concessão de moradia gratuita. Durante duas a três décadas, todos os funcionários transferidos, à revelia ou não, recebiam apartamento, com opção de compra, a preço de custo. Foi assim que muitos conseguiram sua casa própria. Com raríssimas exceções, esses imóveis eram bem mais espaçosos que aqueles onde moravam em sua cidade de origem.

Horácio habitava com Dona Rosa em um desses apartamentos, quase o dobro do tamanho daquele em que moravam nas Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Um belo playground para as crianças e muito gramado verde com bastantes árvores ornamentais em toda a volta do prédio. Um dos poucos problemas era que todos os vizinhos do prédio trabalhavam na mesma repartição, às vezes na mesma seção. Assim, quem gostava de bisbilhotar a vida alheia estava bem servido.

Os detratores de Brasília diziam que nos fins de semana acontecia aqui a grande “caçada ao superior hierárquico”, isso porque aos churrascos costumeiros de sábados e domingos, nos clubes, sempre compareciam os chefes, rodeados de funcionários subalternos, em rodinhas nas quais todos os assuntos de trabalho eram tratados e “resolvidos”, com muita carne e cerveja.

Mas não é disso que quero falar.

... continua

Adelay Bonolo


(*) Simulação, em termos simples, significa mostrar que se tem o que se não tem. Já dissimulação é o contrário: mostrar que não se tem o que realmente existe.

(1) Relativo a São Paulo, o Apóstolo.

(2) Presidente Médici, que sucedeu ao general Costa e Silva e antecedeu ao general Ernesto Geisel, na Presidência da República, no tempo da ditadura militar.

(3) O autor escreve de Brasília, onde vive há muitos anos.

(4) Nos primeiros anos de Brasília, os funcionários para cá transferidos recebiam um salário extra, apelidado de “dobradinha”. Era uma espécie de compensação para quem trocava o conforto das praias cariocas pela aridez do cerrado goiano.
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